Alquimistas e a receita contra a infantilidade ignorante no Rap Nacional – Prata (2022)

O Alquimistas, grupo lendário de São Bernardo do Campo, lançou o segundo capítulo da sua importante trilogia com o disco Prata (2022), leia!

Alquimistas

 

“O que sobrou de nós? Metade não quer nem saber, o que sobrou de nós? Um terço não quer nem ouvir, O que sobrou de nós? A maioria não sabe dos fatos, O que sobrou de nós? Ficou disperso e se perdeu no compasso.”

A história e a qualidade diversa do rap nacional é muito maior do que se percebe, seja hoje ou ontem. O que se fixou como “os grandes grupos” – não sem razão – ainda não são suficientes para a constituição de uma tradição à altura do que temos. Uma tradição negra que atravessa todo o país com produções muito importantes e que segue desconhecida da maioria. Não é assim que se constrói a força de uma cultura. 

Assim, hoje vemos a indústria cultural abraçar o rap, tornando-o cada vez mais inofensivo, cada vez mais um mero espetáculo como outros quaisquer. Pesquisando somos sempre surpreendidos por discos – falo aqui especificamente de registros fonográficos – EP’s, mixtapes fundamentais e que seguem fora do cânone reconhecido. Ora, se nem os coroas conhecem, acompanham e divulgam as pérolas desconhecidas do rap nacional, como podemos cobrar da molecada.  

A ignorância tem sido a grande mediadora entre as gerações no rap de nosso país, com raríssimas exceções. Dentro de um sistema de mídia que opta pela mera divulgação e na ausência de pesquisa séria, veremos cada vez mais declarações infelizes como a do Klyn (Damassaclan) sobre a morte dos BBoys e Grafiteiros. Estamos diante de um problema temporal e de conjuntura onde é necessário cada vez mais espaços de reflexão sobre a cultura hip-hop. 

Foi através de uma postagem do Bocada Forte que tomei contato com os Alquimistas, grupo lendário do ABC paulista. E foi graças ao meu mano Dr. Drumah, que consegui o contato do generoso mestre Blackalquimista e após alguns minutos de conversa recebi um bloco bruto de memórias, feitos, caminhada que remontam ao final dos anos 80. Uma figura que produziu e produz há 33 anos dentro da cultura, vou precisar de mais tempo para conseguir digerir tudo. 

O fato que nos traz aqui é o disco Prata (2022), o ponto que me faz hoje escrever, depois de dias no repeat, com o seu elixir revigorante capaz de nos mostrar que o hip-hop segue apesar de tudo, e que o rap pode ser sempre mais. Composto por 12 faixas, o disco traz muitas participações de DJ’s icônicos de nossa cultura, o que produz uma sonoridade aliada ao conceito de uma trilogia que encontra aqui o seu segundo capítulo. 

A volta dos que não foram: “O Boombap underground como espaço de educação e pensamento”

Longe de mim posar de tiozinho xiita, que xinga os “trappers” e renega o drill e o grime como expressões de uma moda que não representa o “verdadeiro rap”. Guardinhas de modo geral só conseguem reproduzir sua ignorância musical e cultural através de uma moralidade frágil que é a expressão de um conservadorismo frustrado. Eles mesmos – tiozões e guardinhas – não ouvem e não divulgam aquilo que supostamente gostam e consideram verdadeiro. 

Em um local onde se conhece a cultura de que se faz parte, um grupo pioneiro como Alquimistas seria algo amplamente divulgado por mídia e público. O lançamento de um novo disco seria comemorado e ouvido com atenção, pois são griots de nossa cultura hip-hop, não são artistas duros e que repetem o mesmo discurso há décadas. Eles guardam a tradição, são a tradição e a elevam a cada trabalho. 

Fundado em 98, e com um EP (demo) lançado em 1999, que naquele momento rompia com a “lírica sangrenta” mais comum nos grupos de rap da época, os caras já vinham de muitos anos de caminhada na cultura. Alquimistas possui membros fundadores da importante Posse Haussa, uma parte deles segue até hoje produzindo e atuantes. O grupo que inicialmente foi formado por Blackalquimista, Scan dLooP, Guriz Nyack, Nekaffi Edaz, Pqno Alquimista, e Big Filho, Simao Malungo, foi perdendo membros ao longo dos anos 2000 mas longe de perder a força. 

Atualmente formado por Blackalquimista, Scan dLoop, Nekaffi e Bruno Bap (o novinho do time), eles dão continuidade a ideia de que sua música pode transformar pensamentos brutos e comuns em jóias raras feitas de metais preciosos, assim como antes ocorreu com eles. Não se trata de superstição, mas do entendimento da potência da cultura hip-hop e da força da música rap. 

Após Chumbo (2014), primeiro disco da trilogia alquímica do grupo, Prata (2022) reflete um momento onde o fazer rap já é mais fácil, depois do aprendizado com as dificuldades e com os obstáculos expressos no disco inicial. Do Chumbo ao Ouro, a analogia com o procedimento da Alquimia é forte, por conta da capacidade do grupo em produzir música e poesia análoga aos minerais a que se refere. 

Quem for ouvir o disco Chumbo, terá uma experiência estética de um disco pesado, bruto, duro, didático na confecção, mas nem por isso mesmo importante e sobretudo impactante. São 14 faixas com quase 52 minutos de aulas, entre a técnica das participantes e o conhecimento transmutado em versos, com flows bem construídos, beats e riscos contagiantes. “Matéria Prima” é uma música que pode ser entregue a qualquer pessoa que queira saber o que é o rap e a cultura hip-hop. 

O disco tem faixas instrumentais, onde o beat corre sob os riscos do DJ, alguns interlúdios relatam as dificuldades técnicas, a falta de conhecimento e acesso para a produção de rap nos anos 80 e 90. A ausência de espaço para se apresentar, como relatado por Rappin Hood, são relatos que situam o chumbo carregado por esses Alquimistas e outros importantes nomes do rap nacional no país inteiro. É abordado também o tema da educação racial, hoje mais importante do que nunca, em tempos onde lacre virou militância e falar de racismo é mera moeda simbólica no game.

A importante “O Homem Que Queria Fazer Rap”, quinta faixa de “Chumbo”, nos serve para ver o quanto essa letra ainda hoje consegue expressar a realidade de diversos MC’s iniciantes. No entanto, pelo esvaziamento progressivo da cultura e por uma visão da arte que se entende como profissional, muitos hoje conseguem alcançar a fama, mas tornam ela um fim em si mesmo. 

Em tempos onde a internet chega cada vez a mais pessoas, as redes sociais viram espaços de “deseducação” por sua rapidez e vacuidade, substituindo um tempo onde as vivências na rua é que formavam homens pretos e mulheres da cultura hip hop e mais especificamente do rap. Lembro bem, quando o boombap passou a ser sinônimo de algo ultrapassado, e é curioso ver alguém perguntar a uma jovem MC como a nabru, como ela se coloca dentro da “volta do boombap”. 

Talvez, a rapidez com que as coisas hoje aparecem e somem, como as opiniões são rapidamente expressas e querem ter valor de verdade, nos faça perceber a imensa importância do boombap. Um gênero rítmico do rap mais amplo, mais aberto, menos frenético e capaz de ser o contraponto de uma velocidade vazia e de um frenesi redundante. Constituído de samples que são parte fundamental da educação musical na cultura hip-hop, assim como técnica revolucionária de produção!

Rimas, beats, riscos e samples: Prata (2022) educa

Já na primeira faixa do novo disco do Alquimistas temos a continuidade do disco anterior, “Outro” faixa que encerra Chumbo se cola com “Evolução das máquinas”. Os caras se utilizaram de uma vinheta clássica do Rodrigo Ogi para ilustrar o quanto continuam firmes desde os tempos dos radinhos de pilha. O DJ Bruno Bap risca nervoso colando samples que ajudam a compor o discurso com recortes do Racionais MC’s, do Kamau entre outros. 

Os caras convidaram um bonde de grandes DJ’s, composto por nomes como do grande DJ Nato_PK, DJ Dandan, DJ Simão Malungo, DJ Novset, DJ Jamal, DJ Batata Killa, DJ Nyack, DJ Lord, DJ RM Brasil. Esses mestres são os responsáveis por uma pegada que há muito eu não ouvia, e que não é um mero exercício nostálgico, antes o mostrar o quanto o trabalho dos DJ’s não é meramente virar produtores e ou colocar a música para rolar nos shows. 

Ao trabalho dos DJ’s aqui se junta os MC’s, os Beats com uma mistura explosiva de ritmo e poesia capaz de fazer com que quem ouça consiga separar o que é joio e o que é trigo. É nada menos do que um trabalho de depuração musical e poética, sem cargas meramente morais e ou orelhadas conservadoras. O boombap dos caras não deixa “vão” de espaços para bobagens e perda de tempo com infantilidades que foram vendidas e compradas no mercado musical como signo para ser descolado. 

Alquimistas que são, entendem que pretos portadores de condições de produção e armados de conhecimento histórico são capazes de fazer o sistema tremer. A começar por um exercício próprio a si mesmo, por um autoconhecimento como colado no pórtico do Óraculo de Delfos: Conhece-te a Ti Mesmo. Como disco conceitual, que embala cadenciando as ideias, Prata é um disco para ouvidos atentos, para quem quer pensar sobre os meios e fins de sua própria vida. Para quem reflete sobre quais os valores que devem lhe guiar. 

A apresentação de um Ethos que nos encaminha na direção de compreender o jogo sujo do mercado, de lutar pela autoralidade daquilo que fazemos, enfim, de vencer a morte através da arte. Afinal, pelo próprio exemplo expresso pelos caras, não é a mera qualidade que fará artistas viverem de música, os Alquimistas nos ensinam a viver com arte, e dessa forma fortalecemos a cultura que amamos. 

Na faixa “O Sobrou de Noiz” da qual retiramos a citação que abre esse trecho, os cantores P Ramos e Monny Soul, em uma faixa emblemática que diagnostica todos os problemas que tentamos ilustrar. Utilizando-se da expertise angariada por tantos anos de caminhada os caras produziram um satélite musical e poético, como a Lua orbitando próxima ao planeta Terra. É assim que a ideia da capa do trabalho nos mostra a segunda parte da trilogia que já começou a ser pré produzida. 

Em Prata, os Alquimistas nos ofertam uma cura a infantilidade de pessoas que ouvem rap e não sabem o que é a cultura hip-hop, aos adolescentes de 30 anos do rap que fazem de ideias furadas sua música. Um dos grandes discos do ano, uma descoberta que precisará de mais alguns capítulos para que eu consiga digerir minimamente, mestres griots dos quais nunca mais me descolarei. Alquimistas é um dos grandes grupos da história do rap nacional, conheça!  

-Alquimistas lançam a cura para a atual infantilidade no Rap Nacional – Prata (2022)

Por Danilo Cruz 

 

 

 

Articles You Might Like

Share This Article