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Baco Exu Do Blues – ESÚ (2017)

Baco Exu Do Blues entregou em seu disco de estréia, uma lírica genial no cruzamento de múltiplas referências em poéticas e suportes distintos

Foto: Fernando Gomes

“O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares.” Mircea Eliade

Parece que somente através de grandes feitos Diogo Moncorvo aquieta sua veia criativa, pois em pouco mais de um ano conseguiu a façanha de abalar as estruturas do rap nacional duas vezes e com louvor. Trazendo em sua persona artística o nome de um deus grego, um orixá e do gênero musical que deu origem a toda a música popular americana, Baco Exu do Blues lançou ESÚ (2017) e novamente sacudiu o cenário, gravando seu nome definitivamente na história do rap nacional.

A começar pela capa e sua iconoclastia, o artista segue sem pedir licença, posicionando-se firme num território extremamente espinhoso em nosso país, que é o cruzamento entre religião e racismo. O rap brasileiro já viu os orixás serem cortados da letra de uma música Racionais Mc’s (Formula Mágica da Paz), já se alegrou com a convocação do Buda e até pouco tempo atrás poucos se lembravam do gigantesco pioneirismo do Opanijé ao tratar do candomblé no rap. Bastou cortar a primeira e última letra do nome Jesus, e deixar em evidência ESÚ, para Baco dessa vez se converter em intolerante religioso reverso. 

A bela foto de um homem negro em frente à igreja da Ordem Terceira do São Francisco de braços abertos num gesto de desespero, vai além do insulto aos cristãos. Obra de David Campbell (Foto), tipografia de Gabriel Sicuro e contando com a finalização de Eric Melo (Base 071) a capa já é um marco, sem dúvida, do rap nacional. O cristianismo em seus gloriosos 2017 anos de existência fez por merecer todo tipo de reprimenda, após uma meia dúzia de genocidios. Diversos assassinatos culturais via conversão e reconhecimento do deus único. E ainda hoje encontra boa parte de suas vertentes religiosas pregando intolerância e preconceito, apedrejando pessoas de santo em nosso país, condenando homossexuais, inclusive ao suicídio, e toda uma série de opressões e injustiças historicamente consolidadas. 

Nietzsche tinha chamado a atenção para como o cristianismo é um platonismo para os pobres e de que forma a sua visão empobrecida da realidade custaria a vida de outros deuses. Felizmente as religiões panteístas sobreviveram para mostrar que existe muito mais coisas que a frágil relação entre a divisão entre aparência e realidade, entre o mundo das ideias e o mundo das coisas. E essa é uma das maiores contribuições que o candomblé mantém vivo para aqueles que não são os seus fieis. Um sistema de pensamento que encontra no respeito à Alteridade e no reconhecimento do divino nas expressões humanas e forças naturais seu impulso de maior compaixão.

O barroco da fachada da igreja com a inscrição de ESÚ e a contemplação desesperada de um homem negro remete-nos necessariamente a algo bem mais elevado que o insulto, leva-nos aos questionamentos que o disco vai aprofundar. A relação entre o divino e o humano, fé e razão, racismo estrutural, amor e sexo, relação entre artista e público e a depressão são alguns dos temas tratados pela bolacha. E artisticamente o rapper caminha para criar uma identidade musical calcada aqui no Trap, com uma admirável variação de flows, mas de franca nordestinidade nesta primeira parte do disco. 

A identidade visual do disco se aproxima também do grande fotografo Mario Cravo Neto que registrou lindas fotos de momentos profanos, momentos de folia, amor, homens, mulheres e crianças negras indexadas a cada faixa do disco. Enegrecendo o discurso com imagens muito representativas e ilustrando ideias de modo muito profundo em ESÚ, numa relação que vai tecendo um caminho complexo e de uma profundidade lírica incrível.

Como não praticante do candomblé e ao buscar ESÚ, uma divindade, um orixá, que é de extrema importância dentro do panteão dessa religião, Baco conseguiu, à sua maneira, criar uma obra de arte que pode ser entendida como uma forte expressão de Exu, com a potência e todas as ambiguidades que essa divindade guarda, daí sua grande sacada poética. Como baiano, simpatizante do candomblé, leitor ávido e artista, Baco Exu Do Blues consegue produzir uma expressão desse orixá que obviamente difere de trabalhos como os do supracitados Opanijé e mesmo das meninas do Onmira (De quem vamos nos ocupar logo menos). Como adeptos do Candomblé, as divindades presentes em suas composições não são questionadas por quem as cultua, o que é natural, pois já as trazem incorporadas ao seu imaginário como forças de uma presença solidificada pela fé. E nesse sentido Baco é aquele homem Barroco, cheio de dúvidas, críticas, questionamentos filosóficos diante das divindades e do mundo dos homens. Um verdadeiro neófito de uma crença mais que milenar e ao mesmo tempo um artista que começa um determinado sacerdócio no rap.

Em uma excelente entrevista concedida ao jornalista e fotógrafo Fernando Gomes, publicada no site Vice, Baco comenta: 

Engraçado que eu tava conversando com minha coroa hoje sobre isso. Quando eu me intitulei Exu do Blues eu não tinha noção de nada, não tinha noção do tamanho do nome. E aí foi ganhando sentido com o caminho que eu fui percorrendo e, hoje, o sentido é completo pra mim. Tem a ver com a questão do mensageiro, de abrir caminhos, de ser a entidade que mais sente o carnal e humano. Do caminho do meio, estar bem e estar ruim ao mesmo, aceitar e passar sobre isso. Meu trampo é isso, a confusão, nada certo e acho que é um bagulho que eu precisava colocar ali.

Faz bastante sentido, se pensarmos que Baco, deus romano ligado ao desregramento dos sentidos, ao vinho, encontre ESÚ em sua função de mensageiro de um conteúdo artístico, musical e poético que tem como origem e base a negritude. Faz bastante sentido também se pensarmos na sua jornada pessoal, do apelido da juventude fruto dos rolês regados a muito álcool (Baco) á o inicio de sua carreira de modo meteórico e como foi preciso muita austucia para chamar atenção e para se consolidar. Vale a pena ler esse mito muito representativo: Exu põe fogo na casa e vira rei

Ao seu modo Baco Exu Do Blues produziu uma síntese curiosa, que passa da sua herança familiar (a mãe professora que lhe pagava pra ler) de leituras da mitologia grega e da literatura mundial, de Jorge Amado ao Marquês de Sade, a um resgate simbólico de sua ancestralidade religiosa não vivida.

Não sendo o candomblé  uma religião de conversão, não sendo Baco Exu do Blues candomblecista, temos em ESÚ (2017) uma grande obra musical na trilha de tantas outras da música popular brasileira. Feitas por adeptos ou não da religião Tincoãs a Vinicius de Moraes e Baden Powell e mesmo Metá Metá. Mas que louvaram com explendor nossa forte herança africana na música e nos costumes. Obras que retiram sua força musical das bases culturais e artísticas complexas construídas pelos corpos e mentes negras de origem sagrada e num viés da  profanidade que nos é próprio. Complexidade que também é por sua vez a forma de construção musical do rap, ou pelo menos, sua potência máxima quando bem efetuada. A retirada de elementos musicais de sua caixa de origem para retrabalhar-lhos em outros termos.

E aqui precisamos mencionar o grande Nansy Silvvs que é o produtor responsável pelos beats e maravilhosos samples. Responsável pelas 9 faixas pós “Intro”, que ficou por conta do não menos importante produtor Scooby. Nessa “Intro” que vem com a participação do grande KL Jay riscando sem pena, como lhe é peculiar, já percebemos a tônica do disco. Com um sample da gloriosa Orquestra Afro-Brasileira, projeto grandioso do pouco falado maestro Abigail Moura, que resgatou elementos importantes da música afro-brasileira. Nessa pegada de resgate e valorização de sua ancestralidade, Baco já define algumas ideias que serão aprofundadas ao longo das faixas.

Entre essas ideias, a visão do ser humano tocado pelo divino, o entendimento dos humanos  como substâncias do divino num estranho panteísmo, tendo o poeta como o veículo de percepção e a poesia como expressão da mesma. Divino presente em todas as esferas da vida e dado a conhecer pelo desregramento dos sentidos. Poeta com o copo, mestre cervejeiro, buscando em Gregório de Matos inspiração para sua poesia, atualizando numa chave negra essa poética setecentista. A transgressão das normas pelos oprimidos, a conquista de um poder negado por gerações a muitos negros e negras. Impossível não lembrar do mesmo Boca do Inferno cunhado na literatura por Ana Miranda, em livro de mesmo nome, guardadas as diferenças. Suas percepções de uma Bahia do Séc. XVII, tem um quê de como Baco Exu do Blues trata essa visões de sua cidade e do próprio rap nacional com a mesma raiva presente em sua escrita. Escárnio e escória livremente inspiradores para as construções de uma visão atualizada do mundo plena de questionamentos e retratos satíricos da realidade.

O peso do discurso racial começa a ser expresso mais fortemente com “Abre Caminho“, mostrando que as composições – entendidas como música e letra – são o forte desse artista tão novo. Abrir caminho pra Exu é também entendido como respeito por uma força divina que é capaz de castigar, mas que mantém a justiça sempre em seu horizonte. Seja a do reconhecimento do artista diante do racismo apaziguado com a fama pessoal, mas sobretudo da estrutura que faz da negritude em sua tabela de cores, o culpado. Propondo sempre punição iminente: “Meus irmãos são mundos, vi vários rodar”.

Em discos concatenados por um conceito, discos de verdade, nós preferimos não escolher músicas preferidas, pois nós o entendemos como uma obra inteira. Porém, “Oração a Vitória” concorre para ser a nossa preferida, da bela voz emanando as palavras em iorubá de Xarope Mc, até todo o contexto e jogo poético sobre a própria caminhada do Baco Exu Do Blues, essa é uma faixa extremamente forte.

Que fique claro que a vitória já alcançada por Baco Exu do Blues desde o boom de Sulicidio se deve principalmente por conta do mesmo não ter batido cabeça pra nenhum cacique ou santo do rap nacional ou de sua cidade. Por não ter capitulado no Rap Box daquilo que tinha dito em poesia, além da má interpretação que a linha sobre soro positivos e a transfobia causou. Por ter entendido que a palavra pode ser explicada pela palavra e muitos torceram para o insecesso dele pós Sulicídio, a expressão dos sentimentos mais baixos veio a tona pelo Brasil inteiro. E ali então com apenas 20 anos, o jovem adulto se manteve firme, a vitória.

E nesse sentido, a brincadeira que seu alter ego faz com a ideia de herói é mais do que justificada, dada a quantidade de tarefas que teve que enfrentar pra se manter inteiro na cena. O tema da depressão já foi mais do que batido desde o lançamento do single, mas preferimos tomá-la numa acepção de mais um obstáculo gerado por conta da fama nacional. Musicalmente a faixa insere um vocalização dolorosa na voz do mestre Milton Nascimento em disjunção, com a forte batida com caixa e bumbo muito bem marcados. Uma excelente sacada do mestre Nansy Silvvs.

Rindo da tragédia como faria o bom e velho impulso dionisíaco, ele convoca o melhor lateral do mundo, filho do Bahia e deixa muito limpidamente colocado como rolou malícia juvenil para driblar a maldade veterana, ou se se quiser, a dureza da crueldade fitada pela leveza dos jovens. 

A ideia de herói retorna em “ESÚ” como que para deixar claro que ele não é o ESÚ e sim o Exu do Blues, humano em busca de grandes feitos. Querendo imprimir inveja nos deuses , amando sua preta e sofrendo pra provocar a rivalidade dos outros deuses. A inserção do sample de Mistério do Planeta (Novos Baianos) é uma boa referência para entendermos a ideia de humanidade que está presente no disco. Ser como se é, tornar-se na real, mas sobretudo entender que uma série de coisas vão se manter como mistérios. Daí a importância dos questionamentos, como na frase: “Será que somos deuses ou a sua criação?” 

Há sempre em sua poesia de inspiração bacante, fortes, potentes construções a louvar o divino dos loucos, dos bêbados, dos que divergem da ordem tal e qual se apresenta. De quem faz os ritmos inovadores e balançam os corpos para além da moral cristã, uma outra ética mais alegre, rave divina.

A sua verve mais humana se faz presente em “En Tu Mira“, as cobranças levadas em consideração, seu aspecto mais humano demasiado humanotrazido à tona com a genialidade de Nansy Silvvs. Num interlúdio rápido onde o beatmaker respeita a pausa depois de construída a melodia da música, mas ainda assim, floreia o beat com um coral que certamente é católico. Linda interseção de afetos como culpa, ressentimento e má consciência inseridos em um sistema de pensamento que não os comporta. E que só estão presentes talvez pra demonstrar como esses valores cristãos nos são prejudiciais, seja nos julgamentos, nas cobranças do outro daquilo que você mesmo queria fazer. 

Uma das músicas com mais apelo a outros públicos, de franca nordestinidade, calcada no manguebeat  a faixa “Capitães de Areia” de Baco Exu Do Blues é o equivalente histórico daquilo que de melhor fez o Chico Science em sua passagem pela terra, equiparando desmatamento e genocídio racial e buscando a conscientização racial na mesma esfera de importância da ambiental. Com super guitarras de Gabriel Brandão e guitarra baiana do Fred Menezes Filho, essa faixa ao vivo promete demais.

Nada mais adequado para um grito de um jovem adulto de 21 anos do que a relação entre os Capitães de Areia do Jorge Amado e as guitarras da Nação Zumbi. Se inserindo nessa geração que entre outros nomes traz: Froid, Djonga, BK, Dark, Mobb, Clara Lima, La Lunna,  todos jovens adultos. “Somos homens e mulheres livres” refrão projetando um exercito de ANTIFAS contra racistas, intolerantes religiosos, homofóbicos e afins. 

O dedo acusador com o qual tentaram lhe submeter em vários momentos é respondido em “Senhor do Bonfim” a sétima faixa do disco. Essa talvez seja uma das faixas que menos se emparelha na falange de grandes canções que o disco compila. Talvez faça mais sentido dentro da perspectiva de que as músicas fazem um retrato de sua epopeia pessoal e sim nesse caso melhora. A relação entre público e artista, questionada por Baco desde Sulicidio aqui encontra um grito de independência contra o fã clube, a favor e contra. 

O recurso a um sampler de Arthur Verocai, artista recentemente redescoberto através do rap gringo e objeto de culto dos neófitos de música brasileira, funciona perfeitamente. Jogada sensacional para exprimir a amargura serena de “A Pele Que Habito” e todas as males vividos, mas não menos os brios de quem tem uma alta estima bem construída.  A lentidão da faixa nos atinge como se estivéssemos sendo costurados com a pele do oprimido, excelente exemplar da força da poesia que Baco Exu do Blues produz.

Se você já foi ou viveu na periferia de Salvador, sabe o que significa “Te Amo Disgraça“, já deve inclusive ter ouvido isso de algum amigo, ter dito ou ter sido brindado por essa declaração por conta de algum amor. Talvez a música mais autoral no sentido do vivido antes ressaltado. Entre Baco e sua preta DJULLY, o baiano faz para ela que é capixaba uma declaração digna de nossa cidade. Uma das canções onde o mc arrisca um canto e acerta bastante, inclusive acerta em cheio na escolha da linda voz da Ellen Andrade.  Um dos pontos que mais tem conquistado o público pelo que podemos ver em publicações no facebook. Atualmente a música já bateu um milhão de views apenas no youtube, o amor contagia, não tem como disgraça! 

Fechando o disco temos a 10º faixa, “Imortais e Fatais“,  música que resgata uma pá de temas tratados no disco. E tudo é finalizado em termos apaziguados ou quase, o MC trata em seu flow de forma suave a força de estar no topo. Ao mesmo tempo que se  consegue dar uma perspectiva mais coletiva de como devemos encarar o racismo cotidiano. Discute a existência e como nós a aproveitamos ou não, se mostrando como Apollo Creed ao invés do Apolo grego como exemplo a ser seguido. Lutador e belo num jogo interessante entre as referências cinematográficas, raciais e grega. 

Um disco que só poderia ter surgido em Salvador, que honra não somente a herança do rap soteropolitano que o mesmo MC já louvou em entrevistas, mas também faz jus a atual cena musical da cidade. Após toda a epopeia vivida pelo artista, o mesmo foi capaz de plasmar de forma bastante singular suas ideias, sofrimentos, recorrer a ancestralidade, mas acima de tudo a sua força de se afirmar artisticamente.

Longe de entrar na disputa de melhor disco do ano, entendemos ESÚ como um disco para marcar uma era. Uma era onde os artistas do rap nordestino não precisarão mais fazer o triplo dos seus colegas do eixo para ter a mesma visibilidade. Uma obra de arte que entra também no rol da música popular brasileira sem ser mpboy e não apenas no nicho do rap. E essa é apenas a primeira parte de uma obra dividida em dois.

Axé Baco Exu Do Blues!

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