Arthur Vinih, “Quem Eu Sou” (2025)

 No single “Quem Eu Sou”, Arthur Vinih imprime sua assinatura musical, enquanto Cibely Limma entrega uma performance carregada de expressividade e sensibilidade.

Olhar pra dentro quando o mundo te empurra pra fora

Ah, Delfos! Terra do oráculo mais famoso da história ocidental! Oráculo esse que se abrigava no interior do templo construído em honra a Apolo. Aquele deus antiquado, guardião da sabedoria racional, da beleza formal e outras caretices!

Pra conseguir se consultar com a sacerdotisa Diotima, era preciso primeiramente encarar a segunda frase mais clichê da história da filosofia ocidental: “Conhece-te a ti mesmo.” A primeira, também atribuída a Sócrates, não poderia ser outra senão “Só sei que nada sei”. Duas frases que seriam prato cheio pra coaches desenvolverem seus cursos pra vender cursos. Não o fazem por ser um campo estéril de embasamento teórico.

Nada como um bom teste de autoconhecimento antes de receber um spoiler do destino, né não? Assim, a gente já teve todo o século XX em que a burguesia, mundo afora, investiu pesado no desenvolvimento de tecnologias pra controlar seus proletariados e manter a galera acreditando no que mantivesse os interesses dessas elites seguros.

Tentar conhecer melhor quem se é leva a se colocar num processo de descoberta de si, a partir de si. É se movimentar no sentido de reajustar as lentes socioculturais para enxergar seu real papel na sociedade. É poder se ver como você é — e não como patrões, banqueiros, herdeiros, playboys e patricinhas dizem que você é.

Estrutura e lirismo: a música como corpo político

Recentemente, o compositor mineiro Arthur Vinih lançou o single “Quem Eu Sou”. Música e letra de autoria do próprio Vinih, feitas sob medida para a intérprete Cibely Limma, conterrânea do compositor. Vamos começar analisando a letra.

Arthur
Arte de capa de “Quem Eu Sou”.

A forma como a letra é estruturada quebra com o padrão convencional em que se tem estrofes separadas por um refrão. A música não tem um refrão. Ou, se considerarmos a frase “Quem vai me dizer quem eu sou” como o refrão da música, podemos dizer que Arthur Vinih inverte a estrutura: a música tem o refrão separado por estrofes.

Essa organização da letra gera um efeito interessante quando Cibely canta a melodia. Isso ocorre porque meio que pega o ouvinte de surpresa. Geralmente, tudo começa com o desenvolvimento de uma ideia através dos versos da primeira estrofe.

Em “Quem Eu Sou”, o ouvinte se depara com a frase “Quem vai me dizer quem eu sou”, repetida para enfatizar a ideia nela contida, que conclui com a frase “Sou eu”. O eu lírico revela estar em posse da consciência de si. Arthur Vinih, em vez de optar por descrever em versos o processo de aquisição dessa consciência, escolhe fazer com que o eu lírico revele as marcas anteriores a este momento como recordação:

“Tanto tempo pra eu entender,
que a culpada não era eu,
o espelho me enlouqueceu,
eu cheguei a chorar.”

Nestes versos, somos postos diante de uma recordação dura, já em posse da consciência de si, revisitando os efeitos do racismo sobre a autoestima das pessoas negras. O véu da alienação que faz pessoas negras se sentirem inferiorizadas ao olharem sua própria imagem refletida no espelho.

Arthur Vinih
Arthur Vinih gravando o violão.

Em tal condição, a pessoa negra não se reconhece nos valores estéticos positivos transmitidos pelos dispositivos de propaganda, nos produtos culturais como novelas e séries, etc., pois estes propagam um ideário de beleza que reflete as características e atributos das elites brancas, herdeiras do espólio colonial do nosso país. Quais sejam: ser branco, descendente de europeu, rico, ter cabelo liso, claro — e por aí vai.

Esse espelho descrito no verso é uma metáfora para a sociedade que reflete a elite branca. A pessoa preta olha, e de lá só vem o seu não reconhecimento — e, pior, uma imagem que a rebaixa e reduz a um ser inferior, desprovido de quaisquer atributos positivos. O resultado é o choro, a depressão, o desespero, o beirar da loucura.

Como num gesto executado a fim de espantar más lembranças, o refrão ressurge como uma retomada da consciência, restabelecendo sua conexão com a realidade presente:

“Agora não venha me dizer,
que eu mudei o meu jeito de ser…
É que eu me liguei nesse jogo,
eu cheguei a chorar.”

Nesta estrofe, a revelação de uma nova postura, pautada na nova visão de mundo trazida pelas lentes da consciência de si. No último verso, o choro não é mais de tristeza, mas de ódio por estar diante do fato de não poder refazer o passado. O sentimento inevitável de se ter perdido aquele tempo — e por aí vai.

“E se o mundo tentar me parar,
agora eu encontrei meu lugar,
me olhei de novo no espelho
resolvi me amar.”

Nesse segundo conjunto de versos, somos apresentados ao momento posterior à aquisição da consciência de si, quando o eu lírico adquire o instrumental interpretativo para entender seu lugar no mundo e a necessidade de quebrar os grilhões ideológicos que o aprisionam.

Uma estreia potente

O novo single de Arthur Vinih apresenta a cantora Cibely Limma. Conterrânea do compositor, também foi sua aluna. Em conversas com Cibely, relatando as experiências pelas quais passou ao longo da vida, lidando com um mundo construído por pessoas brancas e para pessoas brancas, Arthur encontrou a motivação para compor “Quem Eu Sou”.

Até porque constatou que o relato de Cibely não traz apenas a experiência de um indivíduo, mas de todo um grupo sociocultural. A letra da música, conforme analisamos mais acima, nos conta sobre essa experiência conjunta de toda a população negra do nosso país.

O antes e o depois da aquisição da consciência de si — e Cibely dá vida a esse relato. Cantando de maneira firme, expressiva, clara e intensa. Não haverá uma única pessoa negra que não irá se identificar e se emocionar com a interpretação de Cibely Limma para a música “Quem Eu Sou”.

Sonoridade: entre o acaso e a ancestralidade

Falamos bastante da letra, vamos falar um pouco da música, da sonoridade de “Quem Eu Sou”. Em conversa com Arthur Vinih, o compositor relata ter pensado na música a partir da dinâmica rítmica de uma roda de capoeira, onde as pessoas usam as palmas para marcar o pulso que dará o direcionamento à melodia.

Arthur Vinih
Na foto, da esquerda pra direita: Arthur Vinih, Cibely Limma, e Lincoln Cheib.

Contudo, ao tocar a música no violão, Arthur percebeu a possibilidade de usar o baião como ritmo, chegando a um resultado que considerou mais interessante. Estamos o tempo todo lidando com as obras do acaso e seus efeitos sobre a vida.

Assim, no dia da gravação, o baterista Lincoln Cheib percebeu que não era o baião o ritmo apropriado para “Quem Eu Sou”, mas sim o congo. Cheib, então, rearranjou a música, e ela ganhou os contornos que ouvimos ao executá-la em alguma plataforma de streaming.

A sensibilidade, aliada à vasta experiência musical de Cheib, permitiu identificar a melhor maneira de organizar a música. O resultado é uma composição intensa, com tensões que realçam momentos da canção em que a melodia ganha maior expressividade na voz da cantora Cibely Limma.

 

Ficha Técnica:

Arranjo/ Bateria – Lincoln Cheib

Baixo/ Teclado / Direção Musical – Enéias Xavier

Guitarra – Matheus Barbosa

Violão/ Vozes – Arthur Vinih

Gravação – Usina Estúdio

Mixagem/ Masterização – Fernando Delgado / Breno Amorim

 

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