Semblantes traz uma mistura de sonoridades e temáticas poéticas apresentando a cantora sergipana Anne Carol e sua potência musical!
Há uma forte mistura entre tradição e modernidade no disco de estreia de Anne Carol, ao longo de 12 músicas que passeiam com naturalidade por sonoridades diversas da diáspora africana. Dona de uma voz muito forte, a cantora e compositora mescla registros diferentes e dialoga com temas que ao pouco vai nos apresentando os seus “Semblantes”. O título do seu disco de estreia não poderia ser mais acertado, e nos mostra uma artista que chega com ares de veterana.
O ouvinte mais atento perceberá neste álbum de estreia que está diante de uma senda com milhares de possibilidades a serem percorridas pela artista sergipana. Não é um mero trocadilho ligar o título do disco a arte e potência da Anne Carol, afinal o aspecto exterior, o seu rosto apresentado na bonita capa do trabalho arte de Larissa Vieira (@mund0negr0) e Carol Patriarca sobre foto de Matheus Vinícius (@maviretrata) nos mostra ele recortado, fragmentado. Apresentando ao público um trabalho que começa tão forte e amplo que não é possível prever o que vem depois.
Nos resta, nessa estreia, reconhecer a bonita voz acompanhada por uma banda de primeira, que nos carrega por composições, harmonias e melodias que trabalham as singularidades que podem e compõem as vidas diversas e negras na diáspora. Com mais ou menos 6 anos de carreira profissional neste primeiro disco solo, o canto de Anne Carol se projeta extremamente coeso ao conceito geral presente em Semblantes, que já possui dois anos de gravado e finalmente veio à luz.
Tendo começado sua carreira com a sonoridade e estética do reggae de fortes discursos políticos, Anne Carol rompe com amarras culturais para contemplar a diversidade para além do mero ecletismo. É entender a diversidade como o próprio âmago de possibilidades da natureza e da vida humana. E desta forma, o seu diálogo musical e criação poética busca fugir dos clichês ineficientes diante da necessidade de uma luta realmente efetiva contra as necropolíticas coloniais atuais, neste início de século XXI.
Para tal, a artista abre mão de composições, parcerias e de uma sonoridade diversa, que impede a sua categorização em caixas estanques na percepção do público e do mercado da Indústria Cultural que hoje entendeu que a negritude, a cultura negra, também vende bem. Com a condição de que se possa diluir, torná-la um clichê através de palavras de ordem e que esta atenda aos padrões estabelecidos pelo capitalismo que a sobredetermina transformando-a apenas em mais um produto.
Já na primeira faixa estes aspectos ficam bastante evidentes, com o canto/quase grito de EU… Anne Carol já abre os trabalhos mostrando da colé de mermo de sua pegada, de sua arte. A faixa homônima dialoga com a eletrônica através das programações de Dudu Prudente, do Synth Bass de Paulinho e dos teclados de André Beleu com o orgânico da guitarra e bateria/percussão de Ricardinho e Danyel Nanume, respectivamente.
A cantora já abre os trabalhos apresentando a intenção do seu território musical, pisando de corpo e alma de modo a fazer passar a verdade de modo que todos a percebam. E certamente, a sua voz possui potência e beleza suficientes para tal. De sonoridade alternativa, entre o eletrônico e o orgânico, quase um house/rock alternativo, Anne reflete sobre a alteridade, as diferenças e os afetos despertados em muitos através da não aceitação da diversidade dos semblantes.
Mulher preta, nordestina, periférica e lésbica, a cantora e compositora sergipana possui fortes raízes quilombolas, tendo origem familiar no Quilombo da Mussuca, de onde é sobrinha e neta da realeza local, de Dona Nadir da Mussuca e do seu avô Mestre Ranulfo. Sua música se enraíza na expansão “aquilombada” de sua herança ancestral que remonta ao samba de pareia, através de um produção que bebe fortemente nas possibilidades das sonoridades afro diaspóricas.
Isso fica explícito na segunda música “Negra Mulher” , a composição de Leno de Andrade é uma composição enegrecida de autovalorização, conduzida com elegância pela banda em uma roupagem cadenciada e com beat do Dudu Prudente. O disco segue em uma crescente temática e sonora, com “Tudo” composição de Alex Santana. A banda prepara uma calma cama sonora para o início da canção em que Anne Carol interpreta as contradições da sociedade atual onde o excesso caminha lado a lado com a escassez. Para em um segundo momento transformar a faixa em um groove gostoso.
Já em “No Rolê”, composição da própria Anne Carol que assina 8 faixas sozinha e em parcerias das 12 que compõem o trabalho, o seu amor por mulheres é plenamente delineado, em uma poesia que fala de um encontro daqueles que se tornam um verdadeiro acontecimento. Na sequência “Cantar no Farol” delimita suas afecções diante da natureza e da arte e de certo modo é uma música que conversa muito bem com a anterior, no sentido de traçar um cenário onde a faixa anterior, pode, poderia ou ainda poderá acontecer.
O tom sobe, com “Tudo Virá” é um funk/afrobeat groovado virado na peste, composição de Anne e Fabrício Mangaio, a música é de botar qualquer alma que já não está embotada para dançar. Não mais uma, porém uma música a mais de amor chega com a doce “Cheiro Bom”, composição de Matheus Ramos e da cantora que faz a música acompanhada apenas da guitarra de Paulinho e do órgão de André Beleleu.
Lançado há dois anos, o videoclipe da faixa “Negra Soul” traz em imagem e movimento tudo o que estamos tentando explicar até aqui. Veja abaixo:
Essa consciência de suas origens, se faz presente no trabalho de Anne Carol como uma memória expandida, em constante tensionamento com as sonoridades mais modernas. É um corpo negro que carrega a ancestralidade à flor da pele e isso é transmitido de modo intenso em Semblantes. Esta ética presente na sua relação com as diferenças é imediatamente política na medida em que se coloca no espaço público como uma artista. E neste sentido, como dissemos acima, Anne foge dos meros clichês e palavras de ordem buscando outras formas de resistir, mas sobretudo de se e nos expandir.
Essa expansão diz respeito a sua forma de poetizar e cantar o amor e a sociedade, ela consegue o feito de ser romântica sem romantizar, ou seja, tornar o afeto entre pessoas pretas – uma prática da ética – em um produto estético que não se rende politicamente, como muitos tem feito, a nona faixa “Hey Garota” é prova disso. Ela segue também a tradição do “Black is Beautiful” que é uma perspectiva estético política desde o movimento dos direitos civis nos EUA. Em “Quilombo do Reggae” isso fica escuro e ainda traz uma parceira com o Ng Lampião da Rima.
Esses entrecruzamentos entre perspectivas se faz novamente presente no groove do reggae de “Epidérmica”, rompendo com as fronteiras estabelecidas pelo desenvolvimento da filosofia ocidental. Mais uma vez, ética, estética e política, não necessariamente nessa ordem, caminham juntas ao longo de todo o disco. Note-se que em seu álbum de estreia a sergipana Anne Carol nos entrega um disco conceitual desde a capa até a última música.
Ao longo das faixas e das poéticas, sonoridades, que vão alinhavando o seu Semblantes, podemos perceber com clareza suas intenções de demonstrar que a Negritude é diversa. A sua própria vivência singular, os seus atravessamentos políticos minoritários, de mulher negra, LGBTQIA+, como uma artista nordestina e periférica lhe conduzem a esta condição. Porém, ela alicerça tudo isso na tradição, a sua do candomblé, da música do seu avô e da sua tia, expandindo os seus territórios musicais e artísticos muito bem consolidado no auto reconhecimento de suas “Raízes”, título da música que encerra o disco.
Uma artista que certamente lhe fará bem conhecer e que vem construindo através de políticas públicas as suas possibilidades de expressão que nos são necessárias. Que Anne Carol aporte logo em Salvador, para que eu possa vê-la ao vivo.
Abaixo deixamos o show gravado ao vivo do seu disco Semblantes, contratem fazendo favor!
-Anne Carol estreia em disco a diversidade sonora decolonial de seus “Semblantes”
Por Danilo Cruz