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Arthur Vinih e a ferida exposta pela luta de classe

Arthur Vinih lançou recentemente o Ep “Ferida Exposta”, uma obra necessária, pois apresenta um posicionamento político com relação à realidade opressora na qual vive a classe trabalhadora. 

Capa de Ferida Exposta, arte de Dinho Bento.

O pano de fundo de Ferida Exposta

O capítulo I do “Manifesto Comunista”, intitulado “Burgueses e Proletários”, da dupla de autores alemães Karl Marx e Friedrich Engels, começa com a seguinte frase: “A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe”

Esta frase sintetiza o que ao longo da história humana vem sendo a dinâmica social no seio das civilizações. Sempre divididas entre uma classe privilegiada e opressora e outra explorada, desprezada e oprimida. Ou seja, de um lado exploradores e de outro explorados. 

As classes dominantes exploram os indivíduos pertencentes às classes dominadas. Através do jugo estabelecem a relação de poder que lhes permitem realizar a manutenção da exploração de acordo com suas necessidades e interesses. Dessa forma, estruturam a sociedade de acordo com seus interesses.

Fazendo com que cada engrenagem gire com o mesmo fim, qual seja, manter em funcionamento um maquinário que perpetue seu domínio, não apenas sobre os meios de produção, mas principalmente, sobre as mentes dos trabalhadores e trabalhadoras. Mentes essas formatadas pela propaganda, veículos de comunicação de massa e pela educação para entender a realidade de acordo com o que desejam as elites econômicas e políticas.

Vivemos, portanto, numa matrix, planejada por uma elite econômica e política, na qual a maioria esmagadora das pessoas está envolta num casulo criogênico, tendo apenas suas características biológicas sendo levadas em consideração. Quer dizer, essas pessoas tem apenas preservadas e garantidas aquela característica que interessa a elite econômica e política, sua força de produção. Usando a metáfora da matrix, no arranjo social capitalista não passamos de pilhas Rayovac, usadas, descartadas, e rapidamente substituídas por uma nova.

As castas superiores olham para o espelho e enxergam divindades, sentem-se acima do bem e do mal, intocáveis, acima da constituição, pois o poder político e econômicos faz com que acreditem não necessitar dos direitos garantidos pela nossa carta magna, afinal, direito são para os meros mortais, divindades possuem privilégios.

Na mitologia grega, as divindades, entediadas com os privilégios da imortalidade e do poder ilimitado, usavam os seres humanos como peças de um jogo de tabuleiro. Leiam os poemas homéricos, A Ilíada e a Odisseia, ou as tragédias gregas, e constatem o divertimento das divindades gregas com a dinâmica existencial humana. 

Contudo essas divindades capitalista se divertem com  jogos mais adequados à sua realidade. Lembram dos jogos de tabuleiro, Banco Imobiliário, Jogo da Vida? As divindades gregas não tinham escrúpulos em gerar situações que colocassem os seres humanos em perigo ou dificuldades, pelo simples prazer de ver como lidariam com elas.

Os capitalistas também não tem escrúpulos em jogar com a vida humana, contudo, não se divertem, pois “tempo é dinheiro”. O jogo tem que render dividendos. Assim se comportam os grandes conglomerados econômicos como a Vale, Carrefour, Bartofil, Paes Mendonça, Bradesco, Itaú, etc. Assim se compreendem os membros das elites financeiras, econômicas e políticas mundo afora.  

No arranjo capitalista essas castas se converteram em banqueiros, empresários, especuladores financeiros. Vindo dos tempos primordiais de construção do Brasil, temos ainda os grandes latifúndios, essas capitanias hereditárias ainda em vigência. Os privilégios de classe são garantidos pela exploração feroz de uma massa populacional desprovida de direitos mínimos. Lançadas à própria sorte, sempre perdendo quando são colocadas em situação de disputa com representantes das elite política e econômica. 

Apenas por caráter de esclarecimento, quando falo de elite política e econômica, não estou falando de você dono de lojinha de capinha de smartphones, dono de foodtruck, ou qualquer outra startup que o valha. Estou falando, mais uma vez, dos donos e acionistas de grandes empresas e bancos. Estou falando dos donos e acionistas da Vale, do Carrefour, do Paes Mendonça, do Itaú, do Bradesco, Ambev, Bartofil e por aí vai.

Vamos ser ainda mais didáticos. Digamos que por acaso você ganhe salário, seja lá qual for o valor, um salário mínimo ou 40 mil reais mensais, não importa. O que importa é saber o que acontecerá caso a fonte pagadora desse salário seja cortada por algum motivo. Você conseguirá se manter pelo resto da sua vida só com o patrimônio que você acumulou? Se é que você conseguiu acumular algum. Caso a resposta seja não, bem vindo à realidade, você é pobre, pertence à classe trabalhadora. Você está entre os explorados dessa terra.

O mesmo se aplica aos donos de startups que ilusoriamente se consideram parte de uma elite financeira simplesmente por conseguirem sustentar um pequeno negócio durante um período de tempo. Caso você abra falência agora, você conseguirá viver o resto da sua vida apenas com o patrimônio acumulado enquanto a sua startup dava lucro? Se a resposta for não, você escolheu a pílula vermelha e esta ciente da realidade a qual você pertence.

Se você chegou até aqui, certamente não se irritou com todo esse papo “esquerdopata” acima, portanto, seja bem vindo camarada, seja bem vinda camarada. “Paz entre nós, guerra aos senhores (patrões, banqueiros, empresários, especuladores financeiros, acionistas, megacorporações, multinacionais ….!”

 

Faixa a faixa de Ferida Exposta

Todo esse preâmbulo é pra contextualizar a obra lançada no final de julho pelo compositor Arthur Vinih. O Ep “Ferida Exposta” não é um simples álbum de música. Vai muito além ao se colocar como  agente disseminador da voz dos excluídos, explorados, marginalizados. Pelo questionamento acerca do arranjo social no qual vivemos, onde os interesses das elites econômica e política tem prioridade sobre a vida das classes populares. 

Cada uma das cinco faixas que compõem o Ep tratam de diferentes aspectos dessa exploração, sempre sob o ângulo daqueles que nunca tiveram seu ponto de vista apreciado. E Arthur Vinih tem lugar de fala, pois pertence à classe trabalhadora e no seio desta se formou.

Portanto, “Ferida Exposta” não se apresenta como uma obra contemplativa, como mero entretenimento, ao contrário, é combativa, inflama para que os explorados, injustiçados, oprimidos busquem meios de transformar essa realidade opressora na qual vivem. Mesmo que seja esta, uma luta impossível de se vencer.

Isso vemos na faixa que abre o Ep e que também lhe dá o nome. Os crimes socioambientais cometidos pela Vale nas cidades mineiras de Mariana e Brumadinho, deixam à mostra uma ferida que não irá cicatrizar. Por mais expostas que estejam as chagas causadas pela ação predatória e criminosa da Vale nos casos das cidades mineiras, nada de fato acontece contra a mineradora.

Capa do single Ferida Exposta. Foto: Isis Medeiros

A mineradora mantem suas operações no estado, não vem sendo obrigada pela justiça a assumir o ônus dos crimes por ela cometidos contra as populações afetadas pelos dejetos químicos que varreram comunidades inteiras até chegar no litoral capixaba. Causando prejuízos irreparáveis para inúmeras famílias, além da dor insuperável de se perder entes queridos. Vejam a situação atual do caso Brumadinho aqui.

Está aí a prova de que as divindades do panteão capitalista são intocáveis e estão acima do bem e do mal e dos artigos constitucionais que regem nossa sociedade. A nós pobres mortais, resta a resiliência de viver mansamente aceitando que “as coisas são assim mesmo, o que se pode fazer?” ou partir para a luta usando as armas que a nós estiverem disponíveis, mesmo que seja uma empreitada quixotesca. Sobre a música Ferida Exposta sugiro a leitura de uma matéria mais completa que publiquei em agosto de 2020, quando Arthur lançou o clipe da música. Clique aqui.

Samba e funk são estilos musicais que tem o swing como ponto de convergência. Claro, cada qual provoca esse balanço ao seu modo. Enquanto o funk segue um andamento mais rápido e pontuado por grooves mais intensos, o samba imprime uma cadência maliciosa. Em Peço que Pense, temos os contrastes gerados por essas duas cadências quando são conjugadas na mesma música.

Inicia numa pegada funk sob a qual tipos de pessoas são listados, mostrando a existência de uma diversidade étnica, além de interesses divergentes entre os diferentes tipos e a sua condição social. Tendo o mote do Ep em mente, ao acompanharmos estes versos, somos levados a fazer associações entre os tipos listados e os conflitos de classe no seio da nossa sociedade.

Quando desemboca no samba, somos apresentados à uma gente que quer amor fugaz, assim como nos quer incapazes. O amor fugaz se apresenta como uma metáfora do capitalismo na dita pós modernidade, onde tudo é visto apenas pelo seu valor de consumo, seu caráter mercadológico, até mesmo o amor.

Capa do single Peço que Pense. Foto de Costa Melo.

Esse sentido se complementa pelo verso que denota o interesse de uma “gente” que nos quer incapazes, mas incapazes de compreender a realidade opressora da qual nós, trabalhadores e trabalhadoras, fazemos parte. Contudo, querem que estejamos bem capacitados para fazermos mover a máquina neoliberal que produz os lucros dessa elite política e econômica.

A única ponta solta é o verso final “Gente de lua e flor”, que sinceramente, não vi conexão alguma com nenhum outro verso da música. Na verdade, fui remetido à novela Salvador da Pátria, cuja música Lua e flor do Oswaldo Montenegro foi trilha sonora do amor platônico de Sassá Mutema (Lima Duarte) pela Professorinha (Maitê Proença).

Arthur Vinih possui uma profunda ligação com as pautas políticas de caráter racial, efetuando sua militância tanto através das suas músicas quanto através de suas redes sociais. A música Eu Sou Negãohit do compositor, mostra isso. No Ep, duas faixas abordam essa temática, Kizomba é uma delas.

Kizomba é o nome de um estilo musical angolano e é patrimônio cultural de Angola. Lembra muito a música caribenha e no Brasil talvez a analogia a ser feita é com a lambada. Essa música, embora tenha o nome do ritmo angolano, parece ter nas músicas usadas para a prática da capoeira de estilo regional a sua fonte de inspiração, bem como o congado e o maculelê .

O compositor usa os nomes de diversas manifestações culturais e musicais de matriz africana para elaborar sua letra. Claramente uma busca de valorização da cultura africana no Brasil, combatendo o preconceito e o ocultamento das mesmas. Não podemos deixar de ressaltar a referência feita no verso que abre a faixa, ao tradicional Grupo Afro Ganga Zumba, sediado na cidade natal de Arthur, Ponte Nova – MG.

Capa do single Kizomba. Foto de Costa Melo.

A letra da música presta reverência à memória de Mãe Quininha, liderança negra que à frente do Congado União Nossa Senhora do Rosário, atuava na formação política, social e cultural dos moradores do Bairro de Fátima em Ponte Nova. Mãe Quininha mantinha vivo o congado na cidade e na comunidade em que viveu. Esse legado é muito bem representado na sonoridade e letra da faixa Quizomba de Arthur Vinih. 

A dinâmica social ao longo da história se deu a partir da luta de classes. No capitalismo, a classe trabalhadora tem sua força de trabalho explorada pelos donos dos meios de produção (empresários), banqueiros, especuladores financeiros, dentre outras variantes das elites econômicas, a fim de obter lucros que permitam acumular quantias astronômicas de capital.

Trata-se de pessoas como Jeff Bezos, homem mais rico do mundo, cuja fortuna está estimada em US$ 202,7 bilhões segundo a Forbes. Bezos é dono da Amazon, megaempresa que explora seus funcionários de forma predatória. Quando se preparava para ir ao espaço abordo da piroca gigante projetada para transportá-lo, funcionários protestavam contra as jornadas e condições desumanas de trabalho nas instalações da Amazon.

Os “Josés”, extorquidos por Bezos e a corja de megaempresários mundo afora, muitas vezes não percebem essa exploração. Isso porque são educados pelos mecanismos de formação da subjetividade, como os meios de comunicação, a propaganda, a cultura de massa e mesmo o sistema educacional, que moldam sua compreensão de mundo, que os levam a perceber sua condição social como algo natural. Ou seja, faz com que entendam sua realidade como a única possível. Resta agradecer por terem trabalho para suprir suas necessidades mais básicas.

Capa do single Ei José. Foto: Costa Melo.

A música Ei José explora essa temática e tenta ser o ponto de ruptura para o trabalhador alienado dessa condição que lhe é imposta desde o nascimento. Procura criar o desconforto que gere a indignação quanto à sua condição de explorado e busque mudar a realidade opressora na qual vive.

Como suporte para essa mensagem, Arthur Vinih usa uma sonoridade de caráter regionalista tradicional, envenenada com as distorções da guitarra que garantem um peso à música. Tendo assim criado uma interjeição entre a cultura urbana e rural.

Incomodou-me a presença constante das intervenções da flauta do início ao fim da música. O uso excessivo do instrumento faz com que este roube a cena e sobressaia sobre o conjunto. Acredito que teria um efeito melhor se as intervenções da flauta fossem usadas em momentos pontuais da música. Desse modo poderiam ser feitas incursões que destacassem passagens que precisassem de mais destaque, o que é impossível se fazer quando instrumento se faz presente, repetindo estruturas melódicas do início ao fim da música. 

Ferida Exposta termina com a faixa Reabolição. Sabemos que a abolição da escravidão à brasileira abriu as portas das senzalas, a contragosto da elite econômica da época, para despejar os ex escravos e ex escravas nas sarjetas das cidades. Concedeu a estes a liberdade para definharem ao relento e se virarem na busca pela sobrevivência.

Nem transformar a mão de obra escrava em mão de obra proletária interessou aos senhores e governantes da época, que preferiram importar esta da Europa. Sobre o 13 de maio, Oliveira Silveira, poeta da consciência negra, nos diz o seguinte:

Treze de maio traição,
liberdade sem asas
e fome sem pão
Liberdade de asas quebradas
como
…….. este verso.
Liberdade asa sem corpo:
sufoca no ar,
se afoga no mar.
Treze de maio – já dia 14
o Y da encruzilhada:
seguir
banzar
voltar?
Treze de maio – já dia 14
a resposta gritante:
pedir
servir
calar.
Capa do single Reabolição. Foto por Costa Melo.

A liberdade “dada” aos ex escravos carecia de asas, como bem versifica o poeta, pelo fato de não ter sido feita a inclusão daquelas pessoas na sociedade. Não lhes fora garantido sua condição de cidadãos e cidadãs, simplesmente foram abandonados pelo governo, deixados à própria sorte. Ação que gerou os problemas sociais que nos afligem até hoje.

Por isso a última faixa do Ep traz já em seu título um termo que expressa a falácia por trás da assinatura da Lei Áurea. A Reabolição seria a luta dos e das descendentes de africanos e africanas escravizados e escravizadas, empreendida através da articulação social destes, a fim de conseguirem sua inclusão na sociedade.
Em termos de sonoridade, Reabolição se vincula ao mangue beat de Chico Science. Bom, ao menos eu faço esse vínculo. Isso por não conseguir deixar de remeter a música do compositor mineiro à uma faixa determinada do do álbum de estreia do músico pernambucano e sua banda, a Nação Zumbi. Faço essa aposta, que Arthur Vinih se inspirou na faixa Da Lama ao Caos, do álbum de mesmo nome lançado em 1994, para compor a sonoridade de Reabolição. Ouçam vocês mesmo a música Da Lama ao Caos e tirem suas próprias conclusões. 
Ferida Exposta é sem dúvida o melhor trabalho de Arthur Vinih. Tanto na concepção conceitual quanto na composição e produção das faixas. Chama atenção a faixa que nomeia o Ep. Arrisco ir mais longe e afirmar que a música Ferida Exposta seja a melhor música composta por Arthur. Isso porque a sonoridade tem uma identidade própria, tem excelentes camadas, alternância entre tensões e repousos, que dão a ela uma atmosfera impactante, em total comunhão com a mensagem presente na letra.
Aliás, vale ressaltar que a letra de Ferida Exposta é a melhor letra escrita por Arthur. Ela funciona muito bem dentro da música, mas também fora dela. Ela possui um ritmo, uma poética rica em recursos literários, como o jogo de sentidos presente no uso da palavra “vale” nos versos que compõem a letra/ poema. Vale se refere tanto à valor, quanto ao nome da mineradora. Há muitos outros exemplos, mas acho que esse exemplo passa a ideia do que quero dizer.
Esse aspecto é importante pelo fato de considerar as letras de Arthur um ponto fraco do compositor. Pelo fato de carecerem desses recursos literários presentes na faixa Ferida Exposta. As letras não possuem uma “musicalidade” própria, são diretas, carentes de metáforas, que são aspectos que dão uma força imagética ao texto e dão mais força à música.
Arthur Vinih mostra em Ferida Exposta um mundo trágico, no qual a exploração do ser humano pelo ser humano impõem uma dinâmica cruel. Contudo aponta caminhos, inspira o enfrentamento desta realidade e oferece sons que podem nos fazer mexer para buscar transformar o mundo no qual vivemos. Mundo que tal qual está configurado drena nossas energias para produzir o lucro e privilégios dos nossos algozes. 

Ficha Técnica 

Música  – Ferida Exposta

Composição – Arthur Vinih

Edição de Vídeo – Ulisses Luciano

Fotografia – Isis Medeiros

Direção Musical / Baixo – Eneias Xavier

Sax e Arranjo – Chico Amaral

Trompete – Ulisses Luciano

Trombone – Miguel Praça

Bateria – Adaílton Couto

Percussão – Sergio Silva

Guitarra – Felipe Vilas Boas

Voz e Violão – Arthur Vinih

 

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