“O Pirata e o Jaganata” é um disco fruto da parceria entre os mestres do rap nacional Aori & Barba Negra, um “road movie” que presentifica o Hip-Hop!
Mas como assim, chamar um “disco de road movie”? Uma contradição flagrante entre duas formas de arte, no caso, entre a música e o cinema? Ora, em um período onde a produção e a difusão do rap nacional vive contradições flagrantes de toda ordem, talvez acrescentando uma a mais, possamos pensar o lançamento de “O Pirata e o Jaganata” de modo que possamos nos colocar na altura, nas multidimensões, nas infinitas camadas sonoras e poéticas, apresentadas aqui pelo Aori e pelo Barba Negra.
Se não fosse o caráter extremamente curto em duração do disco “O Pirata e o Jaganata” do Aori & Barba Negra, poderíamos facilmente adjetivá-lo como um épico, que talvez possua aqui o seu ponto de partida, não sabemos. Porém, a extensão intensiva, comprimida poética e musicalmente no álbum, nos leva a pensá-lo em termos de “road movie”, um subgênero cinematográfico. Que recebe sua razão de ser na relação entre o passado e o futuro do rap nacional.
A dupla autora, Aori & Barba Negra, são responsáveis por inúmeras obras fundadoras de uma tradição “esquecida” do rap nacional, onde acumularam muitos anos de expertise para serem capazes de cometer esse atentado contra a mediocridade presente na parcela visível do rap nacional. “O Pirata e o Jaganata” esses dois personagens que deliram forças intensivas retiradas dos quadrinhos, dos games, da mitologia indiana e mesmo da história africana e mundial, são um “delicioso veneno” contra 90% do que é lançado pelo mainstream.
Para quem se informa e conhece as produções nacionais pelos sites e perfis de propaganda e fofoca, podem até “achar” isto uma hipérbole. No entanto, basta uma rápida análise entre as autoficções de falsos bandidos e novos ricos, banhados em meritocracia, neoliberalismo e masculinismo misógino de um lado. Com a potência lírica e sonora desta ficcionalização, que está plenamente ancorada nos mais sólidos pilares da cultura Hip-Hop. Enquanto solução de uma continuidade desprivilegiada pela própria história do rap nacional e não apenas pela indústria cultural, o rap underground guarda hoje aquilo que vale a pena em termos de criação e inovação estética.
Em uma cultura que grita aos quatro ventos a importância da “Ancestralidade”, a contradição flagrante do desprestígio que um lançamento como este recebe, nos causa espanto, pero no mucho. Esta mesma cultura negra, que se arvora a falar em “Sankofa” nas redes sociais mas que em geral está com o coração enterrado em clichês e ou comandado por algoritmos e a necessidade de “engajamento virtual”, desconhece muito sobre o que se pretende pensar e ou militar.
A título de informação, em uma época onde a ignorância se auto justifica muitas vezes por interesses inconfessáveis, é importante mencionar que Aori fez parte do grupo Inumanos (DJ Babão) e que quase 20 anos depois do lançamento do clássico pouco ouvido e muito menos digerido Volume X (2005) e de ter lançado a mixtape Aumenta o Volume (2009) e o EP solo Anaga (2015) nos chega com esse bálsamo. Para além dos fonogramas, Aori é um dos criadores da Batalha do Real e da Liga dos MC’s, dois acontecimentos essenciais para a cultura Hip-Hop Nacional.
-Leia aqui sobre o EP Anaga (2015) do Aori
Enquanto Ralph aka Barba Negra aka O Terrível Ladrão de Loops, também iniciou sua trajetória como MC com um lançamento solo em 2005 – ele começou a rimar em 99 – e possui desde lá, inúmeros serviços prestados à cultura. Como produtor tem alcançado algum reconhecimento – muito pouco ainda – com os trabalhos lançados com Akira Presidente e Marcelo D2.
Mas, muitos antes disso, já era um dos maiores MC’s do país e foi da necessidade lírica de ser mais sujo e agressivo que criou a alcunha de Barba Negra. Como um dos – senão o primeiro – embaixadores do drumless no Brasil, criou o pseudônimo de O Terrível Ladrão de Loops. Sua discografia é tão extensa e singular que não ousamos tocar nela aqui, procure saber.
-Leia aqui sobre alguns recentes trabalhos do Barba Negra aka O Terrível Ladrão de Loops
Neste sentido, em termos de “ancestralidade, Sankofa e Cultura Hip-Hop” nos faz bastante sentido pensar nos personagens “O Pirata e O Jaganata” como participantes de um “road movie” de lírica, loops e batidas. Onde o mar é uma construção do navio sonoro do pirata Barba Negra, habitado geologicamente pelas ilhas poéticas do Jaganata, Aori. Reclamando com uma elegância agressiva e conceitual muito bem intrincada e atualizada para o século XXI, toda a herança da real força expressiva de que a cultura Hip-Hop é capaz.
Não há espólio possível nesta operação de pirataria, antes é um processo de destruição dos clichês do rap pop, produzidos como o creme de la creme do rap atual. O fogo capaz de incinerar os falsos personagens, cópias de cópias, produzidos em larga escala pela Indústria Cultural. A insurgência estética marginal ao sistema de produção atual do rap nacional diante de um capitalismo tardio que o levou a produção de cifrões no mainstream a título de esgotamento da cultura.
Mas, a “Marreta” atinge também aos outros bucaneiros e personas habitantes do próprio underground, para a necessidade de uma construção mais sólida e obviamente comunitária para o escoamento de suas produções. Trabalhando dentro de um viés onde a dialética entre o Mainstream e o Underground não se resolverá – obviamente – pela destruição de um em favor do outro, pois isso seria a própria destruição do capitalismo que favorece esta divisão. Há, isso sim, uma contribuição no fortalecimento do underground como um espaço possível de criação em busca de alguma auto sustentabilidade.
Sem ser unidimensional, o personagem Jaganata que bebe da fonte da marvel e da mitologia hindu em sua gênese vai além e se mostra também capaz de amar. A faixa “Ela Foi Embora (Lakshmi)”, recebe influências de “Ela Partiu” do Tim Maia e do clássico “Quem disse que caramujo não tem coração” do Quinto Andar, contemporâneos do Aori no underground carioca. Uma breve canção de um amor mítico que acabou entre deuses hindus que serve a narrativa do guerreiro Jaganata solitário nos mais sujos cais de portos!
Ao longo das 10 faixas que compõem o disco “O Pirata e o Jaganata”, a dupla Aori & Barba Negra expressam muita excelência, algo que só o tempo de milhares de viradas de maré são capazes de maturar. As milhas de navegação ao longo dos anos destes capitães de areia do rap nacional, constroem através de diversas técnicas líricas e de produção a força desse trabalho. Do storytelling às multi silábicas, sequências de punchlines e sobretudo pela forte capacidade de imagens poéticas muito fortes e pela construção narrativa, por parte do Aori. Também com rimas pesadas, tecnicamente afiadas, Barba Negra aqui mais uma vez – como em seu trabalho em parceria com o Akira – mostra-se um dos produtores mais instigantes do cenário nacional.
O groove presente na faixa “Cais do Porto/Bolinha de Meia” constrói uma introdução com um loop enigmático preparando o swingue elegantérrimo do beat drumless que irá conduzir a busca/caçada do Jaganata em lugares podres pela parceria com o próprio Barba Negra. A sobreposição de camadas históricas, míticas e ficcionais presentes em todo o disco, através de uma narrativa ricamente ornada de referências como apontamos acima, é muito bem delimitada e expandida na faixa “Beco das Garrafas”.
Sobrepondo e negando o local de nascimento da Bossa nova ao mesmo tempo em que referencia a Lapa no Rio de Janeiro, esse u-topos fictício de “Beco das Garrafas” que levanta certamente uma crítica ao “locais” cada vez mais gentrificados onde o rap gourmetizado se faz presente, é também local de roubo criativo entre os personagens. Depois de “Harém” uma faixa que realça e coaduna a ideia de riqueza própria da cultura muito presente em referências a Rihanna e a Mansa Mussa, é outro exemplo da delicadeza de que Aori & Barba Negra são capazes, em um disco que equilibra harmoniosamente agressividade e delicadeza, inteligência e sujeira.
A faixa “Aos Mestres” toda construída em cima de um breakbeat do “Mamão”, é uma linda homenagem a um dos maiores nomes da bateria do nosso país e do mundo: Ivan Conti. Matriz rítmica do Azymuth que infelizmente nos deixou no ano passado, o baterista é reverenciado como um dos exemplos de resgate e manutenção que a cultura Hip-Hop possui como um dos seus pilares de “Ancestralidade”, através da técnica dos samples, inclusive com um áudio de uma ligação feita ao Barba Negra, inserido na faixa.
-Leia aqui as matérias do Oganpazan sobre o mestre Ivan Conti Mamão
De cadência malemolente a track “Duelo de Alta Cúpula” traz o Barba Negra rimando, identificando o perigo iminente do Jaganata, mas em parceria. Um encontro de dois grandes personagens, personas, pessoas, artistas. E para o ouvinte mais desatento: “Comecei a história bruto, mas hoje sou um lord luto pelo justo”, verso que pode passar despercebido mas que é fundamental para o entendimento deste “road movie” lírico e sonoro.
O personagem do Jaganata no álbum passa por um sensível transformação, algo que se reflete com bastante sutileza entre os arroubos dos braggadocios e a intrincada trama em busca de vingança/roubo contra o Barba Negra. E é na faixa “Lord Jaganath Jaganata de Ferro” que esta transformação se assenta. Mesclando obviamente sua própria história e herança familiar com a narrativa ficcional, Aori traz uma narrativa ricamente ilustrada de sua carreira enquanto um dos precursores do underground nacional, MC Lapa, e com esse disco, seu reposicionamento no “game”, mas sobretudo de sua importância na cultura Hip-Hop.
Fechando o disco com a faixa “Jaganata Original/Soldado Invernal” uma música em dois movimentos, onde no primeiro somos presenteados com o guerreiro, homem santo, deus, lenda, pronto pra guerra e no segundo somos apresentados a situação do mesmo, preso em uma era glacial. Um comentário crítico duplo que diz respeito ao seu atual estágio artístico e a gelada insipidez do cenário artístico. O disco se encerra, como uma excelente história de autodesenvolvimento em um movimento de viagem pelos sete mares, com paradas, antagonistas, tramas e ações em ilhas como no mítico Triângulo das Bermudas, e com uma situação de imobilidade criativa.
A história e o disco construído pela dupla Aori & Barba Negra, nos apresenta o que de melhor se pode fazer em termos de boombap underground/drumless no Brasil hoje, com o acréscimo de ser o primeiro disco com uma narrativa completamente amarrada dentro desse novo estilo no século XXI. Em “O Pirata e o Jaganata” temos o primeiro disco dentro dessa estética a trabalhar de modo conceitual.
O universo apresentado possui início, meio e fim e ainda por cima nos abre a expectativa de novos volumes, como qualquer odisséia que se preze comporta. Ficamos com a expectativa do descongelamento deste Soldado Invernal, do retorno do Jaganata Original. Por outro lado, se configura em um road movie por que é um disco onde a trama nos apresenta um personagem em um caminho de desenvolvimento, onde a música é obviamente o condutor, as batidas e rimas de Aori & Barba Negra, conduzem o ouvinte sob um imensidão de texturas, timbres, personagens, referências, no caminho de auto descobrimento e transformação do personagem principal: O Jaganata.
No entanto, a estrada é o mar, que mesmo sem possuir marcações visíveis, com faixas e acostamentos, são a matéria prima fluída de diversas histórias de desenvolvimento na literatura por exemplo, e que na música de Caymmi foi substrato para a construção de um universo. Será que um dia poderei exagerar e falar de um Aori Caymmi Kerouac? Só o tempo dirá…
-Aori & Barba Negra lançaram “O Pirata e o Jaganata” – Passado e futuro do rap!
Por Danilo Cruz