Ana Frango Elétrico e uma breve história das mutações e saltos artísticos de uma artista especialista na produção de epifanias!
“ Seu amor feminino me deixou de quatro por cima de toda razão, convenção”
Sempre vou achar – e aqui o achismo é importante – a voz da Ana Frango Elétrico/ uma coisa estranha. A primeira vez que ouvi seu disco a estranheza foi total, eu comecei – não sei você – pelo Little Eletric Chicken Heart (2020) e esse disco passou a moldar o meu “caráter”, me tomou de fora para dentro. Nem fazia frio e eu já sentia medo de trovão, sua voz gritava no fundo do meu ouvido, sem sugestionar, eram ordens. De fone pela cidade de Salvador, Ana Frango se tornou para mim um caminho para uma encruzilhada poética e musical que a música brasileira contemporânea ainda não notou em toda sua potência ou não entrou na vibe direito.
Não é nenhum exagero que a poética e musicalidade desse bicho, abraça como uma jibóia e nunca mais solta numa suavidade de um ursinho carinhoso! A, precisam ser refletidas, s diversas camadas presentes em seus dois primeiros discos, assim como o desenvolvimento daquela estranheza acima mencionada precisa ser ruminada como o fazem os bois e as vacas. Ruminar aqui significa o sentido original de pensar lentamente os afetos causados, os comandos dados e impossíveis de serem negados. Só assim, e somente dessa forma é possível brocar o colete da ligeireza falatória que a internet proporciona e a consequente produção de uma doxa vazia repetindo clichês sobre pós-modernidade, contemporaneidade e os caraio a quatro.
Um coração tão pequeno, que eu degustava com minha prometida num churrasquinho da volta do trabalho, saboroso em sua generosidade e me levava a comer vários deles espetados e suculentos num espetinho, com farofa e salada. Não imaginaria que poderia me oprimir tanto, um bicho como esse não podia me encurralar como tem feito ao longo dos últimos meses e lançamentos. A voz da Ana é imensamente pequena, e o seu canto/composições produz um território artístico próprio e singular entre diversos mares da tradição, uma artista que mais do que uma ilha criativa é ao seu próprio modo um arquipélago de criações.
Um território de multiplicidades criadoras e potencialmente indomável Uma ilha louca e deserta totalmente povoada com sons, cores, bichos, plantas e afetos muito novos. Que neste sentido trabalha uma série de ecologias, um habitat que ela vem povoado aos poucos e é um pouco como Lost, sem fim possível senão estraga; Ficamos sempre perdidos entre o rock, o apelo pop, o experimentar, o humor non sense, a voz miúda, a poesia doida, tediosa e engraçada.
O pixo e a poesia estão dentro da música de Ana Frango Elétrico de modo inaudito na música brasileira, só não aproveita ela quem não quer, tá facinho. Ela está aí disponibilizada e impossível de ser aprisionada, inteligente, contraditória, escorregadia, as imagens em efervescência para lhe confundir e seduzir. Pega quem quer, pega quem pode, e aja swing. O problema é saber o que você está ganhando, qual produto você está retirando da prateleira nesse multimercado onde tudo se vende e compra, porque mais do que mulher, homem, bicho, planta, mineral, Ana Frango Elétrico tem sido um devir musical. Vai trocar por qual equivalência?
“Não se assuste comigo sou mulher homem bicho, Não vem que não tem, sou bruxa e neném”
Aqui, uma de suas potências do falso é sua virtude ao não se render a nada que está dado, ao beber na fonte de Barchard e da Silvinha Telles, ao meter um funkão a lá Lincoln Olivetti. É o bote desta cobra espremendo o ciborgue dos algoritmos, arapuca montada através de uma pesquisa longa e esticada como sua voz, sua língua, através de trabalhos que só vão te confundir, e está aí sua maravilha, Longe de ser a EVa, ela é a cobra que infunde a dúvida e a desobediência diante das ordens dadas pelo mercado. “ Você não quer tem quem queira”
O feminino da Ana Frango Elétrico é ponto de partida, é sempre gestação sem pai nem mãe, e por isso mesmo sempre abertura ao romper as convenções pré-estabelecidas, “Fraulein Neu”. Ela não é também uma boa nova, ela é talvez a má nova, num mercado inflacionado de mediocridade reconhecida como genialidade, por um monte de especialistas falecidos. As máquinas de captura do hype branco, classe média, universitário, midiático encontram em Ana Frango Elétrico, a represa rompendo, em geral quando eles tapam um buraco, abre´se outro, e tudo tende e segue rachando. Não se sabe por onde Ana Frango Elétrico vai atacar, e isso é a imprevisibilidade de uma artista que não têm confiado em fórmulas, que realmente tem buscado, chafurdando, se imiscuído no desejo de criar, de cantar, de questionar, sem pedantismos, sem uma aura cult.
Lançado em 2018, Mormaço Queima seu disco de estréia é sua fase punk, no sense, com uma poesia e uma sonoridade toda torta, de resultado instigante. Em entrevista aqui mesmo ao Oganpazan numa live lá no começo da pandemia, ela nos contou que questionava imensamente o ato de cantar. E podemos perceber ouvindo o disco atenciosamente – e dançando enquanto isso – como a artista recorre a diversos procedimentos loucos de composição. Os andamentos, as letras, as imagens poéticas – ela própria poeta publicada – a elegância e o refinamento sujo com o eco punk da proposta, com que se guarda um certo espírito iconoclasta e um frescor juvenil, arremessa o bom gosto mediano para a rua. Seja no metrô, seja na rua andando de bike e vendo o sósia do Lenny Kravitz, e não é de boca não, ela pixa e mija em igrejas! O bom humor deveria ser uma linha de corte para o que é importante ou não, e nesse sentido, Ana Frango é uma piadista de primeira, com sua música.
Um disco exemplar, que se comporta muito bem diante da caretice que reina, sem rebeldias de butique, Apenas uma escolha de paladar, tal como a menina que não suportava o picles. Acho que era o D.H. Lawrence que dizia algo sobre sermos animais distintos, diferentes, não podemos nos dar bem, ou seja, não possuímos os mesmos afeto, os mesmos territórios, o nosso ethos é bem diferente! Dessa forma, a Ana Frango Elétrico é um animal que busca aliados através da diferença de afetos que produz, encontrando apenas na afirmação da própria diferença como diferença e no devir um elemento de contato entre as diferentes espécies.
Mormaço Queima tem para muitos uma aura underground, mas essa senhora é toda subterrânea até agora, abordando fluxos esquisitos, estranhos, anti-populares, ou melhor fluxos de um povo a surgir. Ana Frango é casca de ferida, como diziam os antigos.
“Somos feitas da lama das fêmeas molhas, na chama e na cama refeita e acalmada”
No ano passado, veio à luz outro crime dela que foi o que me sentenciou, e os holofotes de críticos e do Grammy brilharam, o que desagradou alguns “fãs” e impulsionou alguns críticos. No ringue, Mormaço Queima x Little Electtric Chicken Heart, eu considero que o Little leva por pontos, sem nocaute, a depender do juiz até um empate seria digno, mas o que isso importa? São discos diferentes feitos sob o mesmo nome, porém por artistas distintas, é plenamente possível perceber quando artistas estão em franco estado de modificação. Aqui estamos diante de uma cantora, que manda o coro cantar Saudade como uma espécie de ritornelo para lhe fazer segura o suficiente para soltar a sua ínfima voz imensa.
Quem me nocauteou foi esse pequeno coração, pensar nele batendo dentro de um corpo, um pequenino coração de galinha pulsando tanto sangue, retirando forças de onde? é impressionante como o canto da Ana Frango Elétrico consegue nos afetar com sua pequenez. A força vem de lugares recônditos em sua pesquisa, mas também está plenamente ligado a uma tradição de nossa música, mesmo não tão reconhecido com cantoras como Fátima Guedes, Tetê Espinola, Denise Emmer, e muitas outras vozes estranhas à nossa “tradição”. Ana Frango está plenamente ligada a elas, não necessariamente por ter recebido influência, mas por uma linha que vai de mais longe ainda, de cantoras de vozes “menores”, independente do alcance, do gênero ou poética!
A grandiosidade da Ana Frango é algo desafiador, não convencional e algo mais próximo das grandes pequenas cantoras brasileiras, do que das grandes estrelas deleitas pela tradição. Isso não significa que ela não possa ser indicada a prêmios e ganhá-los, ou que não possa ter sucesso. Estamos falando do aspecto estético, ético e político de suas produções, temas, discos e comportamento nas redes, pouco afeita ao padrão seja da tradição, seja do atual! Descubra e seja fisgado..
PS:.Os versos que pontuam o texto são da composição da Ava Rocha gravada pela Ana Frango Elétrico, seu último single: Mulher Moem Bicho!
-Ana Frango Eletrico Mulher Homem Bicho Planta Baby
Por Danilo Cruz