Marcelo D2 – Amar é para os fortes (2018) Novo disco do rapper carioca chega com musicalidade exuberante, reflexões sobre politica e arte!!!
Antiguidade é posto e, malandro bom que é, Marcelo D2 envelhece em excelente forma apresentando seu décimo disco solo. Amar é Para os Fortes (2018) chegou para nós nesse fim de ano e rapidamente se converteu num presente real para ouvidos que esperavam por um disco onde estão mescladas uma musicalidade brasileira exuberante com a mais pura essência do rap: o bom combate.
O disco concebido como um album visual, apresenta-nos 10 faixas, transitando através de um posicionamento político forte, e um subtexto narrativo que vai atravessando as músicas. Não tivemos acesso ao filme que o acompanha, mas o caratér cinematográfico da obra se torna evidente na audição.
É a história de Sinistro, um moleque curioso, inquieto, alguém que tende para a arte como uma linha de fuga capaz de enriquecer a vida, mas que como muitos dos nossos jovens, vive naquela fronteira entre a possibilidade de fazer a vida proliferar pelos afetos da arte, e o assédio constante da morte pelo crime.
A medida que o disco avança, o ganho de sentido musical, politico, estético, religioso e ancestral, só avança de modo esplendoroso. As inserções de trechos de [audio, onde vamos conhecendo a caminhada, os desafios e pequenas conquistas do Sinistro dialogam com as músicas. As músicas vão servindo como diagnósticos sobre a selva de pedra habitada pelo moleque, comentários sobre o estado politico atual e direções possíveis: quase como uma espécie de ethos a ser seguido.
O disco vai assim, podendo ser lido como uma carta ao filho – o rapper Sain (Que encarna o Sinistro no filme) – ou mesmo como uma auto reflexão de como o próprio D2 se manteve inteiro. Sendo assim, vamos também percebendo como criador e criatura (artista e personagem – pai e filho) possuem uma dimensão de identificação fantástica, o eu lírico do próprio Marcelo D2, se repartindo na arte e na vida.
O disco vai construindo duas visões, dois universos, utilizando inserções que dialogam com a narrativa cinematográfica ou teatral. É possivel criar um storyboard mental com as cenas que vão nos sendo propostas. O que demonstra uma outra verve artística do rapper, pois mesmo sem ver o filme, é possível cria-lo na audição.
A ideia principal que as canções nos apresentam com maestria é uma determinada visão sobre o Amor. Não aquele amor universal e abstrato onde amar a todos é o mesmo que amar a ninguém, mas uma empatia com o próximo que pode ou não se converter em amor. Mas, principalmente, a ideia do amor a vida, reconhecendo-se portador de contradições, entendendo as diversas provocações às quais somos submetidos, tanto no particular quanto no coletivo.
O amor à arte já se faz presente na primeira faixa, Préludio em Rimas, é uma espécie de manifesto ou recenseamento de influências diversas que o atravessam e que demonstram como o rapper está muito bem referenciado. Contando com a produção de Nave, Mario Caldato e do próprio D2, a faixa conta com uma banda de peso, que passa por Marcelo Jeneci, Kassin e o mestre Liminha, entre outros grandes músicos.
As batidas de Nave, encontram em Alto da Colina a percussão de Sidinho e Ian Moreira, numa música que explora a situação atual da violência não apenas nos morros do Rio, mas em todas as periferias das cidades brasileiras. A negação constante de oportunidades, as comunidades periféricas impedidas de conquistar autonomia através da educação.
As influências cinematográficas chegam na faixa auto-intitulada Febre do Rato, um poderoso filme iconoclasta e anárquico do Claudio Assis, lançado em 2011. A música feita de modo orgânico tem o Rodrigo Amarante na bateria e uns solos nervosos de teclado do Money Mark.
Na lírica, a música dialoga com uma necessidade de permanecer jovem, por parte do Marcelo que sente a necessidade de não se curvar diante das imposições sociais. A conquista da potência para continuar desafiando o coro dos contentes, viver – exatamente pelo amor que se tem pela vida – sem remediar a febre do rato. A inserção no final da música de um sample do MC5 é bastante didático nesse sentido. Burn Motherfucker Burn!
Musicalmente o disco explora diversas vertentes rítmicas e de melodia, com excelentes músicos e uma produção que dispensa apresentações. As timbragens que o disco emana, são um show a parte. Marcelo D2 explora por sua parte flows diversos, ora mais agressivo, ora mais bamba, ora com aquela malandragem sagaz que o fez famoso.
Parte 2 é uma faixa onde o Mc navega com a destreza de sempre, onde o mano enfileira os afetos e posturas com os quais nos deparamos no dia a dia. Aquele ethos que acima foi mencionado é aqui explicitado, somente os nobres, os fortes, são capazes de continuar amando, mesmo diante de diversos exemplos que poderiam lhes causar nojo, do homem e do mundo. E nessa brincadeira, Sinistro (Sain) se deu bem!
A francesinha que estava no áudio anterior, “chega agora cantando”, a Chloé transpassa o visual e chega na música, como Anna Majidson Depois da Tempestade, com a doçura de um francês delicioso, como nas chansons. A música que também possui a participação de Seu Jorge, é o momento suavidade do disco que elucida-nos a força do amor dentro de um cenário caótico.
A amizade é uma forma de amor, talvez uma das mais fortes, e é o tema de Surpresa (Pros Amigos) com a luxuosa presença do saudoso Wilson das Neves. E enfileirando exemplos, o rapper carioca demostra como é de extrema importância a confirmação dos amigos, o respeito as diferenças, mas sobretudo o ethos que possibilita a amizade real.
Gilberto Gil é o convocado para uma das melhores faixas do album, uma espécie de reafirmação de si mesmo dentro de uma carreira que se faz vitoriosa, Resistência Cultural. Com influências nordestinas, a resistência às seduções diversas que a selva de pedra oferece, desde o aspectos mais mercadológicos em termos de arte, até a ética das ruas.
Uma ética que cobra a verdade, mas que muitas vezes esquece da solidariedade. Calhando perfeitamente com o momento atual que nosso país atravessa, a importante missão que a arte e a cultura desempenharão em esclarecer uma sociedade que flerta atualmente com o fascismo mais escancarado.
Resistir também é uma forma de amar, e o próprio tema da resistência é leitmotiv da faixa AEPOF, e como variações em torno da necessidade de evitar certas reações é fundamental. As guerras da micropolítica que precisam ser evitadas, a prudência diante das escolhas e companhias.
A música que se ancora nas percussões africanas, trabalho fino do Zero, que eleva o amor a potente substância presente também nos orixás, é uma aula de como fazer música rap no Brasil, que tanto D2 como Rincon Sapiência demonstram com uma excelência magistral e que torna escuro como não é necessário pedir autorização a MPB.
Sabemos que a sigla MPB geralmente é utilizada como um dispositivo de poder que legitima ou não determinados artistas. Ao longo de sua trajetória musical, o rapper Marcelo D2, procedeu por experimentações, seja no icônico Planet Hemp, seja em sua carreira solo. Nesse caminho trilhado, ele cruzou diversos ritmos com o rap, inclusive sendo pioneiro no cruzamento do rap com o samba.
Essas experimentações o trouxeram até esse disco, seu décimo disco de carreira, que o faz ter grandes nomes da música popular brasileira em participações no álbum, mas que não estão lá para autorizá-lo a ser músico popular fazendo música no Brasil. Isso ele conquistou por sua própria ousadia. Amar é para os fortes (2018), é um disco que precisaria ser melhor avaliado pelo público do rap, ao mesmo tempo que precisaria ser melhor escutado pelo público que não ouve o rap que não é descolado.
De qualquer sorte, é um dos melhores discos dentro de sua extensa discografia e nos deixa aquela sensação de que sim, esse 2018 é dele. Que ganhou filme biográfico, livro biográfico sobre o Planet Hemp, e a banda fez e continua fazendo shows incendiários pelo país. O lema em latim dito pelo rapper é bem verdade:
Ele veio, ele viu, ele conquistou!