O produtor, MC e beatmaker Barba Negra lançou o segundo volume do projeto O Pirata em Tokyo, com a combativa companhia de 9 samurais!
Escrevemos sobre o volume 1 deste projeto do Barba Negra e ali narramos nossas impressões sobre a qualidade do produtor e dos 11 samurais convocados para esse ethos de resistência contemporânea ao esvaziamento do hip-hop nacional. Ouvir o tamanho e a força do Vol. 2 do O Pirata em Tokyo é um exercício de extensão do impacto do primeiro volume, pois nos leva a outras dimensões dessa operação de saque da cultura japonesa, onde os espólios são generosamente compartilhados.
Uma primeira dimensão que nos salta aos olhos, diz respeito a quem são essas pessoas? Onde elas estavam, quais as suas condições de produção, porque sua arte não é amplamente conhecida se nos deparamos com um trabalho deste nível? Se você não sabe, você deveria prestar atenção ao que tem consumido quando se trata de rap. O público do rap é como todos os outros públicos teleguiados, agora pelos algoritmos e pelo poder do capital, pelo instinto de manada que faz você aí que está lendo, “se decidir” sobre o que vai ouvir a partir da manipulação algorítmica e da produção da ignorância!
Ora, já que estamos no Japão nada melhor do que nos remetemos a Kon Ichikawa e ao seu filme Matatabi de 1973. Um dos maiores cineastas do grande cinema japonês não é utilizado como referência aqui, porém nos informa sobre a condição e sobre a posição do papel desses atores e atriz no cenário do rap nacional. Usamos samurais e ninjas nas descrições das batalhas do primeiro volume, mas deveríamos tê-los chamado pelo nome certo: Toseinin. Os toseinin eram guerreiros japoneses que ganhavam a vida com pequenas apostas e com pequenos crimes.
Veja, se nós estamos chamando artistas que são parte de uma safra riquíssima de Toseinins é porque estes foram colocados assim diante da escala hierárquica produzida entre os melhores e piores no rap nacional em 2022. Muitos destes artistas não vivem de sua arte, apesar de seguirem elevando o nível da cena, muitos deles estão colocados em uma posição hierárquica que os obriga a lutar de todas as formas possíveis para se manter produzindo. E para além dos holofotes a simples existência deles ilumina a cena.
Diferentes cores, o rap nacional é um arco íris mas você precisa ver!
Barba Negra um dos melhores beatmakers do país que não vai estar nas premiações de fim de ano, fez dois trabalhos esse ano que certamente o tornarão potencialmente mais longevo do que já era na história do rap nacional. Pois, se você querido Gafanhoto ou Gafanhote ou ainda Gafanhota que está lendo esse texto não sabe, Barba Negra além de ser um puta beatmaker e produtor é também um dos grandes MC’s do país.
Sua atual produção que caminha dentro da linha do drumless ou boombap contemporâneo que é como prefiro chamar, afinal pós-rap teria que definir uma forma musical e poética que ultrapassa a mera forma da batida e da rima, tem nos presenteado com atualizações das estéticas estrangeiras com o Braselda e agora com O Pirata em Tokyo, todos dois com dois discos e o Braselda – junto ao Mister Jordan – com um terceiro em breve. É um trabalho que por si só já impacta muito a história do rap nacional. Mas ainda assim, temos que ver uma pá de arrombado que não conhece o que tem sido feito no rap, ganharem o jogo babando o ovo de artistas lançando trampos em beats completamente repetitivos. Temos que observar artistas que não buscam pensar no que estão produzindo e apenas repetem fórmulas, é a vida né?
Mas, aqui podemos notar que não basta ser Japa, ou meramente falar Japão para fazermos o Japão aparecer na nossa frente. A linguagem, o trabalho em torno daquilo que seja música precisa enfrentar o desafio da criação para que o conceito se presentifique. E neste sentido, O MALDITO Ladrão de Loops aka Barba Negra é mestre e por isso mesmo um Toseinin, pois consegue utilizar a tecnologia do roubo, desenvolvida pela cultura do sample de modo exemplar.
Ouvir o volume 2 de O Pirata em Tóquio é entrar em contato direto com os cortes do filme Sonhos (1990) do grande diretor japonês Akira Kurosawa. Não posso deixar de citar aqui o meu irmão Giorgio Ferreira e o meu irmão Carlos Inácio pois assistimos esse filme juntos, e por muitas cervejas compartilhamos nossas impressões sobre os “contos” que compõem os Sonhos de Kurosawa,
É certamente um amanhecer do rap nacional, toda essa cena do underground que prima pela criatividade, seja no boombap, seja em qualquer outro estilo musical que mantenha a busca por novas formas e a insistência pela velha mensagem sempre renovada. O tesão para mostrar o quanto AXL é um filho da puta – com todo respeito a mãe desse rapaz – que rima com uma precisão poucas vezes conseguida – como um arqueiro Zen – em um beat drumless, inclusive nos mostrando que nasceu em 90, é grande.
Eu também chorei assistindo O Túmulo do Vagalume, mas Nairobi nos conta que mais do que a bomba atômica, chove mil balas sobre nós, antes de sermos namastê. Bianca Hoffmann segue equilibrada em qualidade – ou buscando – nas suas linhas com sua mente samurai. A verdade é que é muito bom estar vivo para ver o arco-íris que surge após a chuva e sermos capazes de pedir desculpas depois dos nossos erros e enfrentar a morte!
Outro mano que estava na primeira batalha e que segue aqui é o Rato que é de uma habilidade capaz de pegar moscas com os pauzinhos e faz japonês querer aprender português para rimar junto. Tunza segue violento e aqui desfila referências em velocidade com a mesma potência de hadouken. Mistah Jordan e Diamante dividem uma faixa e o Mistah tem a ousadia de passar pela Bahia pra mandar um Barril Dobrado nessa música, e o Diamante mantém a humildade do trabalho em voga.
Direto da guerra entre facções em Salcity, o Galf AC segue mandando as rimas com um flow que transmitem uma mensagem fundamental para combatermos o mercado escroto do rap e a produção de MC’s e Produtores como Toseinins:
“Fazer revolução é começar do seu próprio abrigo, fazer conexão é voltar ao seu próprio início”
Ao rimar sobre capitalismo e a violência despertada pela ânsia de lucro, o MC baiano além de ir além nas ideias, posiciona bem estes Toseinins. Membro da yakuza do rap nacional, Mattenie nos dá uma aula sobre empatia e compaixão, soturno no flow mas preciso no que quer e nas dores dos outros. Quem fecha o trampo é quem começa: Pazsado. O jazz japonês que é maravilhoso é o teor musical na faixa onde um dos grandes poetas do rap nacional rima suave sem batida, Pazsado segue e se despede de nós desse colóquio de rua do rap nacional imbuído e adubado pela cultura japonesa!
A faixa que encerra o trabalho é um instrumental do Barba Negra que escolheu terminar a obra com uma faixa grave, uma intenção musical que nos remete aos problemas levantados aqui e alguns deles dichavados pelos MC’s sobre outras perspectivas. Somos parte da natureza é bem verdade, mas precisamos entender a cultura e lutar para mudá-la, pois somos parte mas somos diferentes dos outros seres.
-Barba Negra, O Pirata em Tokyo Vol. 2 – Um amanhecer após os sonhos de uma outra vida!
Por Danilo Cruz