O Bahia Bass contextualizado num bate papo com Mauro Telefunksoul e Rafa Dias.
Muito tem se falado em revistas especializadas em música e nas brechas mais descoladas dos cadernos culturais de jornais de grande circulação sobre uma cena musical que vem despontando na Bahia, que chamaram Axé Bass ou Bahia Bass. Mas o que é o Bahia Bass? Um movimento, um gênero, um subgênero, uma expressão cultural e artística contemporânea que tenta reformular uma certa cena/ mercado/ tradição ou cultura musical baiana maçante (pelo viés do mercado) como foi o axé?
Se podemos dar alguma definição sobre o Bahia Bass, que tem vibrado sets e mixtapes no Brasil e mundo afora, é a de que ele é um movimento – se for. Não é um estilo, não é um gênero (ainda não, talvez). O nome agrega uma produção musical fértil e ampla que tem acontecido na Bahia, tanto na capital Salvador como nas demais regiões do estado, como Vitória da Conquista, Juazeiro, Paulo Afonso, Cachoeira, etc. Ou seja, capital, sertão, recôncavo, meio oeste….
E tudo começou quando o Selo Braza, comandado por Renato Martins, lançou o primeiro volume da coletânea Bahia Bass em 2014. Bati um papo com Mauro Telefunksoul e Rafa Dias (ATTOXXA) para saber um pouco mais dos meandros dessa movimentação, da sonoridade, como nasceu o nome, como a música deles despontou e como tem se desenvolvido as apresentações dentro e fora de Salvador.
Mauro Telefunksoul –, curador da coletânea, é Dj e produtor há quase trinta anos. Se diz um apaixonado pela bass music e conhece demais de música eletrônica e música baiana. Já tocou em bandas como a Negra Cor e no Sarau do Brown, fazia a alegria da galera com apresentações diferentes em casas como a Boomerang e a Borracharia, além de integrar o coletivo Crokant, com Dj Leandro e Dj Raíz.
Rafa Dias é estudante de música na UFBA, tem 26 anos e um longo histórico de projetos. Seu atual projeto é o bombante ATTOOXXA, mas já levou a cabo a Braunation, Os Nelsons e A.MA.SSA.
Mauro Telefunksoul me contou que para que saísse as coletâneas foi o seguinte: ele já produzia sua música, mas estava trabalhando com outras coisas ligadas ao eletrônico e dutch house quando Renato Martins, que já tinha lançado coisas como o Pesadão Tropical, do Rio Grande do Sul – uma mistura de funk com eletrônico -, perguntou o que ele tinha de produção que envolvia música brasileira. “Eu conhecia o Renato através do Funk na Caixa, porque entrei nos sites para pesquisar, nessa época eu tocava neo-funk e vi que esse Funk na Caixa colocava outras coisas. Aí mandei a mixtape que eu tinha feito e ele curtiu. ”
O volume 1 da coletânea Bahia Bass, com 8 faixas, traz os produtores do A.MA.SSA, Som Peba, Braunation, Lord Breu (com a faixa Malê Warrior), DaBeat28 (com Niuma), Loro Voodoo (com Marinheiro), Mangaio e o próprio Telefunksoul (com Jimmy Luv em Black Pow – Tributo ao Ilê Aiyê).
Mauro conta que desde 2005, quando viu o Dj Patife lançar a faixa Made in Bahia, pegando a percussão de Cortejo Afro com drum’n’bass, ficou com aquilo na cabeça. O espanto veio por ter um cara de São Paulo lançando uma música com a percussão da Bahia. Na verdade, Carlinhos Brown já tinha lançado também Maria Caipirinha com Dj Dero e Daniela Mercury andava fazendo algumas coisas, mas nada ligado ao timbre da Bahia, trabalhando em cima de um estilo musical. Na verdade, estavam combinando a percussão em cima de um loop reto. Foi aí que percebeu o que estava sendo feito, inclusive na “gringa”, e pensou em fazer a combinação: pegar o bass music, “que é a minha cara”, diz ele, “e botar o samba reggae que eu gosto, que é a batida mais grave”.
Sonoridades baianas: as influências e a atualidade
Isso demonstra, para Mauro, a não valorização do fundamento musical característico da Bahia, de onde surgiu a força dos ritmos até chegar na axé music, por exemplo. Todos esses fatores o levaram a gravar os remixes do Ilê Aiyê. No segundo volume, Mauro gravou um tributo ao Olodum com a faixa “Oh Lord!” e volta a homenagear o Ilê no terceiro, com “Ba$$dauê”.
Ele diz:
“ [O samba reggae] para mim é o divisor de águas e está aí há quantos anos e não tem homenagem, nada. Decidi fazer com o Ilê, apesar de o Olodum ser mais famoso, mas eu acho a percussão do Ilê mais bonita e é ligado ao movimento negro, essas coisas. Então chamei Jimmy Luv, já tinha gravado o beat e me perguntei se devia gravar voz ou não, e chamei ele para gravar um rap e fazer uma onda mais bass music com a percurssão da Bahia. E ele fez um rap homenageando o Ilê. Um paulista falando da Bahia… Gravei este tributo e foi meio ele que deu origem à coletânea. E aí Renato pediu para convidar a galera, eu fui convidando quem eu achava que estava no mesmo patamar de som e de produção. Tinha A.MA.SSA, tinha Som Peba, tinha Davi, Loro Voodoo, Lord Breu e Braunation, que é meio o Buraka Som Sistema daqui – e A.MA.SSA era um subprojeto deles, que era pagode, com a virada de pagode e tal, que depois se separou também, um foi pro Baiana [System, Mahal Pitta] e o outro virou o ATTOXXA [Rafa Dias].”
Já o ATTOXXA, projeto de Rafa Dias, prioriza na maioria de suas faixas o pagode da Bahia:
“Eu faço pagodão e arrocha, músicas da Bahia […] Lá em Salvador a gente conhece arrocha, a gente conhece pagode, a gente conhece samba reggae, arrochadeira, tem o axé que também não é estilo, mas a indústria fez com que virasse. É parecido com o Bahia Bass, bem no caminho de fora que olhou e falou: tem dez cabeças ali que estão fazendo um som que agrada, ou não, mas tem uma história ali… E aí falam: Bahia Bass. E aí tudo que chega aqui em baixo, em São Paulo, para eles é axé. Mas na Bahia é muito claro o que é arrocha, o que é pagode, etc., e temos dezenas de estilos de pagode diferentes e eu sei cada um […] O Bahia Bass, a princípio, é uma coletânea. Porque o axé ali quando nasceu, nasceu como indústria, né. Não nasceu como um pensamento musical. Existia uma música rolando mesmo e tal, como Luiz Caldas, que fazia uma música que era Bahia, mas que soava muito América Central também, né?! Também soava muito como lambada, salsa, coisas misturadas com a música daqui, mas acho que para ficar fácil eles falaram ‘isso aí é axé’. E é um problema que existe na música, que às vezes é necessário e às vezes não é. Tipo, tem a prateleira de música ali, como é que você vai vender a parada? Talvez até não querendo fazer isso, não quiseram ser axé, mas o próprio pensamento de facilitar meio que deu uma ideia do que fizeram. E a indústria fez isso, fazer o que? […] Você vai pegar um trampo de Riachão e falar que é axé? Aí você está matando o cara que está vivendo há 90 anos fazendo uma coisa. Isso é uma coisa que às vezes mata, às vezes diminui, às vezes despotencializa…”.
O volume 2 da coletânea saiu ainda em dezembro de 2014 com 10 faixas. Além dos produtores que participaram da primeira parte da coletânea, somaram no groove Vandal, Dj Werson, Os Nelsons, João Brasil (do Rio de Janeiro) e Capitão América. Já o volume 3, lançado em 2015 é aberto com a parceria de Mauro Telefunksoul com a rapper paulista Lurdez da Luz para versão de “Badauê”, de Môa do Katendê, com o trocadilho Ba$$dauê, em que ela canta: “Ijexá para quem vier ver/ Salve Môa do Katendê […] volto pra ti/mas tem parte que fica/ em Salvador para quem se identifica/ pedacinho d’África…”. E o volume segue com Dj Nirso, Mr Bobby, Dj Zé, Dj Leandro Vitrola, AnderBio, e novamente Vandal – agora com a faixa Las Vegas -, Loro Voodoo com Poder de Fogo e Panha, mais uma de Mauro com Lord Breu e Nairo Elo.
Os volumes do Bahia Bass repercurtiram bastante nas revistas e sites especializados em música eletrônica e experimental, como a Thump, The Wire e Generation Bass. Sobre essa repercussão, Mauro conta que:
Mauro comenta que ao longo da divulgação da coletânea, a crítica musical especializada acabou chamando o que estavam fazendo de “Axé Bass”. Assim como Rafa Dias expôs, ele também entende que a ideia de que o som das coletâneas sendo chamado de axé é uma “primeira visão” de divulgação, enquanto o trabalho que vinham produzindo ainda estava sendo entendido e recebido tanto pela crítica como pelo público. Sua visão corrobora o que foi dito por Rafa, ele diz: “Foi legal porque divulgou e tudo, mas é equivocado no sentido de que o axé delimita somente um estilo de música baiana. E a Bahia tem axé, samba de roda, coco, samba reggae, reggae, blues… tem de tudo na Bahia. Mas a origem mesmo é samba de roda, ijexá, percussão, arrocha, pagode. Não é Axé Bass, porque aí fica parecendo que o axé morreu e virou bass music. O axé é uma coisa e a bass music é outra, eletrônica”.
O rótulo de bass music foi também uma forma de agregar e fazer encontrar músicos com pensamento musical e produções similares. No soundcloud, principal plataforma de socialização e criação de áudio, as faixas compartilhadas no perfil Bahia Bass (bem como na página do selo Braza ou dos Djs citados aqui), sempre constam as hashtags bass, bahiabass, afoxé, afroxé, salvador, eletrônico, pagodeletrônico, pagodão, pagode, etc. De alguma forma, é uma maneira de conectar pessoas, mais do que de definir um estilo, pois a definição seria muito ampla e difusa, enfraquecendo a potência criadora de artistas que não necessariamente precisam residir no estado da Bahia para se identificar ou conhecer.
Tanto Mauro Telefunksoul, quanto Rafa Dias, apresentaram posturas convergentes no que diz respeito à rotulação do som. Mauro diz que: “Para mim tudo é música, coisa de linguagem, de cenas. As pessoas estão surgindo […] Eu quero que apareça uma cena nova e que cresça, não fique só em Bahia Bass, Axé e o que já existe… quero que escutem e falem que a Bahia é massa, que tem várias coisas. Tem cena de arrocha, pagodão, forró, etc. O que a galera não abre o olho é que hoje a música está sendo dominada por Djs.”
Para Rafa, a sua relação com a música envolve tanto a ciência matemática e exata da definição musical como a energia e subjetividade do universo da criação. Por isso a ideia de rotulação e de encaixar sua música num único movimento causa um certo desconforto. O que ele me diz é que: “Eu não faço música para ser alguma coisa, eu faço música porque a música está em mim. Eu acordo e penso ‘vá fazer música’, porque senão eu não acordo, fico frustrado. Se eu estou viajando e não estou com meu computador, meu deus, é um sofrimento… e aqui eu boto para fora. Então, eu não faço música aqui pensando no que vai ser…”. E diz que por estar trabalhando em diferentes frentes e bandas, se entrega mais ao que lhe toca, que no caso é o pagode e o eletrônico, seja adaptando-o para a pista ou para a música popular – “Então é isso, eu não me dou essa algema. Talvez as pessoas que estão me vendo procurem por isso, mas eu sempre abro o olho”.
É interessante entender, mesmo que parcialmente, um pouco de como pensam e veem a movimentação do Bahia Bass. Gostaria de ter tido oportunidade de conversar com todos os produtores envolvidos nas coletâneas e que tocam na noite de Salvador e Brasil afora. Pois, chegando hoje em Salvador, é possível encontrar diversas festas bass para ir, “às vezes até duas no mesmo dia”, diz Mauro, “e todas cheias”.
Minha conversa com Rafa Dias e Mauro Telefunksoul foi muito mais rica e profunda do pouco que tentei apresentar aqui, pois falamos de criação musical, da cena local de Salvador, mapeando as bandas, as casas de shows e o diálogo entre os ritmos e estilos da cidade, discutimos a configuração do mercado atual de música e como a figura do Dj se posiciona nele. No entanto, como isso é prosa para dar e vender, continuamos o papo aqui outra hora, refletindo junto com eles sobre estas questões.
Agradeço Rafa dias e Mauro Telefunksoul por terem me recebido tão bem. Espero que nossos papos musicais, sejam virtual ou pessoalmente, continuem.