Brando Alves lança Lembranças Pt. 4 e fecha sua tetralogia das lembranças, uma série de singles que mostram as conexões do compositor com as sonoridades periféricas que servem de referencial estético para suas composições.
A diáspora africana foi causada por um dos maiores crimes cometidos na história da humanidade: a escravidão moderna. Quando as potências europeias decidiram transformar seres humanos em mercadorias, destituí-las de sua humanidade, colocando no lugar uma natureza inanimada. Foi dessa forma que as pessoas raptadas em África, ao longo de quase meio milênio, foram distribuídas pelo globo terrestre, principalmente aqui nas Américas.
A dita abolição da escravidão substituiu os grilhões de ferro pelos grilhões da penúria social. A senzala fora substituída pelas favelas, periferias e guetos mundo afora. Esses locais aos poucos se tornaram mais que zonas de habitação para os ex escravos e seus descendentes. Tornaram-se focos de resistência contra a perpetuação da estrutura opressora dos tempos coloniais. E as armas nessa luta vieram da arte, em especial da música.
Os guetos, favelas e periferias criaram os principais gêneros musicais dos século XX. O samba, o chorinho, o jazz, o blues, o rock, o rhythm and blues, o soul, o reggae, o sound system, a rumba, o calypso, o rap, gêneros que foram incorporados pela indústria fonográfica e que acabaram por se disseminar por todos os estratos sociais.
As periferias em todo Brasil estão na vanguarda da criação musical em nosso país e certamente assim continuará. O rap se tornou o principal gênero nessas localidades ao longo dos últimos 30 anos, determinando os rumos que a música tomaria a partir daí. Toda uma nova geração de músicos se formou em torno do rap e suas variações, como o trap, que levaram a fusões com outros gêneros.
Além do trap, o funk carioca, o pagodão baiano e o arrocha se consolidaram como a base de muitos gêneros surgidos na periferia nos últimos anos. Os beatmakers buscam nesses gêneros inspirações para suas composições, muitos compositores buscam nesses gêneros a matéria prima para suas músicas.
Nesse sentido, Lembranças é uma mostra de uma alquimia precisa entre a música negra do passado com as vanguardas musicais negras e periféricas atuais. Isso dá às composições de Brandon um frescor, ao mesmo tempo que causa certa estranheza aos ouvidos, justamente por fazê-los entrar em contato com algo que ainda não lhes é totalmente familiar. Existe a identificação de sonoridades já assimiladas, mas há também a sensação de estar diante de algo ainda por ser descoberto.
Essa “contradição” é o ponto principal do trabalho de Brandon, pois indica a presença de algo por ser dito, em termos autorais. Existe não apenas uma competência no que se faz, uma sensibilidade estética afiada, um conhecimento preciso acerca do que está acontecendo de novo na cena musical em geral, mas há principalmente o desejo de alcançar algo novo. Por isso mesmo existe a aceitação de um risco.
Brandon se mostra um artista no sentido forte do termo, pois seu principal interesse é criar. Distancia-se da sua zona de conforto, na qual muitos “artistas” preferem permanecer, para travar novos contatos, novas experiências que reflitam na sua percepção estética e em seu trabalho.
Outra característica apresentada por Brandon, que é importante ser destacada, consiste na auto gestão de seu trabalho. Vemos muitos músicos se mostrarem exímios instrumentistas, compositores criativos, bons arranjadores, mas que se atrapalham no que diz respeito à gestão da própria carreira.
A realidade do músico independente exige que ele domine minimamente esse aspecto da sua carreira, uma vez que pagar por um profissional especializado nesta área pesa no orçamento de quem muitas vezes tem que se virar com o suficiente para si mesmo.
Pelas suas postagens identificamos quais são suas influências, qual tipo de som fazem parte de sua sonoridade, somos motivados a clicar em cada uma de suas postagens, pois sabemos que não esbarraremos em frivolidades pessoais que não interessam a quem está ali pela música.
Um giro pelas redes sociais de Brandon nos permite conhecer o “canteiro de obras” onde o compositor cria beats, melodias, faz os agenciamentos sonoros que futuramente irão fazer parte de um single. Digo isso porque foi essa minha experiência. Conheci a música de Brandon através de sua página no Instagram.
Geralmente os artistas independentes com dificuldades em separar sua vida pessoal da profissional afastam pessoas que chegaram ao perfil interessados em saber mais sobre sua música. Isso porque acabam encontrando uma enxurrada de postagens aleatórias nas quais as postagens dos trabalhos feitos pelo compositor se perdem.
Percorrendo a timeline de Brandon cheguei a uma postagem que anunciava o seu último single lançado ate então, Lembranças Pt. 3 disponível no Spotify. Acessei o perfil do músico na plataforma de streaming e ouvi os três singles lá disponíveis. E aí vemos outra mostra de uma boa compreensão de gestão do próprio trabalho. Os singles foram lançados dentro de um intervalo de tempo que permitiu aos ouvintes mais exigentes e interessados no trabalho de Brandon, digerir cada single, enquanto gerava expectativa quanto ao próximo.
O título revela uma sequência, pois o nome é Lembranças Pt. 1, e se há uma parte 1, haverá no mínimo uma parte 2. Este single, o primeiro de uma sequencia de 4, foi lançado no dia 22 de maio de 2020. Trata-se de uma balada intimista delineada por beats cadenciados que expressam uma sensualidade contida, certamente para refletir as emoções expressas na letra, de alguém lidando com a falta da pessoa amada.
Brandon começa sua tetralogia de forma a nos colocar diante das contradições do amor. Responsáveis por nos leva a lidar com a ausência e a presença, com as lembranças que nos levam a divagar e a transitar entre sensações agradáveis e outras nem tanto assim. Desse modo a opção por matizes sonoras mais suaves coloca o ouvinte numa atmosfera aconchegante.
Quase dois meses depois, no dia 03 de julho de 2020, veio o lançamento de Lembranças Pt. 2. Ela inicia com uma leva ao violão, dando continuidade ao clima do single anterior. Contudo esse vínculo é quebrado por quando entra o arranjo completo, quando o beat e a linha de baixo passam a direcionar a música.
Os versos são os mesmos da parte inicial da música, porém eles ganham uma tensão maior nesse contexto com mais elementos. Isso porque na primeira parte o eu lírico ainda não tinha se dado conta de que se tratava de um momento que não se repetiria, pois a pessoa amada não voltaria. Essa tensão ativada com a introdução de mais elementos sonoros à música representada essa tomada de consciência acerca da perda daqueles momentos vividos.
Ressaltamos a intervenção do rapper Damente, que introduz versos que funcionam como o subconsciente do eu lírico, que o coloca diante das representações da pessoa amada, que vão das visões românticas às sexuais. A música passa por diferentes momentos, marcados pelas alterações rítmicas sofridas, que marcam alterações emocionais no eu lírico. Quando este passa a narras suas incursões com sua mina a música se agita até que ele percebe estar sob o poder da pessoa, a música dá uma suavizada, uma preparação para cair no refrão.
No dia 30 de abril de 2021 foi lançado Lembranças Pt. 03, faixa na qual Brandon retoma o tom intimista da Pt. 01 e a sensualidade da Pt. 2, criando uma atmosfera envolvente, gerando o contexto para reviver em suas lembranças os amores vividos.
A música vai se desenvolve numa balada interrompida em dado momento pelo refrão, que tem no swing do pagodão baiano seu ponto de apoio.
Brandon faz sua alquimia e tira o peso e a agressividade desse gênero das quebradas de Salvador, extraindo apenas o swing, o balanço envolvente e sensual responsável por aguçar nossa sensibilidade . Vemos nessa música o uso do flow, um dos recursos musicais dos rappers, intercalando os versos entre os momentos em que entra o refrão.
O ciclo se fecha hoje, dia 11 de junho, com o lançamento de Lembranças Pt. 04. Nesta música Brandon apresenta uma sonoridade mais envolvente, carregada de swing, um balanço malicioso, que tem no samba sua linha rítmica condutora. Menina Mulher da Pele Preta é usada como camada musical sob a qual a música se desenvolve.
A música, parte de um dos álbuns seminais da música brasileira, Tábua de Esmeraldas, lançado por Jorge Ben (recuso-me, por questões pessoais , a usar o Jor) em 1974 serve de matéria prima para toda ambientação da música. Existe na letra um tom de evocação das memórias do passado dividido com a mulher, sob a qual os desejos do eu lírico ainda se volta.
Participa de Lembranças Pt. 04 a atriz Larissa Bocchino que gravou as mensagens de áudio que abrem a música, reavivando a lembrança dividida de quando o eu lírico de Brandon tocava a música do Jorge Ben pra ela. Esses áudios gravados por Larissa dão o mote da música e dá o contexto para que Menina Mulher da Pele Preta se faça presente, inclusive fazendo dessa presença a vivência do eu lírico tocando a música para reviver em suas lembranças os momentos compartilhados coma pessoa amada.
Além de Larissa Bocchino, a música conta com a participação do cantor e compositor Jovem Niti que fez o seguinte comentário sobre a participação em Lembranças Pt. 04:
“Receber o convite do Brandon pra participar da Lembranças 4 foi um orgulho pra mim. Mesmo antes disso, eu já tinha ouvido as três primeiras. Gosto muito de todas elas, da série que o Brandon idealizou. Para construir meus versos nessa faixa, procurei absorver e entender bem as mensagens trazidas nas anteriores da série, entender a história e até mesmo buscar referências líricas. A ideia é contribuir para que a Lembranças 4 seja um desfecho perfeito para a série, seguindo o contexto e apresentando o final que os ouvintes do Brandon esperam! E eu, Jovem Niti, espero ter conseguido aplicar bem a minha lírica na faixa.”