Babidi e uma apneia coletiva em “Depois que a Água Baixou (2025)” – Resenha

Babidi lançou o disco “Depois que a Água Baixou”, um épico sobre a reconstrução da vida após um desastre social, produzido politicamente!

Babidi
Foto por @saantana.vi

Obras de arte como “Depois que a Água Baixou” do produtor carioca Babidi, sempre nos remetem a um turbilhão de questões, que nos acomete a todos, mesmo que não percebamos. O disco começou a ser produzido imediatamente após a baixa das águas que invadiram e destruíram a sua casa, em uma enchente no Parque Columbia, Acari, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. E aqui começa o redemoinho que nos traga para dentro de um disco que não apenas inova na forma, mas que nos traz um conteúdo muito impactante. 

Viver em diáspora é de certa forma um processo constante de pequenas e grandes apneias – suspensão momentânea da respiração – diante de uma sociedade constituída politicamente para o extermínio e a subjugação total das populações negras e indígenas. Milhões prendem a respiração por um instante, diante de um estado supremacista branco, de suas políticas de aumento da desigualdade, de uma sociedade racista, e no caso que aqui nos interessa, diante de catástrofes naturais construídas pela governança da branquitude.  

Prendemos a respiração por algum tempo, às vezes, diante da situação de nossos irmãos e familiares, quando não podemos ofertar nada. Diante, das centenas de casos de extermínio do nosso povo, das crianças aos adultos, e assim que constatamos nossa impotência. Alguns milhares prendem a respiração forçosamente, quando o barro das encostas arrasta os seus barracos, ou quando as enchentes te arrastam. Como no caso da jovem Amanda da Silva, de 12 anos, arrastada após cair em um bueiro, durante chuvas recentes na cidade de Dias D’Ávila, região metropolitana de Salvador.

Viver em diáspora é uma constante luta pela possibilidade de respirar, de preferência livremente. Porém, infelizmente por diversos fatores que não cabem aqui neste texto, a negritude, as minorias e mesmo a cultura Hip-Hop ainda pensa em termos de esquerda e direita. O trabalho de Babidi, entre outras infinitas possibilidades, nos leva a pensar que entre a extrema direita fascista nacional e a esquerda social democrata que alcança o poder para conciliar-se, as minorias seguem vivendo de migalhas enquanto o projeto de genocídio – inclusive em administrações PTistas – segue de vento em polpa. 

Nos resta a luta, mas antes dela a “empatia” no sentido mais pleno da palavra. E é isto que “Depois que a Água Baixou” nos traz essencialmente. Composto por 12 faixas, desde o depoimento do Seu Gerê, pai do Babidi de 74 anos de idade, somos encaminhados a entender que empatia, palavra que vem do grego EMPATHEIA, significa “Com-Paixão”. E neste sentido, em tempos de esvaziamento da linguagem, o disco do Babidi é uma surra de leitura crítica da realidade, de percepção do que realmente importa em nossas vidas. 

Imagine-se, Seu Gerê já no crepúsculo de sua vida, precisa reconstruir toda a sua vida, todos os pequenos bens que a custa de muita luta conseguiu. Uma produção em parceria entre Babidi e LP Beatzz, “Canoa Furada” não é uma simples introdução a um disco que será comercializado no mercado cultural, dentro de uma estrutura dos streamings no mínimo escravagista, é um convite a termos, tomarmos consciência e lutar COM-PAIXÃO. 

Babidi
Foto por @guthirrrr

Em um cenário do rap, onde MC’s se comprazem em destilar o que CONSEGUIRAM, em como a busca pelo PROGRESSO deve deixar os elos fracos da corrente pra trás, seu Gerê é o melhor MC de 2025 e o ano nem começou direito. Por que a “Canoa Furada de Seu Gerê” é a de todos nós, por mais que o cinismo meritocrata, feito para agradar a indústria cultural e a classe média branca, digam e utilizem uma imensa máquina publicitária para nos fazer crer o contrário.

Babidi convidou, o que podemos chamar de uma seleção de MC’s para rimarem nas faixas, e nesse processo, construiu uma obra onde os mesmos, podem ser pensados como “instrumentos” para um fim que não é do autor do disco apenas, mas novamente, de um povo cansado de prender a respiração. Vivendo numa era onde o Capitalismo segue sendo meramente administrado pela esquerda e pela direita, e onde a cultura Hip-Hop, ou o Rap que se quer parte dela, se regozija em cantar vitória, em falar apenas sobre gozolândia e umas lovesong bem meia boca.

“Como se o mal não existisse, como se eu nunca ficasse triste, como se eu não vivesse no limite, como se eu não pensasse em desistir, tem dias que eu quero sumir, tem dias que agradeço por estar aqui, Babidi” O Plano – Killa Bi

Na primeira música do disco, Killa Bi quebra a “quarta parede” e nos mostra que não estamos diante de uma mera encenação, onde os mc’s são convocados para cuspir barras, mas antes, em um exercício poético de total COM-PAIXÃO, onde as suas rimas integram e vão ser costuradas em uma visão mais ampla sobre o desastre. É o que faz na mesma pegada o Bonsai em “Até Quando?”, música que tem colaboração do CIANO. Em “O Que Sobrou do Céu”, Matheus Coringa como de costume esmerilha a lógica cristã, e nos coloca como povo vivendo em um purgatório, do qual em geral só se sai pro inferno. 

Um dos nomes que vem sendo mais destacados no under nacional, “yung vegan” em seus versos e ao seu modo nos coloca em um catástrofe permanente, como acima pincelamos. Ao criar o refrão da música “Cabelo de Pivete, Faca e Fé”, ele nos lembra que a nossa dimensão de “despossuídos” enquanto povo é quase que um dado natural. E que muitas vezes, é dessa dimensão de ódio diante do status quo, que muitos artistas como Babidi – e obviamente todos presentes no trabalho e além – surgem lavando seu ódio, suas qualidades, seus amores, suas groselhas em não apenas máquinas de samples, mas às vezes em batidas pré-programadas ou às inventando. 

A faixa do VND, “Sonhos na Despensa” é uma música que quebra mais ou menos com a sonoridade presente em “Depois que a Água Baixou”´, trazendo um “drill desacelarado” o que coaduna com os boombaps e um gospel presentes no trabalho. Na faixa VND nos leva a refletir sobre o ressentimento que muitas vezes a pobreza e o consequente “sucesso” podem carregar : “Eu não lembro de vocês quando eu tirei tudo na pressa, agora eu só faço dinheiro pra mim mesmo, uma promessa, eu carregava o rancor que são lembranças do passado, e tudo que eu trouxe comigo foram sonhos na despensa”.

Babidi
Foto por @saantana.vi

Estes versos do VND, nos leva a pensar em uma questão muito própria da Indústria Cultural Supremacista Branca que domina o GAME do rap nacional, e de que modo ela age em seus trabalhos de produção e difusão de produtos para que o que chegue nas periferias sejam falsos discursos de superação. Onde qualquer resquício de viés crítico é rechaçado em prol de uma visão ética onde o Outro é sempre o hater, se não concorda ou aplaude. Onde amigos se tornam um peso a ser descartado, onde colaborações artísticas são um mero negócio e onde por fim a arte dentro da cultura Hip-Hop se transformou em produtos de Marketing elaborados por Coach poéticos. 

AS DUAS SOMBRAS

Na encruzilhada silenciosa do Destino,

Quando as estrelas se multiplicaram,

Duas sombras errantes se encontraram.

A primeira falou: – “Nasci de um beijo

De luz, sou força, vida, alma, esplendor,

Trago em mim toda a glória do desejo,

Toda a ânsia do Universo… Eu sou o Amor.

O mundo sinto exânime aos meus pés…

Sou delírio… loucura… E tu quem és?”

– “Eu nasci de uma lágrima. Sou flama

Do teu incêndio que devora…

Vivo dos olhos tristes de quem ama,

Para os olhos nevoentos de quem chora.

Dizem que ao mundo vim para ser boa,

Para dar do meu sangue a quem me queira.

Sou a Saudade, a tua companheira,

Que punge, que consola e que perdoa…”

Na encruzilhada silenciosa do Destino,

As duas sombras comovidas se abraçaram

E de então nunca mais se separaram. 

A senhora Luiza Florisbal foi registrada pelo celular da tia Andreia do Babidi, e em “Depois Que a Água Baixou” faz mais esse brilhante registro da ancestralidade do produtor. Em um poesia de Olegário Mariano, poeta primo do clássico Manuel Bandeira, Dona Luiza nos mostra que a vida é essa luta constante entre alegria e sofrimento. Porém, muito longe de serem forças cósmicas apenas, são potências de vida. 

-Leia a resenha que escrevemos sobre o disco Vaso Ruim do quarteto mágico Vector, Bonsai, gust e CIANO

A participação de Vector Coletivo Delta e do gust – segunda metade do Vaso Ruim – na faixa “Ponta da Lágrima” é outro louvor de luta presente em alto nível no disco. Assinando as rimas da faixa homônima, Servo traz uma poesia riquíssima de significados e afetos, portando imagens poéticas muito longe do ordinário que domina o mainstream do rap: 

“Somos reis e rainhas no reino de Atlântida, e a água chegou no teto em questão de minutos, desespero e medo, tudo escuro, não sei se fico ou fujo, curto circuito a água varreu meu estúdio, meu deus olhai por nós filhos teus, vou ter que interromper a oração vai desabar fudeu.” 

Cruzando a mística bíblica e a política de modo bastante atual, em um período em que traficantes se nomeiam soldados de um deus fascista. E ainda mostrando as relações possíveis entre raça e cristianismo: 

Babidi
Foto por @guthirrrr

“Tente imaginar a cena um menorzinho falando que é o Medina surfando em meio aos ratos, em cima da porta de um móvel. Tá ligado, só nós tá preparado, se o mundo acabar em dilúvio eu buscando força para reconstruir tudo, ainda com o peito dilacerado, buscando força pra reconstruir tudo, se o mundo acabar em dilúvio, tá ligado só nós tá preparado”.  

Essa escatologia muito própria do Servo dialoga muito bem com uma visão muito plantada nas “comunidades” e favelas do Brasil inteiro, onde a nossa destinação é a aceitação de um sofrimento que não deveria acontecer. Pois se Deus manda o dilúvio, por óbvio há muito já superamos a possibilidade do velho Noé em construir arcas, mas sobretudo em antecipar e controlar os desastres. 

-Leia no Oganpazan a resenha e a entrevista que fizemos com o Servo!

A voz feminina volta antepenúltima faixa do disco com a Meg Pedrozzo, na faixa “Renascer”, que conta com a collab de Carcamano. Aqui a cantora, com voz muito bem empostada e bastante bonita e tocante, em uma construção que poderíamos chamar de Gospel aka “Louvor de Cria”. Na sequência temos o MMoneis com seu DJ HUDSON CRUZ, em um breakbeat “Tempo de Deus”, que dialoga no sentido do agradecimento a vida que restou e a busca pela reconstrução, ou seja da expansão da mesma.

Fechando os trabalhos, temos o Claudjin em “Súplica Fluminense” colocando as culpas em que é devido, a confusão mental diante do caos da vida e a certeza de ter de continuar. A faixa termina com um sample do clássico do Milton Nascimento, retirado do disco Geraes, na faixa Fazenda, em uma excelente utilização semiótica diante de tudo que é  expresso em “Depois que a Água Baixou”. 

A utilização deste sample, sobredetermina todo o disco e retira da tragédia relatada, qualquer dimensão natural, uma vez que é uma catastrofe política, social e sobretudo e antes de qualquer coisa racial. Aqui um excelente exemplo de utilização de sample de modo realmente criativo, porque boas produções não deveriam ser avaliadas pelas facilidades em liberar-se samples – muitas vezes clichês – e que fazem os “jornalistas culturais” que abordam o rap elevarem menos a forma de utilização – porque não sabem sobre o que estão tratando – e mais a mera utilização. 

Babidi ao utilizar esse sample, fecha com expertise máxima uma obra do Hip-Hop e não apenas do rap nacional…. “E o esquecer era natural….” Não esquecemos.

-Babidi e uma apneia coletiva em “Depois que a Água Baixou (2025)” – Resenha 

Por Danilo Cruz 

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