Bluesman (2018) de Baco Exu do Blues, lançado há dois anos, segue levantando questões
Não pretendo escrever uma resenha sobre o segundo álbum do rapper baiano Baco Exu do Blues, mas falar de forma informal sobre a impressão da recepção sobre o disco “Bluesman”. Inicio referenciando o álbum ao trecho do livro “O Último Voo do Flamingo” de Mia Couto, porque “se temos voz é para vazar sentimento” e isto é algo que Baco vazou em Bluesman.
O que é ser Bluesman?
O álbum tenta ao longo das suas faixas buscar responder essa questão. Ao iniciar sua narrativa com a faixa “Bluesman”, o rapper introduz a problemática de apropriação da arte negra pelo sistema branco que tenta deslegitimar a capacidade intelectual e criativa dos negros. Lógico que essa apropriação e embranquecimento dialoga com racismo pautado em teorias religiosas do século XVI e teorias científicas da metade do século XIX, por exemplo o darwinismo social e o racismo científico. Tais concepções científicas buscavam anular ou inferiorizar a capacidade intelectual de produção dos negros ou embranquece-las para ter um valor estético-artístico.
Ao longo de suas nove faixas, o rapper fala da resistência negra em manter sua subjetividade e concretude a partir de suas complexidades psico-emocional de resistir a doença do sistema racial, dizendo que ser bluesman é reconstruir e ressignificar sua condição de vida no processo diaspórico através da elaboração da autoimagem, autoestima, valorização cultural negra e da construção identitária negra.
Baco atualiza a ideia de bluesman do início do século XX, cuja concepção elaborava-se na representação do negro numa sociedade pós-colonial que deixou as plantations num êxodo para os centros urbanos onde experimentou inovações tecnológicas que sintetizaram no blues um cantar e tocar profanos dos sofrimentos do homem negro e \fetos como medo, tristeza, ansiedade ou depressão. A imagem do bluesman simboliza um estado de depressão emocional que era cadenciado no ritmo musical para amenizar ou tornar menos dolorosas e sofríveis a condição dos negros.
Porém, o motivo pelo qual esse álbum construiu uma bipolarização crítica entre a imprensa especializada e os apreciadores da cultura hip-hop é o grande xis da questão. Eu li algumas análises que debatem a “genialidade” de Baco Exu do Blues e, outras que refutam essa genialidade atribuída ao rapper para questionar sua legitimidade discursiva e sua apropriação simbólica, assim refutando sua produção artística.
Num diálogo com Jonas Pinheiro debatemos sobre o álbum e sua recepção. Assim, primeiramente, afirmo que o álbum “Bluesman” não é um disco sobre a crônica das ruas ou da periferia como tradicionalmente o rap brasileiro desenvolveu ao longo de sua existência, precisamos compreender a mudança sócio-econômica que ocorreu em nosso país que permitiu aos negrxs uma outra formação enquanto sujeitos ou agentes histórico.
O rap sempre emergiu de narrativas ou crônicas elaboradas por uma intelectualidade formada na vivência orgânica das ruas, o que poderíamos chamar de um letramento informal. Após a ascensão do PT ao poder e suas políticas afirmativas e econômicas, negros e negras passaram a acessar outros níveis de letramento e consumo, nisso construindo uma juventude cujo letramento formal pode ressignificar sua leitura de mundo.
Compreender esse nova ressignificação de letramento e conhecimento, é entender por exemplo a MPBlização do rap com o lançamento do álbum “Nó na Orelha” de Criolo. O rapper paulista trouxe um nova linguagem ao rap que distorce da tradicional crônica, possibilitando o consumo do gênero por grupos sociais mais elevados da estrutura econômica do país.
A partir dessa abertura do rap para uma nova estética, notamos a perda simbólica do discurso periférico ou que podemos chamar de cultura popular. Sim, a cultura popular é marcada pelo seu simbolismo cultural de um determinado grupo, no caso do rap dos negros periféricos e suas denúncias sociais contra o sistema.
Mas qual é a relação de Baco Exu do Blues nesse processo de abertura e ressignificação da música rap? Bem, tentarei explicar partir de minha leitura e conhecimento acerca do rap e da indústria cultural de massa.
Baco ao lançar “Sulicídio (2016)” provocou uma fragmentação do rap brasileiro ao chamar a atenção da invisibilidade da região Nordeste na cena musical. Depois de atrair esse foco para o Nordeste, o rapper produziu o álbum “Esú (2017)“, a grande marca do álbum foi seu diálogo com as religiões de matriz africana, especificamente o candomblé. Por causa desse diálogo o rapper foi acusado de apropriação. Compreendo que Baco não é iniciado no sacerdócio candomblecista, no entanto seu álbum é importante para desconstruir a representação pejorativa sobre o arquétipo de EXU. Arquétipo esse que foi deturpado pela cosmogonia cristã. o restante é palavrório que só confunde o leitor ocidentalizante das religiões de matriz monoteísta cristã. Se Baco apropriou-se ao menos fez de modo positivo, destoando principalmente de artistas brancos da música brasileira.
O segundo álbum “Bluesman (2018)” também chegou cercado de polêmica e bipolarização crítica. De um lado encontramos uma crítica que encara o álbum uma obra genial, e isso é indiscutível. Bom, discordo um pouco deste ponto de vista, acredito que esse ponto é passível de discussão. Do outro lado temos uma crítica ácida e vociferante que reduz o álbum a uma pseudo legitimidade discursiva, na qual também discordo.
O que você pensa sobre o álbum e o sujeito Baco/Diogo? Bem, eu vou ser ferozmente criticado, mas vou esquematizar minha análise a partir de um pressuposto narrativo conceituado por Paul Ricoeur. O filósofo francês trabalha a narrativa a partir do conceito de metáfora no qual o sujeito constrói símbolos conceituais de sua realidade para interpretação do mundo.
Quando o rapper insere o conceito de Bluesman, ele não tenta falar de uma realidade concreta das ruas, logo o álbum não é sobre uma vivência que a crítica acusa Baco de não experimentá-la de fato. Logo, a ideia de deslegitimação de sua música que foi taxada de “fake” também é anulada pois não se trata de um acúmulo temporal individual e cultural vivido por um negro classemediano. O valor da obra de Baco está entre a dinâmica de nos deixar compreender o universo interpretado e como isto pode habitar o mundo do intérprete (o leitor/ouvinte), e ainda pensar a reconfiguração a partir da transformação da experiência do intérprete.
O que você quis dizer com isto? É o seguinte, as canções de Bluesman são um discurso que escapa das crônicas narrativas do rapper tradicional, por possuir um discurso simbólico costurado de procedimentos linguísticos que modifica a palavra ao sujeito endereçado que reelabora nas rédeas do individualismo. Você é um sujeito ligado a crônica tradicional do rap, logo a música terá um discurso de “fake”, se você está ligado a poética mais lírica, logo achará uma genialidade.
Outro ponto é pensar Baco como um heterônimo literário, assim como Fernando Pessoa e suas múltiplas personalidades fragmentadas em diversos heterônimos. Eu entendo a persona Baco como um heterônimo de Diogo, principalmente por sua identidade de escrita bastante lírica (poética).
O sujeito Baco não nasce da construção de um codinome eleito por um homem negro que abandona o nome de batismo para renascer numa causa de militância. Sim, a militância de Baco é frágil e pouco pulsante se pensarmos enquanto militância um enfrentamento mais rígido e que tenta romper o pacto com a branquitude. Neste ponto, Baco é o negro que todo branco quer ao lado e na vitrine da vida. No entanto, isto não reduz ou inviabiliza a importância do álbum Bluesman, pois esse é fundamental para pensar a temática negra de outro lugar. Sim, o lugar da saúde mental masculina negra que é adoecida pelo racismo e o machismo. O “xis” da questão de eu refutar algumas críticas é o silenciamento constante do debate sobre a masculinidade negra e o quanto isto vem destruindo nossa saúde mental e emocional.
Exu do Blues não expõe um “drama da classe média”, mas um panorama de um mal que vem sucumbindo jovens negros sejam eles do playground ou da periferia. Então, achar que jovens negros da periferia não vão se identificar com essas narrativas é de uma leviandade e arroubo intelectual risível.
Bluesman é um álbum mainstream, é um álbum sobre uma outra ótica da rua, é um álbum baseado num conceito de ressignificação discursiva e narrativa do rap que bipolariza a cena, porém, é um trabalho com valor simbólico cuja temática é significativa para a abertura da discussão da masculinidade negra e seus desdobramentos sobre a saúde mental negra. Enquanto ao sujeito, Diogo Moncorvo, cabe a ele repensar sua trajetória enquanto rapper negro e compreender o compromisso com a militância negra extinguindo esses pactos com a branquitude, porque essa branquitude o quer mais como “escravo da casa” e menos como “escravo da lavoura”.
-Bluesman de Baco Exu do Blues : “Se Temos Voz é Para Vazar Sentimento”