Áurea Semiseria e a sua trajetória de luta, ritmo e poesia preta ao longo de 10 anos

Áurea Semiseria lançou em 2024, o seu disco “Semiseria” que plasmou toda a sua excelência nas rimas e flow conquistados ao longo de 10 anos de lançamentos no rap baiano!

Áurea Semiseria
Áurea Semiseria Foto por @Karlabrights

“- Áurea Semiséria lá de cajacity quinem eu, filha de Dona Ana Semiséria, uma jovem sonhadora, casada com as ruas e amante do Hip Hop, fruto do underground baiano, essa aí é o puro suco de Salcity. Nosso caminho se cruzou graças ao Hip Hop, papo de 10 anos ou mais, eu nunca lembro datas, mas tenho a sensação de que é uma vida toda, de tantas histórias impressionantes que passamos, tantas que daria até um livro, um filme, mas no nosso caso tanta história nos rendeu um EP.

“O EP “SEMISÉRIA” é uma parte dessas histórias, é o que partilhamos uma com a outra (Eu, Áurea, Una), segredos, desejos, sentimentos contraditórios, medo, ansiedade, angústia e principalmente coragem. Como resultado dessas histórias que vivemos e para outras que ainda vamos viver; Coragem pra vivê-las. Então deixo aqui como registro de nossa coragem que se transformou em arte, uma manifestação de amor e amizade, um trabalho feito por sonharmos juntas, mas além de sonhar: realizar.

E essa é nossa realização, é a palavra lançada como um feitiço, é nossa arte na boca do povo, mas também no coração. Hoje sei que tudo isso foi uma vida toda vivida juntas, mas agora podemos partilhar tudo isso com várias pessoas, vamo derramar esse feitiço?”

(Sista Katia— Direção criativa e DJ)

Como no depoimento acima, escrever sobre a arte de Áurea Semiséria, é acessar a arte crua lapidada. Um diamante Afrikano relatando por meio de falas duras e assertivas, problemas sociais, de gênero e vivências dentro de um recorte racial.  Nascida em Cajazeiras-Salvador-BA, Áurea Semiséria é uma potência dentro e fora dos palcos. Iniciou sua caminhada ainda no ensino médio e em 2014 foi descoberta pela rapper Amazonense radicada em Salvador, Mira Potira.

Em 2015 é convidada a compor o Coletivo NaCalada, e os anos seguintes resultam em inúmeros trabalhos…

Cyper NaCalada #1

(Prod: Joey Bada $$ )

“Cheguei!

Militante de internet,

presa ao plim plim das 7,

na era do Kit Kat,

pão com ovo foi meu mac,

Nessa porra eu sou Rainha, gostou pega a fichinha,

Os boy perde a linha, com o balanço da Pretinha

Cansada desses machos que só sabem falar (…)”

Cyper NaCalada #2

(Prod: Ramires Ax / Dactes)

“Sou Mulher independente do seu ponto de vista,

Não colo com as patrícia

Não sou puta, nem sou moça, nem assanhada, nem quietinha das que chegam pra causar,

Se for pra chegar, que seja pra somar (…)”

Áurea Semiséria chega em 2016 com uma bagagem musical aguçada para a cena da época, critica os ditos militantes de internet que só sabem reclamar sem nenhuma vivência de rua. Chama as Minas para uma reflexão racial, se declarando Rainha por compreender sua história.

No ano de 2017, Áurea Semiséria lança trabalhos com o selo NCLD, que compõe o projeto Intimus ROXOGG no canal do RDN (Rap Nacional Download):

Respeita

(Prod: Faustino Beats)

“E sem massagem, trairagem

Eu vou levando a minha mensagem

Sem tempo pra pilantragem

Na mãnha, na gangueragem (…)”

Os de verdade (Feat: Indemar Nascimento e Sico).

(Prod: Ryan Santos)

“Semiséria, o Sico e o Indemar

Os de verdade é só chegar e encostar

O NCLD é foda, você pode acreditar

Por que aqui nada pode nos parar

Sou Preta, sou de verdade

E vim de Cajazeiras (…)”

Sem massagem (Feat. Débora Evequer)

(Prod: Mansha)

“Ginga, fala gíria e dança

Mulher não é só modelo da Brahma

Tu pode ver, que é aulas espanca

Se bobear… nem curti Dolce e Gabanna

Eu quero as minhas Pretas no poder

Sem precisar aparecer pelada na TV (…)”

Sejam ditas

(Prod: Dactes)

“A vida não é feita só de uva sem caroço

Então escroto, não vem dar uma de bom moço

Conheço sua laia antes de entrar no game

A life ensina bem antes de se perder

De boca só oral, então não vem de ladainha

Me apresento, Semiséria o terror das patricinha (…)”

Áurea Abolicionista

(Prod: Dactes)

E olha eu em fi, pelo certo no corre do dim

Tentaram me encurralar, se passaram prossegui

Tô trampando com amor pra ver me monetário alto

E esses pela saco, não sabem fazer o que eu faço

Não conseguem me acompanhar, mas parada eu não posso ficar

Fique rico ou morra tentando, já dizia o Gangsta

Aqui está, a peça chave do jogo. (…)

Bela, recatada e dor lar é o caralho

Eu faço o que eu quiser

Tiro do suor do meu trabalho

Poderia facilmente passar horas escrevendo sobre todas as táticas, desejos, anseios e sonhos em meio a Diáspora Afrikana perversa em que estamos brutalmente inserides. Poderia citar vários textos e artigos do mapa da violência Racial no Brasil, mas nesse momento fazemos um movimento Sankofa. Voltamos a 2017.

Te convido a ouvir com atenção, pela riqueza contida. Letras que falam sobre Respeito, Ética, Orgulho em ser Preta, Empoderamento Feminino, Dessexualização dos corpos Pretos. Melhores condições de vida, inclusive nas tomadas de Poder. Um olhar aguçado para com o “game”.

Deus é Mãe

(Prod: RDN Free verse)

Aos que vivem a resistência

Pros pela saco é sem clemência

Quem gostou bate palma

Quem não gostou, paciência

Pro gueto é só descaso

Tamo morrendo de fato

Quem bater de frente já sabe, é pau no gato

Pular de um navio negreiro

Me ensinou a nadar

Deus é Mãe, não é babá

Uma Preta em Bagdá

Èpà Bàbà

Salve Oxalá

Clareia

Laroye vai me guiar

Deus é Mãe, não é babá

Essa faixa explosiva, desmistifica e ressignifica a ideia que foi ferrenhamente ensinada as Pessoas Pretas sobre Deus. Citando Emicida e sua grandiosa contribuição para a formação de Pessoas Pretas (…) “E se eu disser que vi Deus! E ele era uma Mulher Preta”

Áurea Semiseria
Áurea e Emicida no palco em show no Rio de Janeiro.

Cypher das Pretas

(Feat: Brenda Élen e Udi Santos)

(Prod: Victor Haggar)

“Cheguei zerando o game como sempre, vê se entende

O mal é me achar sorridente, nem sempre

Quando entra maney pra gente

Ê, tu se passando enquanto eu já cheguei (…).

Mais um faixa que Áurea Semiséria chega ressaltando a força coletiva feminina, como meio de sobrevivência. Citando suas referências musicais e pessoais.

Onze

(Prod: Òwe —Balostrada Records)

Preta, gorda do black tu aguenta

A favelada do brilho de menta

Não come reggae pra paty nojenta

Sua autodefesa é pagar (…)

As Piveta mete sem dó

Trabalha, estuda, mas longe do pó (…)

Minha bandeira é Preta

Minha voz é escopeta

Bozo filho do capeta

Seu futuro é na sarjeta

Gosto de bala (CTC 33 Feat Áurea)

Prod: Contenção 33— NacaladaRec

“Prefiro ser escravo do Amor

Do que da escravidão

Prefiro assumir meu b.o

Do que apontar o patrão

Prefiro ser leal

Do que trair os irmão

Se é talarico acaba a consideração

Infelizmente vai pra vala

Por que a vida tem

Gosto de bala

Gosto de bala

Gosto de bala”

“Sororidade é utopia

Descaração e pilantragem, é sem massagem tia

Minha mensagem é uma só

Homem igual a lata, mas respeita as cria”

Irradiê – Jef Rodriguez, RDD e Aurea Semiséria

(Prod:RDD)

Faça com o Amor irradie

Toque os corações com orações…

“Vinte e poucos pra quem duvidava

Agradeço as thuca e aos parça

Tô comigo nessa caminhada

Foda-se quem só atrasa

Eu continuo por amor

Mas sigo no corre do dim

Ontem quase não levanto

E pena de quem quer meu fim

Eu vim de lá hey!

Do lado obscuro da city

Meu som você põe no repeat

Eu não te peço que acredite

Poesia e pixação me trouxeram até aqui

Meu letrado em cada tela

Marcado até o fim”

Estamos em 2025 e até a presente data existem mais inúmeros projetos que Áurea participou no âmbito nacional e internacional. E há pouco tempo lançou um projeto incrível intitulado “Semiseria”, composto por 7 faixas, e é sobre elas que falarei a partir de agora. O traço revolucionário sempre presente em tudo que a Artista lança, enriquecendo o Rap Nacional.

Áurea Semiseria
Foto por: @Karlabrights

Intro

(Prod. El Lif Beat )

Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, a sombra do Onipotente descansará.

Direi ao Senhor: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza e nele confiarei.

Por que ele te livrará do laço do passarinheiro e da peste perniciosa.

Ele te cobrirá com suas penas e debaixo de tuas asas te confiaras, a sua verdade será seu escudo e braquel.

Não terás medo do terror da noite, nem da seta que voa de dia.

Nem da peste que voa na escuridão, nem da mortandade que assola o meio dia.

Mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti. Somente com teus olhos contemplarás, e verás a recompensa dos ímpios

Por que tu ó Senhor és meu refúgio.

No altíssimo fizeste a tua habitação

Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda.

Por que aos seus anjos, dará ordem ao teu respeito para que te guardem em todos os teus caminhos. Eles te sustentarão, nas suas mãos para que não tropeces com teu pé em pedra. Pisarás o leão e a cobra. Calcaras aos pés o filho do leão e da serpente. Porquanto tão encarecidamente me amou. Também eu o livrarei, pô- lei em retiro. Porque conheceu o meu nome. Ele me invocará, e eu lhe responderei; estarei com ele na angústia; dela o retirarei, e o glorificarei. Dar-lhe-ei abundância de dias, e lhe mostrarei a minha salvação.

( Salmo 91)

Me repetindo, Áurea  sempre a frente do seu tempo, ciente da potência de sua capacidade criativa, em sua segunda faixa que compõe o Ep é mais uma, onde a consciência racial e de classe segue estampada

R.A.P (Feat: Iza Sabino)

(Prod. El Lif Beat )

Entre camélias e Amélia

Fugindo da misericórdia

Correndo atrás do din. po

Sempre SEMISÉRIA

E não apela Vitimismo não

Sou alvo da polícia jão (…)

Ao Rap coube a função social de falar escancaradamente sobre as atrocidades impostas pelo estado, violências diversas sofridas majoritariamente por Pessoas Pretas nesse país. E as Mulheres Pretas seguem sendo a base que sustenta toda essa engrenagem.

Latuff 2008

(…) Respeita as preta que é preta

Cada uma por si, mas se mexer, é treta

Veste preto todo dia exceto sexta

Po eu tenho voz,

então não se meta

não se meta

Po eu tenho voz,

então não se meta

não se meta

Mahí Mahí

(Prod: Éocrosss)

De Cajacity pra orla

Topic lotada nem dá pra sentar

Agora eu ganho em dólar

Não passa meu número particular

eu e as Punanny é só green go

Contato direto com o gringo

Em cima do beat ou no tambor

Eles querem vip pro meu show

Te levo pro Mahi Mahi

Doce e batida de açaí

Pode deixar que tá pago

eu peço o carro te deixo em casa (…)

A música Mahi Mahi chega pra mim como um grande exemplo das alegres possibilidades que sempre são negadas as pessoas periféricas. Acesso a espaços e momentos de lazer. Culturalmente a periferia segue com seus empecilhos para acessar a orla aqui representa por todo o conforto que o dinheiro proporciona.

Historicamente tudo sempre foi negado a Pessoas Pretas… E ter a compreensão de buscar acessos a todos os lugares por meio da arte, foi a escolha mais sensata e assertiva da artista.

A faixa também faz referência as “Punannys”, nome esse que foi dado a uma festa que ocorre em Salvador, feita por e para Mulheres. Já ocorreram diversas edições. A intenção da festa é celebrar o Feminino e o empoderamento através da dança. Homens são bem vindos, mas o protagonismo é delas. Nos set’s, o melhor do dancehall, além das seletas coleções dos clássicos das variadas vertentes musicais.

A mestra de cerimonia é Sista Kátia. Geralmente conta com a ilustre presença da paulista/baiana Mis Ivy (Uma das pioneiras do Ragga/ Dacehall no Brasil).

Eu não te amo (Feat UNA)

(Prod: El lif beatz)

Pare

A gente se perde todo dia nos detalhes

Eu insisto nisso sempre, porra

Assim não vale

Mas você não sabe

Todos os meus planos

Com a conta perfeita

Nega, onde você cabe

Mas você não sabe

Pode perguntar a quem quiser

Escolhi você pra ser minha mulher

Eu era tão fiel a nossa relação

Nessa você perde pra sua intenção

(…)

Findar uma relação afetiva amorosa sempre será algo doloroso para ambas as partes. Esperar um nível de maturidade dentro do relacionamento onde se é fiel, e as intenções são escancaradas é o mínimo. Afinal, o amor romântico requer um terreno fértil para florescer.

Mas compreender que quando não há troca ou reciprocidade e tomar a iniciativa de findar essa relação é um ato de Amor Próprio. Amor esse, que sempre foi negado as Pessoas Pretas… Palavras confirmadas com base em analise e relatos de preterimento durante toda história.

Partindo dessa ótica, te convido a ressignificar o Amor tal qual um estado de espirito. Algo que independe de outra pessoa. Um traço da essência Afrikana. Divina capacidade humana. Na imagem, vemos o símbolo Andinkra: Odo nnyew fie Kwan, que significa “o Amor nunca perde o caminho de casa”

 

Big Mama

(Prod: El lif beatz)

Sem falar rápido

Vou levando essa aqui viu

E sem capacete passei de moto

Tu não viu

Tô querendo voltar com ela

Mas eu nem vou tio

Se você falar que eu sou feia pô, mentiu

Foda-se suas armas de ponta laranja

Eu sou da 11, sem mentiras

Onde as balas são de verdade

Caguete aqui roda sem massagem, okay

A carreta sempre pronta pro combate, replay

Essa faixa faz referencia a Big Mama Thorton. Cantora  e compositora Norte americana de Blues e ReB. Nascida em 11 de Dezembro de 1926, foi uma influente cantora e compositora americana cujos vocais corajosos e estilo instrumental tiveram tremenda influência no  blues, R&B e Rock and Roll. Ignorada pelo público racista durante sua vida, o trabalho de Thornton inspirou a imitação de Elvis Presley e Janis Joplin, que gravaram versões cover populares de “Hound Dog” e “Ball and Chain” de Thornton , respectivamente.

Avenida (Feat: UnA, Big Blackk)

(Prod: El Lif beatz)

Lupa sem lente

Prod: MU540

de lupa sem lente

Vulgo chapa quente

Grudo na sua mente até você gingar (…)

“Com o conceito renovado andara nossa nação sou filho de preto quero respeito e quem mora no gueto não é ladrão” (Edi City)

Eu vim da onde mãe chora e filho morre

Na onze a pm mata  e o sangue escorre

Onde nossa gente  troca e nunca corre

Onde talarica e alemão leva sacode.

A faixa que fecha o Ep é pesadíssima e sem massagem. Que escancara a violência racial desse País colônia!

-Áurea Semiseria e a sua trajetória de luta, ritmo e poesia preta ao longo de 10 anos 

Por: Mara Mukami X.

Para o Oganpazan “A cena independente tem valor”

Salvador, fevereiro 2025

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