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Anadolu Rock, diretamente da Turquia

O Anadolu Rock nasceu a partir do encontro entre a cultura turca e a cultura ocidental. Assim como ocorrera em tantos outros países, a geração turca imediatamente sentiu atração pelo rock, o assimilou, transformando-o em manifestação musical genuinamente turca. 

– O caldeirão étnico – cultural da Anatólia

A península de Anatólia ou Ásia Menor sempre foi uma região de importância histórica. Passando pelos Hititas, que deram nome ao local, pelo Império Assírio, os Frígios do Reino da Lídia, o Império Persa Aquemênida de Ciro II, o Império Macedônio de Alexandre e o Império Romano até os Bizantinos, antes de se tornar parte do Império Otomano e atual Turquia.

Trata-se de um território crucial para tráfego de pessoas e mercadorias da Europa e da Ásia, possuindo enorme valor estratégico militar e comercial. Justamente por ser a chave entre Ocidente e Oriente, tendo Constantinopla como porta principal. Provavelmente as diversas influências em sua formação, quanto ao território, e sua localização crucial entre esses dois mundos tenham contribuído para essa região ser a mais diversa em questões étnicas, culturais e religiosas desde os Otomanos. Também servindo como ponto de radiação do expansionismo Otomano, não só territorial, mas cultural em regiões como os Bálcãs. Portanto, não foi por coincidência que a música proliferou nessa região. Esse será o ponto explorado pelo texto, a música na região que atualmente é a Turquia.

– Modernização e abertura ao Ocidente, a semente do rock turco

A Turquia foi um Estado relativamente novo surgido após a Primeira Guerra Mundial com a derrota do Império Otomano em 1919, mas que só veio a se tornar uma república em 1923. E em 1924 as chamadas Reformas de Atatürk, conjunto de reformas políticas, legais, culturais, sociais, educacionais, científicas e econômicas, cuja finalidade consistia em modernizar e secularizar o país, seguindo princípios positivistas e racionalistas. Isso permitiu principalmente a partir dos anos 1930’s,a chamada “ocidentalização” tanto do ponto de vista político quanto cultural.

Com isso a nova Turquia se torna o mais ocidental dos países orientais chegando até a eleger 18 deputadas em 1935 e até 1945 ela foi um regime uni partidário. Após a Segunda Guerra a Turquia se envolveu na Guerra Civil Grega e a influência soviética na região, tornou-se o bastião contra a expansão soviética no Mediterrâneo. Sua transição para uma democracia pluripartidária foi complicada envolvendo diversos golpes militares como em 1960, 1971, 1980 e 1997, e no conflito de Chipre em 1974 que resultou na República Turca de Chipre do Norte após décadas de conflitos étnicos. E no meio desse contexto turbulento que nasce o Anadolu Rock ou Anatolian Rock.

No final dos anos 1950’s, com forte influência europeia e, sobretudo britânica e estadunidense, a música turca começa a ganhar forma tanto no rock quanto no Folk Turco que mistura elementos multiculturais da península anatoliana como albaneses, armênios, assírios, bósnios, gregos, judeus, curdos, azerbaijano, árabe e marchas otomanas, além da própria música turca.

 Esse Folk Turco já tinha destaque no país desde os anos 1920’s, mas só a influência ocidental leva a uma ruptura parcial com o tradicionalismo que permitiu a incorporação do Rock ‘n’ Roll e R&B. Entre as décadas de 1950 e 1960 a música turca se dividia entre o tradicional, o novo Folk Turco e o Rock ‘n’ Roll em sua maioria genérico voltado aos covers de Elvis Presley e Fat Domino. Porém, entre 1966 e a década de 1970, a indústria fonográfica estava atingindo um ápice em proporções mundiais jamais vistas, com o acesso cada vez mais rápido a informação em todo o globo.

A música cada vez mais se tornava internacional e transcendia as barreiras culturais. Movimentos como o Hippie e o Beatnik se espalhavam por todo mundo, carregados de influências cosmopolitas e diversificadas, que abordavam uma temática rebelde que ora pregava uma curtição sem politização e ora pregava a contestação sociopolítica.

Anadolu Rock ou Anatolian Rock é justamente a fusão do Folk Turco com o Rock ‘n’ Roll, mas que contou também com a influência do R&B, do Soul, do Rock Psicodélico, do Folk Rock, do Folk Psicodélico e do Rock Progressivo. Tendo em vista que além do Rock ‘n’ Roll ter se tornado muito popular nos anos 1950’s, entre 1968 até fim da década de 1970’s o Rock Psicodélico se tornou extremamente popular na Turquia. Chegou ao ponto de se ter até produções de músicas que incorporaram elementos do Funk, Hard Rock e até Heavy Metal durante os anos 1970’s.

Esse movimento cuja principal geração é de artistas nascidos entre a década de 1940’s e 1950’s é um reflexo de sua própria realidade, assim como ocorreram nas grandes potências fonográficas, EUA e Reino Unido. Uma geração nascida num contexto tumultuado e conflituoso de um mundo que acabou de sair da maior guerra já vista, conflitos sociopolíticos e econômicos resultados da Guerra Fria e da experimentação oriunda da globalização cada vez mais eminente.

Eram jovens ainda presos em suas fortes raízes étnicas e culturais, mas que tinham sede de conhecer o novo e misturar para uma produção autêntica. De longe uma das coisas mais originais e bem executadas que já tive o prazer de ouvir, conseguindo manter uma harmonia magnífica entre os diversos elementos incorporados. Um Rock que se expressa belissimamente em turco e às vezes deixa a guitarra um pouco de lado e abre espaço para o Saz ou Bağlama, instrumento de sete cordas popular na Turquia, Irã, Azerbaijão, Armênia, Curdistão e Balcãs.

– Erkin Koray:

Talvez Erkin Koray seja o nome mais notório da música turca principalmente no que diz respeito ao Anadolu Rock sendo um dos seus pioneiros. Começou sua carreira profissional em 1966, segue na ativa até os dias de hoje. Erkin Koray começou fazendo covers de clássicos do Rock ‘n’ Roll em 1957, quando contava apenas 16 anos de idade. Muitos o apontam como o grande percursor da música Psicodélica, do Rock e da guitarra elétrica na Turquia. Erkin é considerado também inventor do Arabesque ou Arabesk Rock, que contava com elementos musicais árabes e turcos fundidos ao rock.  

Ele fez um processo de reformar canções folclóricas turcas bem conhecidas dando uma nova roupagem. Ele fazia com maestria o uso de melodias ocidentais e orientais indo do autêntico Folk Turco ao Hard Rock americanizado, até a fusão sublime de ambos os extremos. Em 1966 ele já era uma figura importante da cena psicodélica turca e do Anadolu Rock, emplacando seu primeiro single Anma Arkadas em 1967 e logo depois emplacou diversos sucessos dele e em colaboração com outros artistas dessa nova cena.

No início dos anos 1970’s ele formou a banda Ter com antigos membros da notória banda Bunalim, uma banda fantástica de rock psicodélico obscuro e mais pesado pra época que atuou entre 1968 e 1972, que me atrevo a dizer que seria uma espécie de Black Sabbath da Turquia. Contudo, a parceria só resultaria em uma gravação visceral quase punk de um cover árabe de Orthan Gncebay, Hor Görme Garibi recheado de fuzz e distorção com uma bateria agressiva e solos rasgados, fazendo arranjo para uma bela canção que quase destoa, coisa que as gravadoras da época não estariam preparadas para gravar.  

Em 1973 ele lança seu primeiro álbum que seria um compilado de singles entre 1967 e 1973 pela Istanbul Records. Em 1974 ele assina com a Doglan Records e lança Şaşkın (Dabke). Ainda no mesmo ano ele lança um dos seus maiores álbuns, Elektronik Türküler, seria o álbum que ele mais misturou elementos ocidentais e tradicionais. Os sucessos de Koray como Fesuphanallah, Istemem, Sevince, Ökry Bir Geçer Zaman ki, Arap Saçı, Yalnızlar Rıhtımı, Akrebin Gözleri, Çöpçüler e principalmente Estarabim se tornam grandes músicas, não só no contexto musical turco ou oriental, mas mundial (em menor escala), sendo até regravada pela banda israelense de Heavy Metal Orphaned Land. Hoje Erkin Koray mora no Canadá. 

– Barış Manço: 

Barış Manço foi outro grande destaque que, assim como Koray, variou entre o Folk Turco, Rock Psicodélico em inglês, músicas românticas e o Anadolu Rock. Sendo um de seus pioneiros e iniciando sua carreira com covers de rock em 1958, assim como Koray. Por influência do mesmo, Manço fundou a banda Kafadarlar, uma banda de adolescentes que curtiam o bom e velho Rock ‘n’ Roll.  

Entre 1962 e 1963 montou outra banda, chamada Harmoniler, que gravou uns covers de canções populares norte-americanas e reformulou canções folclóricas turcas para se aproximar mais do Rock ‘n’ Roll, fato marcante para o movimento do Rock da Anatólia como um todo.  Em 1964 Barış vai estudar na Bélgica e monta uma banda chamada Les Mistigris com quem rodou a Europa e a Turquia até 1967. Tratava-se de uma banda multi-étnica, contava em sua formação com integrantes da Bélgica, Turquia, Alemanha e França. Em 1967 volta a residir na Turquia e monta a Kaygısızlar junto com Mazhar Alanson e Fuat Güner, futuros membros da dupla Mazhar ve Fuat, nome original da banda MFÖ (Mazhar-Fuat-Özkan).  

Em 1970, formou novamente “Barış Manço Ve…” com músicos estrangeiros, para gravar seu primeiro single de sucesso. Tanto na Turquia quanto na Bélgica, Dağlar Dağlar, vendeu mais de 700.000 cópias, ainda hoje continua sendo uma de suas obras mais populares. Após esse grande sucesso, Manço gravou alguns singles com Moğollar, outra influente banda de rock turca da Anatólia. Ele então decidiu voltar para a Turquia, onde gravou com o Kaygısızlar, reformulado, por um curto período.

Em 1971, seus primeiros trabalhos foram compilados em seu primeiro álbum completo, Dünden Bugüne, hoje comumente referido como Dağlar Dağlar. Em 1972, ele formou Kurtalan Ekspres. Uma lenda por si só, seria a banda que iria acompanhá-lo até sua morte. Em 1975 ele lançou seu primeiro LP sem compilações. 2023, um álbum conceitual que inclui muitas músicas instrumentais.  

Como uma última tentativa de alcançar o sucesso internacional, lançou o LP intitulado Baris Mancho (1976), uma transcrição estranha de seu nome. O álbum teve relativo sucesso na Europa e na África do Sul. Embora o álbum não trouxesse a fama que ele esperava, chegou ao topo das paradas na Romênia e no Marrocos.  

No ano seguinte, o álbum foi lançado na Turquia sob o título Nick the Chopper. De 1977 a 1980, ele lançou mais três álbuns na Turquia, consistindo em parte de compilações de singles mais antigos, como Sakla Samanı Gelir Zamanı (1977), Yeni Bir Gün (1979) e 20. Sanat Yılı Disko Manço (1980), todos seguindo um som semelhante ao presente em 2023.  

Todos esses álbuns são agora itens raros, mas a maior parte do material da época está disponível nas compilações posteriores Ben Bilirim e Sarı Çizmeli Mehmet Ağa. Na década de 1980 e 1990 Manço seguiu uma linha mais aproximada do pop romântico como muitos músicos de sua geração em todo mundo. Manço pode não ter conseguido alcançar o sucesso internacional que tanto queria e merecia, mas conseguiu deixar sua marca e legado na música turca e mundial até sua morte em 1999. 

– Selda Bağcan:

https://www.youtube.com/watch?v=3fj7wGsoYlE&list=PL708F5E122A9783B5

Selda Bağcan pode ser considerada a mistura entre Joan Baez e Bob Dylan da Turquia pela sua forte ligação com o Folk e questões socias e políticas. Ela nasceu em 1948 e seu interesse pela música se deu em 1957 quando começou a tocar e cantar por hobbie. Cantava e tocava principalmente canções populares em inglês, italiano e espanhol, as quais ouvia no rádio. Contudo, só após entrar na Universidade de Ankara ocorreu o florescimento de seu interesse musical, principalmente pelas músicas tradicionais turcas e o Folk, além do primeiro contato com o Anadolu Rock.  

Graças ao clube noturno de seus irmãos chamado Beethoven no centro de Ancara, Selda pôde conhecer grandes nomes como Cem Karaca, Barış Manço e Fikret Kızılok. Sua carreira ocorreu de fato em 1971 com seu primeiro álbum Katip Arzuhalim Yaz Yare BöyleMapusanede Mermerden Direk produzido por seu amigo e produtor Erkan Özerman.  

Os seis singles lançados por ela naquele ano, nos quais interpretou canções folclóricas tradicionais turcas com uma voz forte e emotiva, a marcaram pelo resto de sua carreira, que acompanhada por um simples violão ou bağlama, a conduziriam até a fama nacional.  

Em 1972, ela foi selecionada pelo Ministério de Relações Exteriores da Turquia para representar a Turquia no concurso internacional de músicas de Orfeu Dourado. Ela lançou mais doze singles e três discos do LP até 1980 e visitou muitas cidades na Turquia e na Europa Ocidental. Muitas de suas canções carregavam forte crítica social e solidariedade com os pobres e a classe trabalhadora, o que a tornou especialmente popular entre os ativistas de esquerda e simpatizantes durante os polarizados politicamente dos anos 1970.  

Ela experimentou Rock ‘n’ Roll e sons sintéticos e eletrônicos em seus LPs, embora seu estilo musical permanecesse firmemente enraizado na tradição folk. Após o golpe de Estado turco de 1980, ela foi perseguida pelos governantes militares devido as suas canções políticas e foi presa três vezes entre 1981 e 1984 chegando ao ponto de seu passaporte ser confiscado e mantido pelas autoridades até 1987, o que, entre outras coisas, a impediu de participar do primeiro festival WOMAD Reading em 1986.

Em parte graças à pressão da WOMAD, seu passaporte foi devolvido em 1987 e ela imediatamente iniciou uma turnê européia dando concertos na Holanda e no Reino Unido no mesmo ano. Desde então fez diversos shows pelo mundo e produziu diversos álbuns seus e de outros artistas com sua produtora Majör Müzik Yapim. Sua música foi sampleada por vários músicos fora da Turquia, incluindo a banda 2manydjs e os artistas de hip-hop Mos Def, Oh No, e Dr. Dre.               

O Anadolu Rock foi um fenomeno nacional turco de proporções internacionais, mas que infelizmente não obteve o sucesso mundial midiático esperado, sendo que até hoje se produz. Grandes nomes como 3 Hür-El e seu irreverente som, Mustafa Özkent que trouxe o swing do funk e até o mais tradicional Arif Sağ são figuras que estão, talvez um pouco esquecidas, mas serão sempre eternizadas na música.     

Sobre o autor:

Ivan Motosserra é produtor, rodie, dançarino

e vocalista de uma banda de Surf Music

instrumental com seu nome, além de podcaster,

pesquisador e aspirante a professor.                

  

 

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