Ashira lança “Eu gosto” e mostra a sensualidade da mulher empoderada. Música, clipe e produção por mulheres
Aqui no Oganpazan compartilhamos a ideia de que matérias sobre temas ligados ao lugar de fala de um determinado grupo social devem ser feitas, de preferência, por pessoas que o possuam. Contudo, quando esse critério não pode ser satisfeito, preferimos elaborar a matéria e abordar o tema de forma apropriada, qual seja, colocar em relevo as questões que importam.
Por isso estou aqui redigindo este texto, refletindo sobre o clipe do single Eu Gosto, da cantora paulista Ashira. Antes de falar deste novo lançamento, precisamos dizer que se trata de mais um passo pela cantora em seu projeto “Ashira, a única”. Antes de Eu Gosto, outros três foram dados nessa direção com os lançamentos dos singles Low Pass, Malibu e Superfície.
A cada single vão sendo desveladas novas sonoridades, novos estilos, que mostram quais são os domínios sonoros da cantora e produtora. Outro efeito é o aumento da expectativa sobre o desfecho dessa caminhada que culmina no lançamento do Ep.
Ashira teve sua formação musical e politica construída dentro do universo da cultura negra periférica, em particular do hip hop. A influência de Erykah Badu, propiciou a abertura de um leque mais amplo de influências musicais, passando pela soul music, r&b até suas vertentes contemporâneas como o alternative r&b e o neo soul.
“Eu Gosto” compartilha com os demais singles uma temática em comum, o protagonismo da mulher quanto a seus próprios desejos. Por vivemos em uma sociedade estruturada por uma base patriarcal, o machismo é onipresente e se manifesta em todas as esferas da vida social, seja privada ou pública.
No campo simbólico, a violência contra mulher se dá a partir da sua objetificação. Na Indústria Cultural, a mulher aparece como objeto da satisfação sexual masculina, sempre ali à disposição do homem “fodão” pra satisfazê-lo. Mesmo mulheres em seus trabalhos audiovisuais eram apresentadas ao público como objeto de estímulo sexual, criando a ilusão de que elas estão à seu dispor a fim de realizar seus desejos. Isso porque a produção geralmente estava sob o controle de homens, o que felizmente, vem mudando a cada ano.
Ashira se apresenta como ferramenta de demolição dessa estética opressora que exala testosterona. Em “Eu Gosto” a mulher retoma para si o controle sobre seu corpo e seus desejos. Ela os expões, descreve como quer satisfazê-los. A sensualidade do clipe e da música é construída a partir da perspectiva da vontade do eu lírico. Essa característica coloca todo simbolismo sensual da música fora do alcance do machismo, construindo uma sensualidade legitimamente feminina, pois, se expressa a partir do desejo da mulher.
Os primeiros versos dão essa tônica e mostram o teor da letra:
“Dessa vez não vou parar
Então me diz que vai aguentar”
Nós homens héteros cisgênero temos uma masculinidade muito frágil. Quanto mais agressiva e intensamente expressamos nossa masculinidade, pra assumir a persona do machão, mais frágil ela se mostra. Essa fragilidade está atrelada à sexualidade. Tem-se a ideia de que o homem macho domina a mulher, a doma. Portanto, o sexo pra essa espécie masculina está sempre atrelado à dominação e submissão da mulher por meio do ato sexual.
O primeiro verso é um aviso de que agora a conversa é outra, o que fica claro pela expressão “Dessa vez”. Seu complemento “não vou parar” é um aviso de que ela está no controle do que vai rolar e cabe ao seu par conseguir satisfazer o desejo da forma como ela quer. Bom, a questão é mais profunda, uma vez que dentro de uma perspectiva machista, a objetificação do homem pela mulher ainda é vista como um fetiche masculino. Mas isso é uma pauta para outro momento.
Queremos aqui considerar o modo como essa perspectiva presente em Eu Gosto, atinge o homem da masculinidade frágil, da sexualidade reprimida, este que assume uma agressividade ativa com relação à qualquer ameaça ao seu exercício de poder sobre a mulher.
Em Eu Gosto, o par do eu lírico está numa condição de coadjuvante. Dentro da estrutura de raciocínio machista, o homem que se deixa submeter a uma relação como essa, mesmo que lhe proporcione prazer, não passa de um frouxo, de alguém que não sabe tratar uma mulher como se deve, juízos dessa natureza são comuns em situações como essa.
A letra de Eu Gosto dá a direção da narrativa visual do clipe. Certamente se o clipe fosse só a base instrumental e a cantora dançando, seria dada uma conotação machista imediata a ele, pois o machismo contamina tudo devido ao seu caráter estrutural. O que se apresenta como um antídoto para a contaminação de nossa percepção por esse vírus ideológico no clipe é a letra. Vejo a letra como um guia, que pode orientar nossa percepção do clipe, conduzindo-nos por uma narrativa feminina empoderada sobre os desejos.
Mas não podemos deixar de levantar a questão: até que ponto a letra pode mesmo ter esse efeito sobre a mente masculina, a ponto de fazê-la ser guiada pela letra e não pelos sentidos, principalmente a visão no caso do clipe! Quer dizer, será mesmo que a letra pode acionar um gatilho que leve, de modo orgânico, a mente de um homem ser guiada pela racionalidade e não pelas suas representações machistas do desejo?
A construção da sonoridade de Eu Gosto utiliza elementos das referências musicais da Ashira, as quais abordamos no início do texto. O modo como a cantora concebe as conexões dos elementos sonoros dão o swing r&b revestido por uma aura contemporânea, cujo groove do baixo de Jazzkey, dão um tempero ainda mais picante ao som.
Ponto importante neste trampo é o fato da cantora ter estado presente em todos os processos que levaram ao resultado final, o lançamento do clipe. Além de compor a letra e a música, Ashira participou da produção junto com Beatriz Shibuya, diretora do clipe. Nesse sentido, Eu Gosto é uma obra de Ashira em todas as suas dimensões. Portanto, vemos um protagonismo feminino também nos bastidores.
Talvez esta seja a característica que devamos dar mais enfase, no que tange a questões ligadas ao papel da mulher na indústria musical. Não há por trás das câmeras, por trás da mesa de som do estúdio um homem dizendo o que a mulher deve ou não fazer. Nesse sentido, Ashira não luta só em uma frente, a do identitarismo, mas também na frente de ataque à estrutura machista dentro da indústria cultural.
Vamos aguardar os próximos passos de Ashira e ver o que a cantora reserva para o mês de julho, uma vez que seu projeto Ashira a Única, se desenrola através do lançamento mensal de um single. Será que Eu Gosto é o ponto final desse projeto e teremos o Ep lançado esse mês? Fiquem ligades no Oganpazan e nas redes sociais da cantora pra saberem o que vai rolar.
Não podemos deixar de mencionar o importante trabalho das minas do coletivo RPretas, Luana Protázio, Mariana de Moraes e Pryscila Galvão, que através do RPretas, dão o suporte aos artistas e às artistas negras da periferia, oferecendo assessoria de imprensa e comunicação a todes. Este também é um trabalho que atua sobre a estrutura repressora da sociedade, cujo alvo são justamente as pessoas negras e da periferia. Agradecemos a elas por nos apresentarem ao trampo da Ashira, consideramos importante dar visibilidade a trabalhos combativos como esse.
Ficha técnica
Letra, voz e gravação: Ashira
Instrumental: Ashira, baixo por Jazzkey
Mix e masterização: Jayro Júnior
Produção executiva: Ashira e Beatriz Shibuya
Direção e montagem: Beatriz Shibuya
-Ashira mostra os efeitos do empoderamento em “Eu Gosto”
Por Carlim