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Baiana System – O Futuro Não Demora (2019)

Baiana System – O Futuro Não Demora (2019) Em seu terceiro disco, a turma expande as fronteiras de sua música apontando um futuro libertador

Desde o século XVIII a formação dos centros urbanos necessitava de um certo tipo de entretenimento para se encaixar nos moldes culturais que a metrópole impunha à colônia. Tais formas de entretenimento eram propiciadas de forma privada para convidados especiais e um destes entretenimentos que estava sendo praticado no Brasil era a música patrocinada pelos ditos proprietários de posses, que tinham orquestras formadas por escravos “educados” para reproduzir sucessos europeus com violinos, violas, dentre outros instrumentos eruditos.

Qual a razão de iniciar esta resenha acerca do disco O Futuro Não Demora (2019), dos conterrâneos Baiana System? Pelo simples motivo de que neste álbum, a banda reforça cada vez mais que a voz da massa é popular, e sua música é a linguagem de igualdade para um povo que viu o passado passar num piscar de olhos e está diante de um futuro em seu presente. É atemporal este notório trabalho que chegou aos nossos ouvidos em pleno 15 de Fevereiro de 2019. Ano em que o país está imerso em um mar de lama, crise política, violência, desigualdade social, racismo cada vez mais exacerbado, ou seja, uma verdadeira arapuca.

A liberdade conquistada pelo Baiana System a bordo de seu terceiro disco, pilotando seu Navio Pirata pelo mundo afora é a prova viva de que a música negra tomou de assalto e botou fogo na fazenda pra queimar plantação, com a casa grande incendiando e a senzala quebrando os grilhões da escravidão. É chegado o tempo de se firmar a identidade de um povo com dignidade e beleza em sua totalidade, tendo a arte como aliada no combate diário das injustiças sociais as quais somos submetidos. O canto dos navios negreiros ecoou com sabedoria nos belos arranjos deste disco. Podemos considerar uma obra altamente elaborada de forma orquestral sob as bênçãos das águas, sejam elas salgadas, doces ou de cheiro. E sob o comando de Yalodé, que as águas iniciam seu curso neste disco. Vamos embarcar nesta viagem:

A primeira faixa traz a influência máxima do Ijexá, ritmo originário da cidade de mesmo nome, oriundo da Nigéria, berço dos povos Yorubás. O tema é permeado pelos sopros da Orquestra Afro Sinfônica sob o comando do Maestro Ubiratan Marques, seguidos de versos como: “Água de março é chuva que vem, água de beber camará“, que remetem tanto a capoeira Angola quanto a Tom Jobim sob as vozes de Antônio Carlos e Jocafi. O Ijexá, ritmo tocado nos candomblés para Oxum é envolvente e se mistura às vozes femininas que entoam um mantra: a palavra Yalodé, título que Oxum recebeu entre as mulheres como sendo a mais importante na organização do mundo. Literalmente, o Baiana chegou lavando a égua, trazendo ouro em pó para comprar a alforria através do som das águas.

O conceito de que o disco é atemporal vem na segunda faixa, “Bola de Cristal”, no qual a revolução é ditada através do ritmo Afro-Latino mesclando salsa com guitarras africanas que remetem de cara King Sunny Ade. A letra inicia dando o tom da prosa, afirmando que não há diferença do homem moderno pro homem de Neanderthal. Os versos “O futuro ninguém vê, o passado já passou e o presente é você” soam como incentivo para mudar o mundo começando por si mesmo através de uma nova perspectiva da realidade.

As diversas culturas africanas das nações vindas para o país, mantiveram um contato estreito com o tráfico de escravos e se deu o multietnismo e multilinguismo. Bantus considerados os antigos por serem os primeiros a aportarem em nossas terras e Yorubás os contemporâneos, se encontraram na mixagem de culturas musicais, religiosas, étnicas. A terceira track retrata este paralelo entre culturas: Zulu Nation / Nação Zumbi / Ilê Aiê / Rumpilezz. O rap mistura-se ao ijexá mais a frente na canção com novamente Antônio Carlos e Jocafi citando deuses yorubás e bantus: Olorum, Ndandalunda e Obatalá. Bass Culture! Africa is the Future!!!

Manu Chao vem como convidado especial “Sulamericano” na canção recheada de cumbia e reggae. O tema central reflete a mesma violência que acontece nas veias abertas da América Latina e o poder falho da justiça, da exploração econômica e a absurda dominação política no continente.

Diretamente da pequena ilha, os ecos e reverberações anunciam good sensations com Curumin e Edgar, no mais puro reggae Trojan style em Sonar.  Belíssimas melodias vocais soul com toast jamaicano. Put some fya and legalize it pai!!!

A linguagem do novo álbum remete à soberania do tambor como alicerce rítmico pulsante no coração da ancestralidade brasileira. A riqueza presente nos arranjos, digamos mais orquestral, tem profunda imersão nos maestros Abigail Moura, criador da Orquestra Afro-Brasileira, pioneira em traduzir o som dos atabaques e os cantos dos terreiros de candomblé quebrando preconceitos quanto ao que era pejorativamente chamado de “macumba”.

Há semelhanças nos trabalhos de Abigail Moura e o operista Antônio Carlos Gomes que nos faz refletir que ambos traduziram a cultura dos povos africanos e indígenas em suas obras. É notável que o Guarani atravessou gerações e encontrou ecos nos arranjos dos metais de O Futuro Não Demora (2019). A atemporalidade da música popular traduzida pelo Baiana System saúda Villa-Lobos e Lourimbau no mesmo patamar de sabedoria e genuinidade. Eis que no meio do centro da terra, o berimbau cruza a ilha, o mar e a cidade de São Salvador numa melodia em forma de mantra entoada por Lourimbau com a característica de preenchimento sonoro para uma profunda reflexão na metade do disco. Um breve interlúdio introspectivo. Uma forma de olhar para dentro de si e sentir-se parte do todo.

JUNGLE X SAMBA REGGAE – A fusão de dois movimentos de resistência musical

Dentre os elementos estéticos utilizados pelos blocos afrobaianos que buscavam inspiração na África, destaca-se a musicalidade percussiva desenvolvida pelos povos africanos, cuja estrutura revela a polirritmia … também presente na configuração do samba reggae.” (Goli Guerreiro) 

O Samba Reggae marcou a identidade dos blocos afros de Salvador, resgatando o potencial do negro perante uma sociedade racista e opressora. Fez o negro sorrir e afirmar que o charme da liberdade é conquistado com muita luta na selva de pedra. A estética foi construída de acordo com a nação de africanos residentes em determinados bairros e tomou as ruas transformando levadas de guitarras jamaicanas em batucadas acompanhadas das vozes de um povo forte e guerreiro. São africanias presentes no intercâmbio de linguagens musicais resultante da interação das nações que aqui se estabeleceram.

O jungle, cuja estrutura está completamente calcada nos drums and bass do reggae jamaicano se reestruturou nesse encontro com o samba reggae na faixa “Navio“, uma das melhores do disco. Completamente original e futurista, dita o rumo quente num senso de justiça que a segunda parte do disco aborda. Vozes que não se calaram nos navios negreiros. Prova viva é a faixa a seguir, “Redoma“, cantada em coro pelas belas vozes femininas do Samba de Lata da comunidade quilombola de Tijuaçu.  “Não cai, balança não cai, já fiz um desejo, balança não cai“. Ragga nervoso e forte!!! Destaque para as harmonias modais completamente nordestinas tocadas pelas guitarras baianas do mestre Beto Barreto.

A faixa “Saci”, já conhecida pelo público nos shows mistura pagodão, miami bass, violas nordestinas e soa como uma brincadeira de criança dando um papo reto em quem é racista, machista e outros absurdos. É um som de igualdade, classe A no melhor estilo baile de favela!!!

Continuando a tocar fogo, a track “Sambaqui” dá uma surra de cansanção num barravento forte dando a liga para os grooves graves de “Arapuca“, que fala do atual cenário político lastimável do país. A crise avisou que na previsão não vai ter trégua nenhuma! Pura verdade. E por falar em verdadeiroh, Vandal de Verdade vem encerrando a trama dos tambores do disco num papo reto que faz lembrar Slave New World, do Sepultura nos três primeiros riffs das guitarras. Mais do que merecido era ter a grande voz do rap baiano neste disco. CERTOPELOCERTOH HOMI!!!

O epílogo traz o samba reggae de olhos vivos ditando a atenção para o futuro que já chegou mais rápido que imaginávamos .O fogo que queima em você também queima comigo – Estamos todos no mesmo barco, a situação é crítica e o Baiana System comprova com sabedoria a maturidade sonora e lírica presente neste grande álbum. E mais do que nunca, não é hora de deixar o barco afundar, é preciso segurar firme no leme e navegar.

Parafraseando Paulinho da Viola: – “O mar não tem cabelos que a gente possa agarrar“.

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