Anti-Lock é um supergrupo reunindo MC’s e beatmaker de regiões diferentes do Brasil, puro rap underground!
Anti-Lock, Formação de Quadrilha
“Nas linhas é arregaço, média com cu não faço, CWB, Salcity, Sanja estreitando os laços!” Nairobi
O projeto Anti-Lock lançou um discaço na última semana, contendo 9 faixas e diversas participações, vemos surgir um supergrupo no rap nacional underground! Existem movimentos artísticos que vão se fazendo em espaços distintos e que pela potência de sua entrega alcançam lugares e pessoas que estão na mesma posição criativa. O rap nacional nunca teve um supergrupo formado por membros de regiões tão distintas. No começo dos anos 2000 a cena viu a emergência do Quinto Andar que reunia MC’s lendários do Rio, de SP e de Minas (Matéria Prima). De lá pra cá, não conhecemos outras iniciativas parecidas, pois não é só juntar vários MC’s para que um supergrupo seja ativado!
E eis que surge o Anti-Lock, aproximando Nordeste, Sul e o Sudeste, a história do surgimento desse projeto passa essencialmente pela inquietude do mestre Barba Negra aka MC Ralph, que teve contato com o trabalho de Galf MC. O produtor do Braselda junto com Mistah Jordan colocou a entidade Traumatopia em contato com o baiano que por sua vez já tinha agendado uma viagem a SP:
“Mas uma história meio engraçada é que o encontro presencial mesmo se deu de modo bastante fortuito: eu estava conversando sobre um projeto com o Galf AC e ele me disse que estava com viagem marcada para SP e que na trip talvez trombaria o Jordan. Eu me animei de ir pra SP trombar ele de rolê mesmo e comprar discos, falei com o Nairobi, que se animou também e o Jordan chamou todo mundo para a casa dele em São José dos Campos. Enfim, chegamos em SP de manhã, os mlk ficaram lá gastando a onda e eu comprando disco, encontramos o Cabes, o Jamés e o Ogi e fomos a noite pra São José. Dois dias de gravação e o resultado tá aí”
Um supergrupo formado por veteranos, por verdadeiros ícones em suas respectivas regiões e cenas, com discografias fundamentais, que só precisaram de dois dias para gerar um dos discos mais interessantes do ano até aqui. Não é exagerado entender que na verdade são três projetos que se encontram em Anti-Lock: Diatribe Vol. 1 (Nairobi, Thestrow e Traumatopia), Braselda Vol. 1 e 2 (Barba Negra e Mistah Jordan) e Botando pra Ver Bicho prt. I e II (Galf AC e grande elenco). São essas as potências criativas que se encontraram por dois dias em SP e gravaram as 9 faixas presentes em Anti-Lock.
Destravando os entraves mentais e travando uma luta com a mediocridade
“É Anti-Lock só verdade sente o clima, rap de coração pra evolução das nossas crias, império da maldade sem massage nós vigia, pesadelo do pop sem ibope só magia”
Sem buscar modelos, fórmulas que almejam agradar o público, a liberdade e a criatividade presentes no disco é o impulso inicial das 4 mentes por trás do trabalho. O MC baiano Galf AC que possui uma forte inspiração oriunda de sua participação no agressivo grindcore, se junta ao Toaster/MC Mistah Jordan com forte trabalho dentro da cultura jamaicana que cola com as métricas insanas e a lírica suja do Nairobi, MC com mais de 20 anos de carreira em cima dos climas sombrios, mórbidos, dos beats, samples e drumless do Traumatopia, que entregou um dos melhores trabalhos de produção do ano, como já tinha feito em Diatribe Vol. 1.
Essa variedade de formação dos participantes é uma perspectiva que enriquece por demais o trabalho com artistas que mantém a sua singularidade em prol do coletivo, quase como solos de jazz, uma improvisação que mais do que mostrar a técnica individual, fortalece o conjunto. É o que podemos ver ao longo do disco que flui com uma intensidade muito grande a partir do play, fisgando o ouvinte.
Questionados sobre o que é esse Anti-Lock ou melhor, o que buscam destravar, Galf AC nos diz: “O sentindo é esse fazer rap e rimas que possam abrir as mentes que estão enjauladas e manipuladas. Criando uma visão questionadora dos efeitos que o sistema causa em nossas vidas”. Uma velha missão, sempre essencial para a cultura, atualizada musical e poeticamente para esta segunda década do século XX! em plena distopia, em um país sob o signo do fascismo cada vez mais naturalizado.
“Tem a ver com o destravamento das ideias, do conhecimento, da estética, mas também um posicionamento contra toda a pilantragem fascista, racista, dos loki” Traumatopia sintetiza bem a missão política que é facilmente denotada pelo ouvinte atento. Missão essa que certamente está em plena relação com a divisão político-econômica e estética no rap nacional entre mainstream e underground, Nairóbi chama atenção para esse ponto:
“Acho que o “underground” tem o desafio de provar constantemente que está apto e tão preparado quanto os grandes artistas da atualidade a alimentar com muito mais qualidade e compromisso uma cena que se dilui cada vez mais. Escravizada por números e lógicas algorítmicas, trazendo uma só temática e poucas variedades estéticas para um público que é inteligente o suficiente para consumir algo que seja diferente dos demais cases de sucesso atuais”.
Seguindo essa linha de raciocínio Mistah Jordan complementa: “Eu penso que esse trabalho tem uma importância real para o cenário, porque estamos quebrando diversos paradigmas, muitas fórmulas, o rap no Brasil está em um momento muito de fórmulas: siga esse caminho aqui, caminho dos views, caminho do hype, e eu vejo que o antilock mostra que ainda existe o rap rua, mais fomentado para assuntos mais sérios e principalmente para mostrar para as novas gerações, que união é fundamental. Que o rap não é hype, palavrinhas chaves na rima, e que o rap underground tem vida.”
Agenciamentos visuais, sonoros, técnicos e inspirações!
“Passei essa visão na reunião dos Bildenberg, falei filhas da puta respeitem minha gangue, falei conhecimento é mais que o poder bélico…!” Jamés Ventura
O disco conta com participações de Thestrow, Relvi, Jamés Ventura e Mattenie que além das rimas é o responsável pela insanidade da capa e da contra capa de Anti-Lock. Mostrando na prática que o agenciamento e a união, a busca por inclusão não é uma das forças máximas deste trabalho. Thestrow e Relvi somam na desafiadora “Desarmônica Vivência”, faixa toda construída em cima de um loop repetido onde as metralhadoras líricas disparam intermitentemente.
A produção de Traumatopia neste trabalho salta aos ouvidos e conversamos com ele sobre seus modos de produção:
“Ir para loja de discos, procurar música inspiradora e obscura para samplear. Com os discos na mão, fico ouvindo e repetindo as coisas insistentemente e ainda nos toca-discos começo a preparar os recortes, mexer no pitch, pensar em loops, frequências. Geralmente quando transfiro o sample para o computador a ideia principal já tá pronta, depois é ajustar as texturas, recortes, eventualmente um loop de bateria e outras coisas. Mas em resumo, o coração do que eu faço é garimpar discos e samples.”
Em um tempo onde vemos MC dizer que não existe mais DJ, perceber um trabalho como esse, fruto de um DJ e beatmaker com forte apreço na pesquisa sonora, nos mostra a importância salutar para a cultura hip-hop. Menos um retorno às raízes do que a busca por novas soluções, por novas sonoridades, através da imortal cultura do sample. Sobre isso, é importante notar que os MC’s se inspiram bastante na “New Golden Era”, movimento do rap americano e contemporâneo que nos legou grandes nomes como Roc Marciano, a banca Griselda, Goretex, entre outros.
Neste sentido, Mistah Jordan nos conta que mais do que uma pseudo mimetização do que é feito fora do país, os artistas buscam manter a herança: “Se ela viesse – a new golden era – é sinal de que a golden era não foi esquecida, ou seja se é uma nova golden era, é uma reciclagem dos primórdios, pois o que importa é isso, são as origens. O que importa é quem asfaltou a rua para estarmos aqui fazendo rap, o que importa são os ancestrais”.
A visão da arte negra como um exemplo de Sankofa é algo destacado na fala de Mistah Jordan e certamente na prática presente em Anti-Lock, um disco que nos mostra a pertinência de mensagens e sons que não interessam à indústria. Práticas colaborativas que obviamente tendem a ser sabotadas pelo mercado cultural, com suas fórmulas fáceis e trabalhando em cima das últimas novidades, iguaizinhas às do mês passado.
O trabalho presente em Anti-Lock poeticamente, politicamente e musicalmente é também a estreia do selo Renaissance (Traumatopia), que já anuncia que o disco será prensado em vinil, mas uma excelente notícia para os admiradores desse suporte. Por fim mas não menos importante, é fundamental lembrar que o trabalho de mix e master foi feito pelo grande Ricardo Cabes, aquele mesmo que estava lá na curtição no primeiro dia de reunião do Anti-Lock em SP!
Agora, é com vocês, escutem Anti-lock e destravem gostos e hábitos, práticas e costumes bloqueados pela mediocridade destes tempos sombrios!
-Um supergrupo emergindo do Underground, Anti-Lock 2022
Por Danilo Cruz