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Bocato e sua experiência jazzística em 2022

Lançado no dia 24 de junho, dia de São João, o mais novo álbum do trombonista Bocato, devidamente batizado de ‘Bocato Jazz Experience 2022’.

Um pouco da obra de Bocato

Quando se fala em trombone na música brasileira, três nomes vem de imediato à mente: Raul de Barros, Raul de Souza e Bocato. No meu caso, conheci Bocato antes de conhecer os Rauls. Lembro de ter entrado em contato pela primeira vez com o Bocato quando ele fez parte da banda do Faustão ali pelo início dos anos 2000. Até então apenas ouvira outros músicos da minha cidade falando sobre ele. 

Capa de Lixo Atômico, álbum de estreia do Bocato. Arte por Glauco.

Desde a adolescência ouvia jazz e a precariedade em acessar os álbuns e as mídias especializadas em jazz e na música instrumental, criava uma barreira para se conhecer os expoentes brasileiros do gênero. Geralmente encontrava-se os álbuns das lendas do jazz estadunidense naquelas coletâneas de banca de revistas.

A internet amenizou a dificuldade de acesso ao material e pude conhecer um pouco mais do que estava sendo feito no jazz brasileiro. Tinha a imagem do Bocato tocando no Faustão e falando algo sobre uma música que havia sido executada, e foi essa memória que permitiu ir atrás do trabalho do Bocato assim que as condições econômicas e materiais permitiram.

Baixei os álbuns do Bocato que encontrei e rapidamente me apaixonei pelo som do cara. Ouvindo o recém lançado Bocato Jazz Experience 2022 me dei conta de uma particularidade do Bocato, ainda se comparado às duas referências do trombone brasileiro citadas. O Bocato procura sempre se manter conectado ao tempo presente, porém tateando o porvir, procurando novos caminhos. Ele procura construir pontes entre diferentes estilos. Não tem pudores em lançar mão de elementos do pop e do rock, por exemplo.

Foi assim com os primeiros álbuns lançados, em particular o arco que vai de 1985 à 1990 com os álbuns Lixo Atômico (EP, 1985), Sonho de Um Anarquista (1987), Concerto Para Um Trombone Quebrado (1988), Abruxa-Te e Aqui Jazz Brazil, ambos lançados em 1989 e Ladrão de Trombone (1990). Estes álbuns trazem para o arcabouço musical de Bocato elementos da música pop, do rock, experimentalismos sonoros e textuais, imprimindo uma identidade abrangente à sua sonoridade.

Eu ouviria esses álbuns só pelos títulos. Não só dos álbuns, mas das músicas. O texto feito para as músicas são vozes musicais que cumprem uma função dentro de cada música e refletem a totalidade de cada álbum. As métricas das letras seguem, assim como os arranjos musicais, por linhas tortas, buscando sempre romper as amarras do formalismo.

Pra mim este é o ponto convergente de toda música de Bocato.

Bocato Jazz Experience 2022 

Vamos ao que interessa, falemos a respeito do último álbum do Bocato. O álbum tem uma sonoridade agitada, por vezes passa uma sensação de ansiedade, mantém uma constante tensão no ar. Isso porque ‘Bocato Jazz Experience 2022’ busca expressar a realidade brasileira dos últimos anos.

Capa do novo álbum de Bocato.

São tempos sombrios, tensos, ameaçadores, e sendo Bocato um compositor preocupado em dialogar com o contexto social e político no qual está inserido, refletir o momento histórico atual é parte do seu processo criativo.

ou trazer aqui algumas faixas para sustentar meu ponto. O set list do álbum abre com a faixa Lockdown. Essa música tem a tensão, a sensação de ansiedade, da incerteza e medo quanto ao futuro por conta da devastação que a Covid vem fazendo mundo afora, mas principalmente aqui no Brasil.

Um arranjo agitado que parece externalizar a condição psicológica de boa parte da população brasileira que tentava lidar com o confinamento, o negacionismo e inoperância do governo federal, os altos índices de infecção e morte do vírus, o colapso do sistema de saúde, todos elementos que exerciam uma pressão sobre nossa psique e nos lançava às portas da loucura.

Já Escravidão pelo Medo me remete, como bom comunista, a uma crítica ao capitalismo. A letra da música, muito bem dramatizada pela poetiza Daisy Coelho, fala sobre a pressão exercida sobre as pessoas pela dinâmica de produção capitalista.

O indivíduo isolado se vê à beira do abismo ao ter que se concentrar no trabalho, na busca desenfreada pelo sucesso, experimentando o medo constante de não ter condição de se manter. Desfrutando dos poucos momentos de prazer, que acabam sendo apenas intervalos para reestabelecer minimamente suas forças para retomar todo processo no próximo dia. O capitalismo em sua forma neoliberal escraviza através do medo.

Bocato e seu velho amigo.

Refugiados tem uma atmosfera soturna, ouvindo me vem à mente uma daquelas cenas em que a pessoa se encontra num beco novaiorquino mal iluminado, com aquelas fumaças subindo e o personagem em cena suando frio, preocupado, temendo ser abordado a qualquer momento.

E mais uma vez ouvimos a voz de Daisy surgir e organicamente se inserir entre os sons. Para narrar a triste condição de nossos irmãos bolivianos, haitianos, dos inúmeros países africanos jogados no caos econômico e social pelo imperialismo europeu, que buscam melhor oportunidade no Brasil, mas que encontram o ódio racista e xenófobo que ceifa vidas como do congolês Moïse Kabagambe fria e brutalmente assassinado na Barra da Tijuca no Rio de Janeiro.

Nesse sentido, o clima gerado pelo arranjo nos faz ter uma dimensão, mesmo que tênue, do que é a sensação de um refugiado no Brasil. Deveria ser a sensação que experimentamos ao sermos recebidos na casa de um amigo ou familiar. A sensação de acolhimento. Contudo, o que nossos irmãos e irmãs experimentam ao chegar no Brasil é a sensação de se estar num beco mal iluminado sem saber que tipo de ameaça irá sofrer e em qual momento.

Bocato em ação.

Lembro de uma fala do Son House sobre o Blues. Ele diz que o “verdadeiro blues” não faz você querer dançar, se divertir, ou coisa do tipo. O “verdadeiro” blues é reflexo da melancolia do bluesman que o liga aos ouvintes que experimentam esse mesmo sentimento. O blues vem de uma condição de não pertencimento do mundo, no final das contas. E considero que por esse motivo Bocato escolheu um blues para a música Povo Submisso. 

Começa com o solo melancólico do trombones, solitário, exprimindo toda sua incompreensão da submissão ascética do povo brasileiro, capaz de suportar estoicamente as agressões e injustiças mais intensas. Por boa parte da música acompanhamos o trombone nesse lamento, aos poucos acompanhado de outras vozes. Até chegar na agressividade do solo bem temperado da guitarra. Aí, a melancolia se metamorfoseia em raiva.

A última faixa que destaco é Fake News. Essa música tem um riff de fácil assimilação, daqueles que você fica cantarolando e absorve por osmose. Na própria forma do riff da música Bocato expressa a natureza das fake news. Informações de fácil assimilação e sem nenhum tipo de lastro material que as confirme.

A ideia aqui foi destacar as faixas do set que sustentassem minha compreensão da totalidade do álbum como uma obra que busca refletir o arco histórico recente do Brasil. Bocato faz isso de forma contundente, fazendo do jazz um veículo de reflexão política do nosso tempo, algo essencial para os tempos que vivemos. 

Informações técnicas do álbum 

O álbum Bocato Jazz Experience 2022, é composto por 11 faixas inéditas que se costuram numa profunda experiência sonora eletroacústica. Bocato conversa com o fazer musical contemporâneo e ousa voos na música eletrônica onde os instrumentos convencionais ganham novos timbres e características digitais.

Bocato lidera um grupo de músicos conceituadíssimos da cidade de São Paulo, Eliezer na guitarra, Gilberto Pinto no contrabaixo, Fernando Amaro na bateria, Luis Cláudio Faria no trompete, e participações de Felipe Lamoglia saxofonista cubano, Denis Lisboa na percussão, Igor Bollos na guitarra e Jackson Silva no contrabaixo, além de incursões da poesia cortante de Daisy Coelho.

O disco foi gravado, mixado e masterizado por Ricardo Passini no estúdio O Instituto. A arte da capa é de Marina Laet e a produção de Caru Laet.

Este projeto é uma contrapartida ao Prêmio por Histórico de Realização em Música, pelo Edital ProAC Expresso Lei Aldir Blanc 2021, por meio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.

Abaixo você escuta Bocato Jazz Experience

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