Segundo disco do MC e produtor curitibano Bface: Egoritmos (2021) reflete sobre o rap em tempos de conectividade total e suas armadilhas!
Se prestarmos atenção corretamente ao novo trabalho do MC e produtor curitibano Bface, entenderemos que ele nos coloca uma questão: Qual o ritmo do seu Ego? Segundo disco solo do artista, Egoritmos (2021) utiliza-se de produção elegante, classuda e de ideias assertivas para questionar a formação de nossa consciência. Precisamos entender que o nosso ego é sempre o resto ou seja, o resultado das forças que preponderaram em nosso corpo, fruto de nossas experiências e hábitos, assim como de inclinações diversas. Se assim entendermos o processo, podemos pensar, a partir disso, que a percepção dos ritmos (em sentido amplo) nos quais nos colocamos é fundamental nessa constante construção de nossa consciência.
Da mesma sorte, perceber hoje como os algoritmos nos controlam e direcionam nossa atenção para aquilo que nossa consciência tem como mais caro (aquilo que restou), manipulando nossos afetos e nos prendendo numa repetição vazia. Um loop que extrai desse movimento nossas forças, nos encerram em uma formação consciente que aos poucos vai perdendo seu vigor inicial e sobretudo deixando de se movimentar. No final das contas e de modo resumido, o nosso Egoritmo em tempos de rede social é cada vez mais ditado sempre de fora e mantido cativo de feeds e stories.
O artista Bface busca uma outra construção em Egoritmos (2021), onde seu ritmo e poesia cessam de se imiscuir em disputas bobas e parte de modo calmo para a demolição desse estado de coisas. Erigindo um breve acontecimento como uma trilha sonora duradoura, capaz de nos levar a superação dos ritmos manjados e de um Ego que muitas vezes se transforma em um charco.
Isso é dado ao longo de todo o disco, através dos temas que abordam o problema atual da conectividade total, do racismo que incrivelmente não se apavora com as palavras de ordem, com os tombamentos e lacração de internet. As palavras e as ideias nos cortam se ancorando em ritmos e construções de samples que produzem uma sonoridade e uma lírica muito próprias. Mas diante da rapidez estúpida, o disco do Bface requer atenção às provocações em suas formas e sentidos, ou seja, requer do público que este se desligue dos feeds e da tentativa de responder rapidamente às questões que o artista levanta..
Dessa forma podemos nos entender também como sementes passíveis de compartilharmos outros modos de vida, de outras poesias e ritmos através da cultura hip hop. Essência crítica que nos faz entender que as práticas precisam ditar os rumos da teoria e não o contrário. Composto de 12 faixas entre interlúdios e músicas, o disco soa rápido atento aos tempos, porém ao longo de suas músicas somos convocados a atenção diante do que está sendo dito. Somos convocados a ouvir atentamente cada um das produções e buscar as ligações possiveis entre cada um das faixas.
Fruir um disco com atenção é algo que vem sendo colocado no museu das velhas práticas, a impossibilidade de se concentrar muito tempo (23 minutos?) e ter a capacidade de refletir tem tido uma baixa exponencial. Egoritmos (2021) nesse sentido é uma concessão aos tempos atuais, pois possui o tempo de duração de um EP, como a maioria do que tem sido lançado hoje. Porém, ganha na densidade.
O curitibano reuniu em seu trabalho novo, alguns nomes muitos importantes e já com visibilidade nacional como Tuyo e Thiago El Niño, além do Eric Beats que produziu “Torrents” e é nosso velho conhecido. Além desses nomes, somos apresentados às participações de In, Pulso, Inaki e Fvve, e ao produtor Jxtacincx, que ficou a cargo de dois beats. O próprio Bface produziu a maior parte das músicas, gravou, mixou e masterizou, o que nos passa uma visão muito coesa em termos de timbres, sonoridades, mesmo que se utilizando de diversas referências que passam desde ritmos africanos até jazz e sambarock!
A faixa “Vilanias” já ganhou um audiovisual que teve a fotografia do Malik Marcelino e do Matheus Moura, e edição do Vitor Sawalf e Gabriel Hultazo, com direção de arte do próprio Bface. Em tempos de pandemia, o uso de mascaras se tornou uma proteção necessária para quem tem algum neurônio funcionando. No entanto, máscaras também sempre foram usadas pelos humanos como constructos subjetivos, a produção de rostos e feições a partir de nossas subjetividades e dos locais de interação.
E é nesse sentido que o MC chama atenção para as “Vilanias” que são frutos da hipocrisia de nossa sociedade, atacando diversos problemas estruturais que passam pelo racismo e pela falsa moralidade. E uma outra faixa que nós gostaríamos de chamar atenção é a faixa “Kolofé”, com participação do Thiago El Niño que aborda uma formação subjetiva cruel e perniciosa, além de estrutural em nossa sociedade: o Racismo. O refrão do MC de Volta Redonda nos leva a pensar sobre a importância de um tornar-se negro que rompa com todas as caracteristicas que nos são imputadas.
Ora, se estamos falando de romper com a formação subjetiva atual e sabemos o quanto o olhar do outro, os estereótipos e a sociedade nos imputa modos de pensar. Kolofé recorre a um resgate ativo de uma negritude por vir, uma benção emitida ao passado e às entidades ancestrais, aos grandes nomes da música e do pensamento da diáspora, assim como aos modos civilizacionais de África.
Quanto mais escutamos atenciosamente o disco do Bface mais nos sucinta ideias, muitos utilizam a função fisiológica de ser capaz de ouvir, mas esse trabalho nos chama a pensar a escuta que fazemos da música rap no Brasil. Bface é fruto e construtor de uma cena muito rica do rap nacional, que é a cena paranaense/ curitibana. Precisamos estar atentos ao fato de que da mesma forma que precisamos utilizar o tempo de modo “produtivo”, mesmo quando não estamos fazendo nada. Necessitamos também, nos colocarmos em um nomadismo nacional no que se refere a produções do rap nacional.
É assim que poderemos romper com os egoritmos que aprisionam o nosso pensar e construir algo para além do Ego e dos algoritmos. Bface fez uma boa contribuição nessa missão que é a verdadeira missão do hip-hop nacional no século XXI, resta saber se você está à altura dessa missão. Só assim vamos ser capaz de criar algo sem origem definida (um inconsciente rico), mas com uma construção irresistível tal qual o fez o Ben, Salve Jorge!
-Bface extendendo a cadência com Egoritmos (2021)
Por Danilo Cruz