BrisaFlow é uma rapper mineira que utiliza o quinto elemento do hip hop, o conhecimento, para produzir poções de transversalidade poética!!!
A cultura do single e o excesso de informações a que estamos todos hoje submetidos demanda cada vez mais atenção por parte do público consumidor em vários sentidos. Seja para ser capaz de fruir adequadamente as obras a que são expostos, mas sobretudo para não se limitar a audição através dos códigos binários, aquela que vai apenas seguindo o que é indicado pelos streamings da vida. É preciso atenção e um consumo mais ativo e menos veloz de tudo que se apresenta.
Foi através do Roosevelt Improvisada (2013) que primeiramente tomamos contato com a Brisa Flow, juntamente com as outras minas presentes no trabalho: Lívia Cruz, BellaDona e Karol de Souza. Nessa track, que nós apelidamos carinhosamente como Cypher das imigrantes, àquela altura nos impressionou o flow, a irreverência e o uso das multi silábicas. Todas essas técnicas amarradas em ideias de proceder, liberdade e independência feminina que nos pegou de primeira. Era para nós um momento onde descobríamos diversas excelentes mc’s do Brasil inteiro, mas logo depois a Brisa Flow sumiu do nosso radar.
Em 2016 Brisa lançou um disco excelente chamado Newen, que alcançou excelentes criticas entre a mídia especializada e lhe fixou de vez como uma das figuras mais interessantes da cena rap brasileira. O disco que foi eleito como um dos melhores daquele ano, o foi. nos parece, porque desenhou um estilo singular na arte da mc mineira radicada em São Paulo, em forma e conteúdo, que a diferencia definitivamente de outros trabalhos e artistas.
Historicamente a música brasileira dialogou muito pouco com seus vizinhos de continente, colaborações pontuais e não menos produtivas, entre artistas brasileiros e latino americanos nos fez desconhecer a riqueza do nosso continente. Já em Newen (2016), a primeira faixa parte para o reconhecimento da necessidade de nos descolonizarmos e entendermos os momentos históricos de genocídio e opressão que o continente latino americano e seus povos sofreram desde o seu “descobrimento”. A música de abertura Lamguëmchefe (homicida/assassino), retira o seu título da língua do povo Mapuche, habitantes indígenas da Argentina e do Chile.
O disco obviamente também aborda os diversos temas que Brisa Flow vem desenvolvendo em sua caminhada no rap e na militância desde 2010, ela que também atua como arte-educadora. As bandeiras do feminismo, da luta contra a desigualdade social, do racismo, e tudo quanto faz de alguém um(a) militante do rap nacional estiveram sempre presentes em sua música e em sua militância.
O conceito de transversalidade é um conceito proveniente do campo da filosofia da educação, que implica um novo didatismo ao incorporar metodologicamente questões de vida que não estão tão obvias em questões teóricas. Os últimos anos tem sido de crescimento e de um encrudescimento necessário na luta de resistência das minas dentro do rap nacional. E na maioria dos casos, há uma violência nas produções que é necessária para nos tirar de nosso lugar de privilégios e para pensarmos nossa condição de homens numa sociedade machista.
As mulheres do rap nacional que hoje caminham a passos largos para alcançar a mesma e necessária visibilidade no cenário que os homens possuem, encontram métodos os mais diversos para fazer seus trabalhos chegarem aos ouvidos e a vista do público. Diante das diversas questões enfrentadas, as mulheres tem levantado e criado poeticamente sob diversas bandeiras, ao mesmo tempo, dosando agressividade e técnicas distintas para resultados distintos.
É nesse contexto que o último trampo lançado pela Brisa Flow, nos causou uma impressão brutal e ao mesmo tempo nos levou a pensar a necessidade dessa transversalidade que de algum modo deveria ser intrínseco ao rap em suas diversas lutas.
Existem tantas linhas possíveis de onde puxar o fio da meada desta transversalidade executada com tanta maestria por Brisa Flow nesse vídeo clipe/single, que há dois meses estamos ouvindo/vendo/pensando essa obra e consequentemente acompanhando o crescimento orgânico que ela tem alcançado. Nos parece que outras pessoas, agora mais de 80 mil man@s, estão passando pela mesma sensação ao beber essa poção toda trabalhada no cruzamento entre a herança das bruxas e das curandeiras.
E é esse se colocar “entre” que nos parece fornecer o princípio ativo capaz de nos levar a perceber os diversos “Eus” presentes na lírica que Brisa intercala poeticamente. Traçando um devir mulher capaz de criar a empatia necessária para que nós homens percebamos os vários aspectos que compõem o feminino como diferença. Um feminino que se auto define em seus movimentos poéticos e se impõem com toda sua singularidade e consciência de si. Ao mesmo tempo em que propõem também um eu coletivo e resistente entre as aliadas de combate cotidiano.
O instrumental, o vídeo e a poesia presentes em Dias e noites de amor e Guerra (2017) fazem, ou melhor, dão-nos a ver e a ouvir as diversas faces possíveis do feminino. Os aspectos maternais, lúdicos, a força da leveza, a fidelidade, a alegria, são alguns dos afetos transmitidos com muita sensibilidade. O beat do Bruno Cons, serve de espaço rítmico por onde Brisa baila dando uma aula de flow, entre o canto e a rima em diversas passagens, alcançando a sua própria voz como instrumento em alguns momentos.
As filmagens feitas em sua própria quebrada, e sob a responsa do mesmo Bruno Cons, mesmo num ambiente restrito, consegue trazer a pluralidade de referências e sentimentos que a música transmite. O universo referencial da artista, que se inspirou no Eduardo Galeano para nomear a música, mas também nos apresenta discos da cantora anglo-nigeriana Sade Adu, rainha da mesma elegância suave mostrada por Brisa aqui. A esse universo se conjugam os rituais de incensar a casa e a mente com a erva sagrada, limpando o habitat e a consciência para torna-las leves o suficiente e capaz de enfrentar a ladeira até ponto de ônibus pro corre diário. Ou mesmo, para dar força para brincar de pega pega com o seu moleque, depois de trabalhar, lavar as louças, acertar os próximos trampos, compor etc…
Enfim, estamos em nossa opinião e pelos motivos acima mencionados diante de um lindo exercício musical, poético e áudio visual. Onde Brisa Flow parte do vento que percorre o rosto de sua criança, montada numa vassoura de bruxa para sobrevoar a cena do rap, os problemas e a força das mulheres, sua relação com os homens, produzindo uma gama ampla de afetos e críticas. Um voo transversal entre reinos, línguas, povos e gêneros, que coloca todo o sistema em jogo, elevando sua arte mas do que se entregando ao jogo, como temos visto muitos fazerem ultimamente. Uma poesia curativa, para além das goodvibes, realmente produtora de saúde e com uma violência mais fruto do cuidado que do ataque.
Tá aí uma das suas parcelas de contribuição para a luta feminina no rap nacional, mas nesse caso está mais para uma curandeira, uma xamã.
“A mulher é, por natureza, um xamã.”
fotos: Bruna Monique