Oganpazan
Aqui jazz, Destaque, Discos, Resenha

Bitches Brew, 50 anos de uma revolução

Não é por acaso que Bitches Brew é considerado um dos álbuns mais revolucionários da história do jazz! Nele estão consolidadas as bases do fusion e do jazz rock. 

Miles Davis é sem dúvida o maior músico de jazz de todos os tempos. Essa afirmação de modo algum é gratuita e deve-se ao fato da necessidade constante que este músico teve de expandir as fronteiras de seu som.

Miles Davis supera nomes como Charlie Parker, Duke Ellington, John Coltrane e Louis Armstrong, pra ficar apenas em alguns dos nomes responsáveis por operar grandes mudanças no modo de se fazer jazz, pelo fato de permanecer expandindo as fronteiras do jazz ao longo de toda sua carreira, ou seja, dos anos de 1940 até sua morte em 1991. Quase meio século perpetrando transformações profundas na linguagem do jazz. Durante esse longo período, Miles esteve sempre alguns passos à frente, no que tange o desenvolvimento do jazz, do que qualquer outro músico do gênero. 

Fica claro em sua discografia a transformação constante de sua música, responsável por criar novos gêneros musicais como o cool, o jazz rock, o hard bop, o fusion e o jazz eletrônico no últimas anos de sua vida. Miles Davis não teve medo de quebrar as barreiras e “macular” o jazz, quando em 1969 introduz instrumentos elétricos característicos do rock e do blues ao jazz. Bitches Brew marca um novo momento do jazz, que migra do acústico para o elétrico.

Este álbum é revolucionário na acepção mais forte do termo. Ele subverte por completo a compreensão do que seria o jazz naquele momento. Há uma ruptura quase completa com toda música compreendida como jazz anterior a Bithces Brew, o que o torna um marco na história do gênero. O LP original era duplo e contava com seis músicas. No lado A ‘1. Pharaoh’s Dance’, no B ‘1. Bitches Brew’, no C ‘1.Spanish Key’ e ‘2. John McLaughlin’, D ‘1. Miles Runs the Voodoo Down’ e ‘2. Sanctuary’. Vale lembrar que em 1999 foi lançada uma versão em dois CDs contendo uma faixa adicional no disco 2, a música Feio. A partir de então os relançamentos do álbum passaram a contar com essa faixa adicional. 

A gravação desta obra prima contou com a presença de 12 músicos, os quais se revesavam em jams orientadas por Miles Davis. Este time dos sonhos do jazz contava com músicos já estabelecidos e outros que teriam suas carreiras catapultadas a partir daquela experiência musical. Eis a escalação do time de jazzistas que fizeram parte das gravações de Bitches Brew: Joe Zawinul, Wayne Shorter, Airto Moreira, John McLaughlin, Chick Corea, Jack DeJohnete, Dave Holland, Don Alias, Bennie Maupin, Larry Young e Lenny White.

Não bastasse a eletrificação do jazz, esse álbum apaga a distinção entre tema e improviso, marca registrada do jazz até então, o que gerou na época duras críticas dos jazzistas à Miles e novas questões aos amantes, estudiosos e músicos de jazz: Bitches Brew seria um álbum de jazz? Miles Davis ainda poderia ser considerado um músico de jazz?

Todas as linhagens do jazz nascidas até este momento crucial contavam com uma formação padrão, estabelecida pelos bebopers, em particular Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Thelonius Monk, a formação em quarteto e quinteto. Claro que antes disso havia as orquestras de jazz, as famosas big bands e a consolidação dos quartetos e quintetos teve uma importância fundamental para o nascimento do jazz moderno. Contudo ainda eram os mesmos instrumentos utilizados nas orquestras, tínhamos então: bateria, piano, baixo acústico, saxofone (na maioria das formações o sax tenor), algumas vezes um vibrafone  e trompete.

A formação de Bithces Brew dispensa todos esses instrumentos e adota a guitarra elétrica, que se serve de todos os efeitos que este instrumento pode oferecer como as distorções, o wah wah,  baixo elétrico, piano elétrico (sintetizador), percussão (lembremos que o percussionista brasileiro Airto Moreira fez parte dessa banda de Miles, colocando inclusive a cuíca pra roncar em quase todas as músicas) e o mais estranho, um trompete eletrificado. Além do sax alto e soprano o clarone é utilizado na primeira música do álbum, Pharoa´s Dance. O clarone é uma mistura de saxofone com clarineta. Seu corpo de madeira e o formato de cachimbo produzem um som peculiar, encorpado, lembrando um rugido.

Na verdade o flerte com a eletrificação vinha ocorrendo a alguns anos. Em Bitches Brew ela encontra seu ápice. Miles não se contentou em adotar os instrumentos elétricos, ele eletrificou o seu próprio instrumento. Passou a  tocar seu trompete com um pedal wah-wah ligado a um amplificador aumentando as possibilidades sonoras aplicáveis a seu instrumento, fazendo com que se tornasse outro elemento elétrico agregado à sua nova banda.

Miles Davis sempre esteve antenado às mudanças pelas quais a música passava ao logo de cada período do século XX. Não estava alienado ao jazz. No final dos anos 60 estava ciente das mudanças perpetradas por músicos como Jimi Hendrix, James Brown e Sly Stone, levando à consolidação do rock e ajudando a estruturar as bases da música pop. Foi numa conversa com Sly Stone, conforme mostrado no documentário Miles Davis: Birth of The Coolque Miles entendeu o potencial em termos de mercado daquele seguimento da industria cultural já consolidado naquele período. Isso mostra que a mudança de paradigma de Miles Davis não foi motivada apenas por ambições estéticas.

Para explorar esse território, Miles precisava mudar sua linguagem para ser ouvido pelo público jovem daquele período, que se voltava para a música pop. Compreendeu ser preciso satisfazer essa necessidade para obter sucesso nesse campo dominado pela eletrificação. Miles Davis eletrificou seu som porque percebeu que havia uma demanda maior dentro da industria cultura da música pop do final dos anos 60. Ele quis explorar esse nicho do mercado e o fez. Ele agregou valor de troca à sua música usando instrumentos e explorando uma sonoridade própria do rock psicodélico daquele período.

Miles Davis fez no mínimo duas obras primas a partir disso, Bitches Brew e On The Corner, mudando radicalmente a linguagem musical da época, em particular do jazz. Contudo, a nova sonoridade criada por Miles não era apenas uma mercadoria, mas uma obra de arte. Isso porque ele não agregou apenas valor de troca à sua música, agregou em proporção maior, também valor estético. 

Certamente a motivação de Miles Davis ao criar a linguagem sonora e o conceito estético aplicado em Bitches Brew foi comercial. Mas pra obra de arte em si mesma, pra usar uma expressão hegeliana, não interessa qual foi a intenção de Miles Davis. Isso porque a intenção de Miles Davis não interessa no que diz respeito a apreciação estética da obra. Interessa no caso o efeito estético, em termos de criação, causado na música, e sabemos bem que o efeito foi revolucionário.

Em Bitches Brew o intuito era gerar texturas espraiadas, grooves hipnotizantes, nada de solos perfeitos ou standards que se fixassem na memória do ouvinte, tratava-se de romper radicalmente com o jazz feito até ali. Temos, portanto em Bithches Brew no mínimo três inovações: a eletrificação dos instrumentos, a dissolução das fronteiras entre tema e improviso e a utilização de instrumentos “exóticos” ao menos no que tange o jazz.

Não podemos deixar de falar sobre um “instrumentista” pouco falado e que cumpriu papel fundamental na construção da sonoridade de Bitches Brew, trata-se do produtor musical Teo Maceo. Nas mãos de Maceo o estúdio se transformou em um instrumento musical. Da mesma forma que dava liberdade pra seus músicos criarem durante as sessões, Miles permitia a Maceo ter controle sobre a aplicação de efeitos e cortes das gravações das sessões feitas com os músicos. Após as gravações Maceo e Miles se reuniam e discutiam a montagem do material. Maceo então começava o trabalho de aplicação de efeitos sonoros nas gravações. Escolhia os lugares certos pra inserir loops, ecos, delays, etc. Esses recursos foram imprescindíveis pra se alcançar o resultado ouvido em Bitches Brew.

São 50 anos completados na última segunda feira, 30 de março, de um álbum atemporal, lançado para causar espanto, admiração, incompreensão, afetar de modo violento a compreensão da música pop e do jazz a partir dali. Sim, Bitches Brew possui essa mais essa característica particular, ser um álbum revolucionário para o jazz e também para a cultura pop de um modo mais abrangente. Comecei com uma afirmação polêmica e assim terminarei: depois de Bitches Brew a música nunca mais foi a mesma!

 

Matérias Relacionadas

Galf AC Lança O Seu Primeiro Disco!

Danilo
8 anos ago

Lillian Lessa em Utopia (2018) Excelente disco de estreia da artista alagoana!

Danilo
7 anos ago

Os Cães Ladram é o Planet Hemp no auge do seu jogo

admin
8 anos ago
Sair da versão mobile