Amy Whinehouse encontrou a si mesma na música, entendeu através dela o por quê de sua existência. Porém, o encontro com o sucesso selou o seu fim!
Amy emociona! Pela narrativa construída apenas por imagens de vídeos pessoais de pessoas próximas à ela, mas também pela intens0idade com que a vida da jovem cantora nos é apresentada pelo diretor Asif Kapadia. A escolha pelo uso deste tipo de registro ao invés das já manjadas e desgastadas gravações de depoimentos de pessoas próximas ao biografado, deu ao filme uma dimensão dramática muito forte.
Ironicamente, vem à mente uma questão importante, referente ao trabalho do diretor na construção do filme. Bom, o papel do diretor em um filme é dirigir cenas, orientar os posicionamentos das câmeras, pensar sobre o modo como filmar uma cena. Não há nada disso em Amy. Contudo existe a descoberta de uma nova forma de se construir uma história em imagem movimento. Tudo bem, não é tão nova assim, pois temos no mínimo 1 excelente documentário feito dessa maneira: Hearts of Darkness: A Filmmaker´s Apocalypse (1991) dirigido por Fax Bahr e George Hickenlooper.
De qualquer forma a montagem do filme é feita usando praticamente 100% de gravações feitas por terceiros. Nesses termos, o trabalho do diretor se assemelha muito ao do pintor, que entre muitas e muitas formas possíveis de compor as cores de sua paleta, deve escolher com sensibilidade as misturas específicas das cores para gerar as emoções e sentimentos esperados nas pessoas. Kapadian no lugar de uma paleta com várias cores, tinha um vasto acervo de vídeos, e teve que analisar minuciosamente quais seriam as peças certas para montar a história de seu filme.
O filme gerou controvérsia, parece que o pai de Amy, Mitchel Winehouse, não concorda com a visão de Kapadian sobre a vida de sua filha. Isso nos permite tocar num ponto importante no que se refere a documentários, a ideia, própria ao senso comum, de que devem ser imparciais e transmitir a verdade. A imparcialidade é um mito, seja no jornalismo, nas teorias científicas e filosóficas, seja na arte. Isso porque sempre se trata do ponto de vista de uma subjetividade, que carrega consigo uma visão de mundo própria. Nesse sentido devemos analisar qual Amy Winehouse Kapadian nos apresenta. Parece-me ser este o ponto ao analisarmos seu filme.
As imagens selecionadas pelo diretor britânico e o modo como as juntou revelam uma pessoa com problemas comuns, desejos próprios a qualquer ser humano, nos apresenta uma Amy totalmente despida daquela roupagem midiática que alimentava uma imagem degradante, negativa, cujo único propósito era gerar conteúdo para jornais sensacionalistas e programas televisivos igualmente vis.
Somos apresentados primeiramente a uma adolescente vivendo a vida de uma adolescente londrina de classe média, já fascinada pela música, apaixonada pelas pessoas que a cercavam. Esse traço da personalidade de Amy sobressai ao longo do filme. Vemos uma pessoa muito ligada às relações pessoais. Percebemos ser a paixão o motor que impulsionava a cantora: a paixão pela música, a paixão pelos amigos, pelos pais, pelo namorado e depois marido Blake Fielder. Sua paixão era intensa por todos eles, a ponto de não sobrar nada para si mesma. Esse é o elemento trágico presente na vida de Amy Winehouse. A entrega absoluta às paixões e o esquecimento completo de si.
Sua dependência pela atenção, companhia, amor das outras pessoas era avassaladora, fruto do trauma causado pela separação dos pais e principalmente pela ausência do pai, notadamente algo que atingiu a cantora profundamente. Não há como negar a presença edipiana na relação entre Amy e seu pai. Kapadian nos mostra ao longo do filme a busca constante de Amy pela atenção do pai, por sua aprovação e admiração. Há dois momentos marcantes relacionados a esta relação entre pai e filha. Um deles ocorreu durante a cerimônia do Grammy Awards em 2008.
Amy está reunida com sua banda, equipe, amigos e familiares estavam reunidos no Riverside Studio em Londres acompanhando a premiação. Ela do palco, sua banda ao fundo, todos sentados esperando o momento da noite. Naquela edição do Grammy Amy havia sido indicada em 6 categorias, saiu vencedora em 5. O momento daquela noite escolhido por Kapadian nesse episódio, foi o anuncio do vencedor na categoria de Record of The Year, Ammy concorria com Rehab. Até aquele momento ela havia vencido em outras duas categorias. Entendamos agora porque este momento foi escolhido pelo diretor e de que maneira ele lança luz sobre a relação entre Amy e o pai. Quando a locutora do Grammy anuncia os convidados que anunciarão o vencedor da categoria Record of The Year, a câmera enquadra a cantora no palco. Podemos perceber sua reação, misto de euforia e admiração, ao ser anunciado o nome de Tony Bennet como um dos anunciantes. Ela olha em direção ao pai, estende os braços e diz “Dad! Dad! Tony Bennet!”, percebemos nessa fala algo na música que liga Amy ao seu pai. A reação dela ao saber que a premiação daquela categoria seria anunciada por Tony Bennett foi mais intensa que sua reação ao saber que havia vencido naquela categoria.
Há nessa imagem a presença forte do pai na figura do Tony Bennett, pois Mitchel também é fan do cantor e certamente foi responsável direta ou indiretamente, por despertar na filha o gosto pela música de Bennett. O modo como essa parte do filme é montada por Kapadia busca justamente mostrar a forma como a filha vê seu pai. Kapadia usa várias imagens em que a câmera foca o pai de Amy durante o acompanhamento da cerimônia do Grammy.
O outro momento marcante sobre a relação entre Amy e Mitchel ocorre quando Amy já está desgastada pelo vício e pela depressão. Buscando descanso em alguma praia numa ilha afastada dos holofotes e Mitchel aparece com uma câmera na mão se apresentando como aqueles que torturaram a filha durante anos, os paparazzi. O segurança de Amy diz que sempre que o pai aparecia era pra fazer filmagens da filha e tentar convencê-la a se apresentar. Fica evidente que o amor estava presente em apenas um lado da relação. Mitchel Winehouse da metade pro final do filme, quando a carreira da cantora tem uma reviravolta com o lançamento de Bach To Black, passa a ser uma figura constante na vida da filha, porém colocando o lucro na frente do bem estar da filha sempre.
Muito se deve ao modo como Amy se comportava diante das câmeras, completamente despojada, agindo naturalmente, sem preocupar em simular uma personagem. Engraçado que a naturalidade da cantora tem uma dimensão performática bastante latente. Seus olhares são sempre penetrantes, seus gestos cheios de expressividade, suas expressões faciais sempre transbordante dos sentimentos que animam sua alma!
Esse traço característico da personalidade de Amy fez do filme sobre sua vida uma peculiaridade que poucos documentários possuem.
Os 27 anos de vida de Amy Winehouse são o exemplo claro sobre o modo como o elemento trágico se apropria da existência. A maioria de nós consegue assumir a persona que ao poucos as instituições sociais nos leva a assumir. Conseguimos preservar nossa existência abrindo mão de nossas vontades, usando nossas próprias forças produtivas para usar a matéria prima que nos é oferecida para construirmos nossa própria matrix. Há, contudo, os espíritos livres, cuja rebeldia não pode ser contida, e tal qual o animal selvagem, prefere morrer a se acostumar com sua prisão.
O filme de Kapadia mostra um espírito livre, que precocemente, encontrou a bússola através da qual iria orientar seus passos pelo existir. A música deu à adolescente Amy toda sensação de preenchimento e realização desejada por cada pessoa. O instinto criador, que já estava plenamente desenvolvido na sua adolescência, apontou-lhe o caminho. Amy, munida da força presente apenas nos espíritos livres, lançou-se no caminho que lhe propiciaria ser a própria música. Infelizmente a transformação de sua figura, efetuada pela Indústria Cultura, em mero produto vendido em prateleiras midiáticas, encobriu sua música. A cantora fora completamente anulada pela mercadoria. Essa “mutação” roubou-lhe a sanidade, a saúde, os sonhos, a consciência e a vontade de viver.