Bate-papo que fortalece: entrevista com Leila Grave

As Minas que Fortalecem conversaram com a baterista Leila Grave da banda soteropolitana Macumba Love. 

A baterista da banda Soteropolitana Macumba Love, Leila Grave, topou conversar com as Minas que Fortalecem e você confere a seguir essa interação enriquecedora.

Leila
Leila Grave em ação. 

MQF: É uma alegria para nós poder trocar ideias contigo, Leila. Especialmente neste momento de pandemia, quando sentimos tanta falta de estar perto de pessoas queridas e de ver as bandas que curtimos ao vivo nos palcos.

Leila Grave: O prazer é meu em saber que existem mulheres se movimentando e ocupando espaços, ainda que, neste momento, de forma apenas remota.

MQF: É inevitável pensar no que está acontecendo e, dentro desse contexto, gostaríamos de saber quais são os principais desafios percebidos por você em meio à atual crise sanitária.

Leila Grave: Por ser uma mulher negra, profissional do SUS e também psicoterapeuta, tenho estado bastante preocupada com tantas mortes, lutos difíceis, pressão no sistema de saúde e os impactos da pandemia na saúde mental das pessoas, principalmente de grupos populacionais mais vulnerabilizados. O cenário político e as consequências socioeconômicas são devastadoras! Me preocupa o aumento do desemprego, da miséria, das violências, do genocídio do povo preto, do feminicídio, do suicídio e dos assassinatos de pessoas trans. Os principais desafios, na minha opinião, estão relacionados ao enfrentamento dessas situações críticas e urgentes!

MQF: A situação se agrava no país com a conduta desse (des)governo e seus simpatizantes, mas o underground resiste em todos os cantos do país. Em 2020, a Macumba Love participou da coletânea ‘Nordeste em Chamas’ com outras 100 bandas do nordeste. Como foi essa experiência?

Leila Grave: Foi a primeira vez que participamos de uma coletânea e ficamos muito felizes com o convite. Acho que iniciativas que valorizam o que tem sido produzido no Nordeste, ao longo dos anos, é muito importante porque mexe com a cartografia do rock aqui no Brasil, trazendo para o centro outras produções para além do que é feito no Sudeste e no Sul.

E com relação ao momento atual, acredito que vários formatos criativos são possíveis para falar sobre esse cenário em que vozes fascistas têm encontrado tanto eco… E, historicamente, o underground tem sua importância nesse enfrentamento e não podia ser diferente nesse cenário em que estamos vivendo. Para mim que vivi minha juventude nos anos 2000, as canções antifascistas nunca fizeram tanto sentido!

MQF: E falando da música, fica aqui registrado o nosso orgulho e gratidão pela existência da Macumba Love no underground baiano. Você pode falar um pouco sobre a origem e influências da banda?

Leila Grave: E deixo aqui a minha gratidão e o reconhecimento às mulheres que vieram antes de nós! A Macumba Love é uma banda que nasce a partir da conexão com os “17 anos”, uma fase em que escutávamos muitas bandas como Sleater-Kinney, L7, Bikini Kill, Veruca Salt, Hole, Dominatrix, The Biggs, Bulimia, TPM, dentre outras. Era um momento de um certo fervor do riot grrrl! Foi muito transformador pra mim! Nessa época dos nossos “17 anos”, com todas essas referências de mulheres tocando, isso reverberou aqui em Salvador! Tínhamos meninas tocando e frequentando shows aqui na cidade. Tocar era uma forma de estarmos juntas, construindo algo em comum. E a Macumba Love surge quase 10 anos depois disso, em 2011, em uma outra fase de nossas vidas, quando a vida começa a ficar bem mais corrida, cheia de compromissos da vida adulta. Sentíamos falta de quando vivíamos essa outra época, uma época em que tínhamos mais momentos juntas, momentos de trocas e de construções mais coletivas. E ter uma banda era uma forma de continuarmos nos encontrando, mantendo acesa essa essência de expor nossas ideias, nossos questionamentos, nossas angústias e nossas reflexões sobre a vida cotidiana de mulheres.

Leila
Macumba Love

MQF: Ainda refletindo sobre as influências, surge aquela reflexão sobre como as vivências na cena alternativa e na música impactam na formação das pessoas. Olhando para trás, você percebe que suas ideias precedem a música ou foram inspiradas por ela?

Leila Grave: Acho que foi um movimento concomitante. Em algum momento da adolescência, eu passei a questionar opressões de gênero, desigualdades sociais e preconceitos relacionados à população LGBT. Então a música foi uma via importante de canalização dessa energia questionadora e também de muita raiva diante de tantas injustiças. Foi a música que ajudou a encontrar pessoas que sentiam coisas parecidas com as quais eu sentia e ideias também. Acho que a cena alternativa é literalmente uma alternativa para as existências de pessoas que se sentem muito estranhas no mundo, e isso é, de certa forma, reconfortante. Acho que ter vivido tantas coisas neste meio foi muito importante pra mim. Em algum momento da vida, tive dificuldade de integrar essa dimensão, como se ela não coubesse nas outras versões de mim mesma, como no trabalho, por exemplo. Hoje, apesar de não viver a cena como já vivi em outro momento da vida, é muito mais tranquilo e sinto orgulho de tocar numa banda. E gosto muito de dizer que sou psicoterapeuta, sou baterista de uma banda de rock e sou tantas outras coisas! Inclusive isso já possibilitou vinculações importantes em diálogos psicoterapêuticos… Já houve situações em que foi a partir de conversações sobre bateria, sobre música, sobre rock que possibilitou que alguém se sentisse mais à vontade para falar de si nos atendimentos comigo.

Leila
Macumba Love em ação.

MQF: As questões de raça, classe e gênero ainda são latentes em nossa sociedade e, como comunidade, a cena alternativa também é solo fértil para conflitos e lutas, especialmente neste momento histórico. Pensando nisso, como é ser baterista, negra, mulher e fazer rock em Salvador?

Leila Grave: Essa é uma pergunta necessária, pois a música foi um caminho muito importante para eu dar vazão aos questionamentos relacionados a desigualdades sociais e de gênero na minha adolescência, mas eu não tinha reflexões sobre como a dimensão racial me afetava, e sempre me afetou muito, obviamente. Como eu nasci em um meio de classe média, minha inserção na cena alternativa acabou passando muito pelo encontro com pares brancos, em sua maioria. Sei que em bairros economicamente periféricos de Salvador acontecia muita coisa protagonizada por pessoas negras, mas eu não vivenciava muito essa realidade. Meu circuito era meio “orla”, e, nesse sentido, sei que minha experiência pode ter muitas semelhanças, mas algumas diferenças com relação a outras meninas negras do rock. Como eu disse anteriormente, me inserir neste meio foi muito constitutivo pra mim, mas, por outro lado, eu não me sentia como as outras meninas da cena. E o que eu não conseguia nomear era justamente essa desigualdade racial. E a Macumba Love surge na mesma época em que iniciei minha transição capilar, o que foi um marco importante na minha vida e um indicativo de que foi apenas na adultez que eu comecei a tomar consciência de alguns processos subjetivos como mulher preta. Hoje entendo que muito do que me limitava e que era nomeado como “timidez” tinha a ver com eu não me sentir socialmente autorizada a fazer muitas coisas por ser uma menina negra. Atualmente, me sinto muito fortalecida como uma mulher adulta negra e fico feliz em poder representar outras meninas e mulheres negras no rock aqui em Salvador.

MQF: Em relação ao machismo e sexismo, o que você observa na cena de Salvador? Você já viveu ou presenciou alguma situação desse tipo?

Leila Grave: Sim, presenciei muitas situações sexistas, machistas ou mesmo misóginas. Quando eu era adolescente, bastava ter uma banda de mulheres em cima de um palco para alguns caras gritarem coisas toscas como “gostosas”. Graças a nós e às mulheres que vieram antes de nós, situações absurdas como esta, que envolvem violências, são mais reconhecidas como sendo fruto dessas desigualdades entre os gêneros. Nesse sentido, hoje sinto que rola mais respeito. Mas fico atenta às sutilezas dessas disparidades entre os gêneros. Acho que o fato de ficarmos mais retraídas tocando, com medo de errar ou por não saber “tocar bem” é um reflexo dessas estruturas machistas em que meninos sempre foram muito mais estimulados a tocar um instrumento desde cedo, e de como muitas de nós, mulheres (no meu caso, mulher negra), internalizamos um senso de incapacidade muito grande. As iniquidades entre os gêneros também fazem com que os caras continuem se desenvolvendo e frequentando os espaços de produção de música, enquanto mulheres adultas, em sua maioria, estão acumulando cada vez mais tarefas de gestão do cuidado de vidas, ainda que essas mulheres não sejam mães, afinal de contas, o cuidar é uma tarefa socialmente atribuída a mulheres. E toda essa carga mental (e física) faz com que muitas de nós não priorizemos tocar um instrumento, ir a um rock, pesquisar uns sons novos ou sair pra ensaiar. E acho que a quantidade de mulheres na cena hoje em dia tem a ver com isso também. Antes da pandemia, nos espaços onde eu transitava, via poucas mulheres. Algumas estavam desenvolvendo protagonismos na cena e outras estavam como as namoradas ou esposas dos caras, indo apenas para acompanhar. Então acho que as manifestações do machismo e do sexismo podem ser muito sutis, até mesmo para nós. Essa ocupação que vocês (Minas que Fortalecem) fazem é uma contribuição importante para a desconstrução disso!

Leila
Macumba Love.

MQF: Em meio às dificuldades que enfrentamos agora, muitas bandas pararam e outras se viram para manter a atividade, até mesmo divulgando gravações caseiras. Para a Macumba Love, como está sendo este momento? Há algum projeto em andamento?

Leila Grave: A gente sempre foi uma banda atípica, sem regularidade, com alguns períodos de atividade e longos tempos de hibernação (risos). E a pandemia emendou em uma dessas lacunas… Estou sentindo muitíssima falta! Atualmente, cada uma de nós está vivendo seus próprios processos particulares e espero que, em algum momento, possamos voltar a priorizar a banda.

MQF: Mais uma vez, agradecemos a você por chegar junto e fortalecer conosco. Para finalizar, gostaríamos que você aproveitasse esse espaço para deixar uma mensagem para todes que acompanham esta entrevista.

Leila Grave: Gostaria de indicar um material bem interessante! Emília Nuñez, uma das guitarristas da Macumba Love, é escritora infantil e escreveu um livro muito inspirador, que se chama “A banda das meninas”. Esse livro traz alguns elementos da minha trajetória e conta a história de Leiloca, uma menina que queria tocar bateria em uma banda. Acho que ilustra muito desse meu processo de fortalecimento. E é bem bacana vermos o quanto esse conteúdo tem motivado meninas a quererem tocar um instrumento. Então deixo essa dica aqui para quem estiver lendo essa entrevista. Por fim, gostaria de dizer que eu me sinto muito lisonjeada em poder compartilhar algumas experiências, reflexões e ideias aqui nesse espaço. Vida eterna aos protagonismos de mulheres, em sua ampla diversidade e plenitude! Que nossas vozes continuem ecoando pelo mundo. Obrigada!

Mais sobre as Minas que Fortalecem no Oganpazan:

Leia aqui.

Conheça mais de Leia e da Macumba Love assistindo ao episódio 05 do Web Documentário Cena Morta.

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