Amanda Rosa, slammer e MC chega com muita qualidade poética e pesadas linhas na sua estreia em disco com o EP A Filha Revolta
“Oxeeeee, tá viajando é?”
Muitas vezes, artistas que em seus começos impressionam ao vivo, mas não conseguem encontrar em seus trabalhos de estréia a mesma força. Muitos inclusive não conseguem nem estrear em termos de singles e disco, haja vista a enorme dificuldade em termos de produção que artistas periféricos encontram. Neste sentido, sabemos o quanto essas dificuldades são muito maiores para mulheres que produzem arte nas periferias e que precisam driblar o machismo presente em nossas estruturas sociais, para conseguir se afirmar artisticamente. A baiana Amanda Rosa é um exemplo muito interessante disso tudo e muito mais, em seu EP de estreia
Sintetizando tudo isso, A Filha Revolta (2021) estreou nas plataformas digitais como segunda cria deste corpo feminino combativo que recentemente se tornou mãe, e logo após soltou seu primeiro EP. Não houve espaço para “resguardo”, a imagem que nos ocorre é de uma mulher na guerra com a cria no colo e uma arma na outra. Talvez, não seja exagero dizer, inclusive que estamos diante de uma dupla parição, onde uma está necessariamente ligada à outra, como uma espécie de complementação gemelar. Vida e obra se fundem nesse sentido, porém a partir de uma perspectiva formativa que dialoga.
Se é verdade que todo filho deve ser uma promessa de futuro, Amanda Rosa colocou gêmeos na rua, contra efetuação no presente e análise crítica do passado, a artista baiana conseguiu implementar com muita força um disco que de algum modo servirá de cartilha para a sua cria. Mas não apenas, o EP A Filha Revolta (2021) serve-nos a todos, jovens e mais velhos, como elemento artístico de reflexão e porque não, como base formativa.Como dito acima, já observávamos o trabalho de Amanda Rosa a distância, em suas participações em Saraus e batalhas de rima, e ali já era evidente o seu talento. Seja rimando ou declamando suas poesias, a potência era facilmente perceptível.
Essa mescla de talentos, já pode ser sentida na abertura deste EP que ora vem a baila, com a faixa título: “A Filha Revolta”. Com produção de Coelho Beats, Amanda Rosa declama com um flow cadenciado e revelador, em primeira pessoa a poetisa abre o jogo, jogando com bastante qualidade com as palavras. Produzindo um amálgama sobre sua vivência, sobre os problemas estruturais de nossa sociedade que ela teve que enfrentar, questões familiares, ancestralidade perdida e reconquistada. A artista demonstra sua capacidade de clareza e força nas ideias, assim como também nos aponta para a função primordial da poesia: retrabalhar a linguagem, logo, o pensamento. Uma volta sobre si mesma, filha, mãe, artista, uma revolta que tem por objetivo o coletivo mas também a busca por uma autonomia necessária.
“Estão nos violentando e ainda vão continuar, dizemos sigam conosco ou vamos sim atropelar”
A lírica presente na estreia de Amanda Rosa consegue uma façanha pouco vista na maioria dos trabalhos que acessamos. Politicamente, a artista consegue produzir uma mescla onde o feminismo não é excludente ou meramente condenatório de homens pretos, a suas críticas sobre a sociedade de classes não assume um marxismo pueril e sobretudo não se impõe como anterior a questão da raça. Em “Nois Vamo Meter Mão” (prod. Coelho Beats) há a denúncia do sistema patriarcal europeu, reproduzido na diáspora, mas há um chamado para a coletividade preta em busca de “bagaçar” a branquitude burguesa.
Talvez uma das faixas mais potentes do EP, “Bomba de Agressão” em um beat trap seco do conflito, que imprime um clima tenso para uma faixa necessária. Apesar de tomar como ponto de partida as próprias agressões e opressões sofridas enquanto mulher preta, periférica e interiorana, Amanda nos leva a refletir no quanto a militância e a clareza sobre todos os problemas sociais, raciais e políticos aos quais estamos submetidos podem nos levar a explodir. Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás. Amanda Rosa é natural de Seabra, região da Chapada Diamantina e foi vencedora do Festival de Música da Educadora FM, e desde sua chegada em Salvador, rapidamente se entrosou na cena local.
“Então não vem de mékué, mékué, mulher na favela não vai alvo desses mané”
Esse entrosamento traz no bojo um feat presente nesse EP de estréia com a MC Delarua, vítima da violência urbana e que nos deixou cedo demais. Sobre essa faixa a cantora nos conta:
“Inicialmente em 2017/2018, a ideia era fazer a música com o coletivo Vira Lata, chegamos até fazer uma letra, porém, cada uma em uma dinâmica, acabou não acontecendo. Quando foi em 2019 o pessoal do RimaFoto fez um sorteio no Instagram de um clipe, eu fui lá e botei um comentário com a marcação das meninas do coletivo Vira Lata, e ganhei rsrs, Refiz o convite pra gente gravar, mas aí várias ondas e não rolou. Eu já tava trocado ideia com DelaRua sobre a música pan, aí fui na casa dela, a gente fez uma letra aí senti que era ela que íamos gravar o clipe. DelaRua tinha toda essa carcaça de braba, mas era fofa, e muito talentosa. Mas vai dizer que ela é fofa, é capaz da mulher voltar só pra desmentir.
As coisas não podem voltar atrás, então, a gente fica com as lembranças, a saudade.
A bicha era talentosa e tava começando a voltar suas músicas pro funk, mas foi parada brutalmente.
O nome Lama é Casa foi ela que sugeriu e assim foi.
Essa música está no EP porque sempre esteve. Eu já tava grávida e o EP já pronto quando ela foi assassinada. Eu estava lá também, junto a todo o trem bala. Enfim, a gente não pôde fazer nada.
As mãos atadas nessa situação é difícil.
O trabalho precisa ser anterior, depois que se vai, já foi, não tem como voltar atrás, fazer mais nada pela pessoa. A mãe já perdeu a filha, e isso não muda, pode ser feito o que for. Nem mesmo a justiça acalenta.”
Uma faixa certamente histórica e rua até umas hora, “Lama é Casa” faz alusão ao clássico evento do underground de Salcity, a produção de Jay Redley que acrescentou efeitos que remetem a infância faz um contraponto muito cativante a letra que chama atenção para as vivências na rua. DelaRua chega pesadona demais na faixa, o que nos deixa saudoso do que essa menina ainda teria para fazer em nossa cena. Amanda Rosa em seus versos fala muito sobre postura, sobre coletividade, sobre uma visão macropolítica de que no final das tretas entre os nossos: “só nós vai cair”!
A pluralidade de questões que esse curto EP nos apresenta é fruto de uma vida muito bem informada e sobretudo plural também. As faixas “Essa Ideia Tá Falida” e “Por um Triz”, são duas faixas que abordam sentimentos, sexo e política, através de uma perspectiva bissexual. Na primeira, que conta com a produção do Dactes, a poetisa chama-nos atenção para as relações que muitos homens possuem com o desejo, entendendo-o como mera descarga, e nesse sentido a crítica da autora não faz uma crítica às relações casuais. Mas, sobretudo do desprezo que muitas vezes ocorre na manhã seguinte, o que não significa, por outro lado, apelo algum a romantismo do tipo flores e café da manhã na cama. Mas sim, relações sinceras e bem resolvidas, e não mentiras contadas para conseguir gozar e partir.
Faixa reveladora de uma relação que se transformou em amizade e que se faz presente no disco não apenas como música. “Por Um Triz” faixa produzida por Aquaib, aborda com leveza e sensualidade o affair entre Amanda Rosa e Beatriz Almeida, que hoje é a empresária da artista! Duas faixas abordando possibilidades de amor, encontros e desencontros que podem demonstrar leveza ou certa crueldade, o que agrega bastante ao disco em termos poéticos e políticos.
A já premiada “Oxe Não se Bote”, que ganhou o festival da educadora, traz a rapper Candace, num trapagodão da safra do grande pioneiro Calibre beats. Onde a dupla, swinga a luta, e como o título avisa: não se bote e num viaje não vuh? As pretas tão na visão e preparadas para bater de frente com quaisquer opressão, pois como diz a dupla: as pretas é doce mas não é mole não! Fechando esse “gofo” artístico – nas palavras da artista – com chave de ouro, e sem alívio, pois mulheres pretas periféricas, mães artistas seguem sofrendo opressões de toda sorte
Em seu EP de estreia Amanda Rosa exorciza uma filha revoltada para abrir espaço para outras dimensões do seu múltiplo fazer artístico. Certamente, estamos diante de uma estréia de peso e que merece a atenção de todes que admiram o potente rap feito na Bahia, a filha de Seabra, mãe de Malawi, nos oferta uma promessa de carreira que nos fortalecerá nas lutas que diuturnamente se fazem necessárias, com muita qualidade poética e musical!
-Amada Rosa estreia pesadona com A Filha Revolta (2021)
Por Danilo Cruz