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Alma de Cowboy (2021) História Negra no oeste americano

Alma de Cowboy (2021), filme que chega ao Brasil pela Netflix é um importante ponto de partida para um resgate necessário

O recém lançado Concrete Cowboy (2021), filme estrelado por Idris Elba, Lourraine Toussaint, Cliff “Method Man” Smith (Wu Tang Clan) e pelo jovem Caleb McLaughlin, retrata um contexto real e espantoso do movimento dos cowboys negros contemporâneos. Com a direção de Ricky Staub o filme é um drama abordando a formação de um jovem americano violento que é levado pela mãe para viver com o pai. A reação que nos toma é a de espanto diante de um contexto extremamente fora do nosso círculo de percepção quando se trata da vida dos negros nos EUA nas cidades grandes.

Com o título nacional Alma de Cowboy, o filme nos apresenta um duplo movimento que pode parecer irreal, mas que nos ajuda a repensar a história americana. Sempre que somos apresentados à história do oeste americano (pelo cinema) e mesmo quando ouvimos música country americana, a imagem de homens e mulheres brancos e sua cultura é o que nos vêm à mente. Porém, será que é isso mesmo? Seria a história dos Cowboys do “velho oeste” e a música country frutos apenas da cultura branca colonizadora de índios que ali habitavam? Será que a música country não possui nenhuma influência dos negros americanos? É nesse sentido que preparamos dois artigos sobre esse universo pouco explorado e pouco conhecido no Brasil.    

A história do negro nos Estados Unidos é cheia de nuances pouco conhecidas e sobretudo de apagamentos e  apropriações, frutos do racismo naquele país. O cinema hollywoodiano durante quase um século – apesar de sempre ter havido cinema negro desde o grande Oscar Micheaux nos anos 20 – é um dos responsáveis por formar na cabeça da sociedade americana uma imagem idealizada do homem branco na história da nação. Principalmente em se tratando do gênero “Western” (no Brasil, faroeste), figuras como Gary Cooper e John Wayne encarnaram os “cowboys” representantes da virtude e da bravura do branco no Oeste Americano.

Vaqueiros negros no Texas nos anos 20 do século XX

Desde o momento em que Cabeza de Vaca naufragou na costa onde hoje é o Texas no século XVI, a história da colonização do Oeste é uma longa e cruel escalada de subjugação e extermínio de povos, além de falsificação histórica e colonização mental. É sabido que todo o processo de “conquista do oeste” se deu em cima da dizimação de tribos inteiras dos povos nativos, de tradições milenares e de rico desenvolvimento cultural.

Em um imenso território que comportava diversas tribos, línguas e culturas distintas dos povos nativos com milhões de pessoas, o processo se operou através de miscigenação, apagamento da riqueza e da contribuição desses povos, em nome da formação da ideia do branco portador de um destino manifesto , levando o esclarecimento e o desenvolvimento a este local. Este movimento é amplamente reconhecido como o processo histórico formador do “espírito americano” por excelência!

Ao longo deste processo lento e gradual de colonização, o que percebemos é uma série de tentativas de colonizadores e exploradores provenientes de países distintos como Espanha, França, Inglaterra a até da Rússia desembarcarem no oeste. No entanto, o fato é que foi através do genocídio como política institucional do governo dos EUA quem de fato “conquistou o oeste”. A isso uniu-se o processo de escravidão de homens e mulheres negros, acrescido da exploração cruel de asiáticos – sobretudo chineses – atraídos pelas oportunidades neste novo território (a corrida do ouro) e de mexicanos no pós-guerra. O forte fluxo de migração negra para o Oeste se deu após o fim da Guerra Civil americana, tendo os negros constituído em torno de 25% da população daquela região. 

NAT LOVE cowboy que viveu de !854 à 1921

Ora, esse processo brutal de crimes sucessivos e o forte protagonismo negro na região foi amplamente apagado no cinema, através da construção da imagem dos índios cruéis e selvagens, dos negros amigos e subservientes aos brancos pelas oportunidades e pelos mexicanos bêbados, preguiçosos e devassos. Assim, de modo geral, os grandes heróis do faroeste foram retratados como virtuosos civilizadores. E apesar de termos atores e algum protagonismo negro no cinema desde os seus começos naquele país, a concorrência é desleal. 

Em 1993, um filme pouco comentado e talvez pouco visto chamou atenção por desvelar um contexto apagado desde o começo do cinema: “Posse”, estrelado e dirigido por Mario Van Peebles. O filme que conta com um elenco estelar do cinema negro americano, com nomes que vão de Pam Grier à Isaac Hayes, passando pelos mestres Woody Strode e o “father Melvin Van Peebles”. Contando ainda com outros excelentes nomes do cinema negro dos anos 90, e o rapper Big Daddy Kane. 

O filme, bem ao estilo do diretor, mescla história social e racial do negro na América e ficção, retratando uma questão importante que é a presença dos negros e seu protagonismo nesse movimento. O filme de Mario Van Peebles é uma chave fundamental para compreendermos e nos impulsionar na direção de entendermos melhor a riqueza de homens e mulheres negras na história estadunidense, que tiveram todas as oportunidades de se expandirem tolhidas ao longo da formação daquele país. O título do filme já nos entrega isso, a posse de terras no oeste, o livre desenvolvimento poderia ter sido uma chave para a diminuição do racismo estrutural e para o desenvolvimento econômico de negros e negras nos EUA.      

Tocante e crítico é ver um filme de 1993, década de crescimento exponencial do cinema negro americano que vinha desde os anos 70 com a blaxploitation buscando maior espaço comercial, conseguir conjugar entretenimento e história tão bem. Woody Strode é o personagem que dá início ao filme contando a história do protagonismo negro no oeste, de como grandes cowboys negros existiram, mas nos alertando para o apagamento total sofrido por essa herança histórica. 

Aqui cabe-nos aprofundar um pouco, os negros americanos não tiveram apenas suas histórias apagadas no cinema como houveram casos de apropriação. A história do negro Brit Johnson serviu “parcialmente de inspiração para o filme Rastros de Ódio (1956) do John Ford. Além do que, acredita-se que o personagem clássico do Cavaleiro Solitário foi “inspirado” em um oficial negro da lei que tinha um indío como companheiro, utilizava-se de disfarces e nunca levou um tiro em sua carreira: Bass Reeves.

Poster do filme Posse (1993) dir. Mario Van Peebles

Segue-se a sequência do arco ficcional que culmina com o desfecho do filme e com mais informações históricas sobre o papel do negro na colonização do oeste, com cidades negras sendo fundadas e com uma população negra de cowboys que girou em torno de 5.000 à 8.000 negros e negras. Ex-escravos que migraram para o oeste e que assumiram parte importante desse movimento de “conquista”. E é exatamente esse momento histórico que o cinema americano apagou, que foi parte fundamental da história americana para além da escravidão e da luta pelos direitos civis. 

Mario Van Peebles, cria um antecedente histórico fundamental para se começar a entender o movimento histórico que é capaz de tirar de nossos olhos as areias jogadas no “tempo das diligências”. Pois é curioso que a própria história da palavra cowboy, hoje vista sem nenhum apelo racista, seja em sua criação um modo de se referir pejorativamente aos homens negros que trabalhavam com o gado – “o garoto das vacas”. Os homens brancos eram chamados de “cowhand” nesse momento, e o preconceito institucionalizado foi em certo momento apagado pela vida em comum e pelos salários que não encontraram maiores problemas nas trilhas de gado, porém ao chegar a alguma cidade ou na presença de outros brancos tudo voltava ao normal.   

Sobre meninos e cavalos 

Eles têm o pescoço peludo e uma cauda que quase se arrasta no chão, seus cascos são redondos. Esse animal pode lhe carregar em suas costas e lhe ajudar de muitas maneiras. Essas colinas que parecem uma visão triste e distante, levam vários dias para serem alcançadas. Mas com esses animais você chega lá bem depressa, então não os tema, lembre-se do que eu já disse.” Sweet Medicine

Aqui estamos diante de um ensinamento ancestral de um profeta do povo Cheyenne que vislumbrou a vinda de homens brancos para infligir sofrimentos ao seu povo. Porém, junto a essa advertência um modo de ser junto aos cavalos, então desconhecidos dos povos indígenas do oeste foi passado. Com os territórios de parte do sul e do oeste ainda dominados pelos espanhóis, os povos indígenas conseguiram expulsá-los por um breve período e nas imensas pradarias, os cavalos deixados pelos espanhóis proliferaram. Tendo em seguida se integrado muito bem ao modo de vida de diversas tribos e os ajudado no seu desenvolvimento. 

Toda essa história deságua no filme Alma de Cowboy e sobretudo vai além, por apresentar um contexto que cresce em todo os EUA, em cidades como Nova Iorque, Filadélfia e Califórnia, por exemplo. O cotidiano contemporâneo de jovens negros é retratado com fidelidade no filme, uma sociabilidade nova em uma comunidade negra, seus problemas em relação a uma sociedade racista e os reflexos disso em homens e mulheres negras é um grande atrativo. Porém, o que nos chama a atenção é a saída abordada pelo filme, um resgate muito importante de jovens vitimados pela violência racista que encontram na equitação uma linha de fuga a todo esse processo.

Baseado no livro Ghetto Cowboy do Greg Neri (sem tradução no Brasil), o filme nos mostra como o contato com os cavalos leva o personagem do Caleb, o jovem Cole, a encontrar um eixo capaz de se autodeterminar. Nesse sentido, o filme tenta duplicar na ficção as experiências que são retratadas pelos participantes do projeto Fletcher Street Riders: Jamis Prattis (Paris), Ivannah Mercedes (Esha), Albert C. Lynch Jr. (Al) e Michael Upshur (Miz), que são também atores no filme. As implicações são escuras, uma comunidade negra que reconquista suas raízes na tradição daquele país, um movimento de reavivar a importância dos cowboys negros, mas também um outro aspecto interessante. 

Há em tudo isso uma renovação etológica, o jovem Cole passa a adquirir costumes voltados ao trabalho, ao respeito pelos mais velhos, a uma superação de problemas com o seu pai e progressivamente a um entendimento sobre o contexto em que vive e os perigos que um jovem negro enfrenta numa sociedade racista. A etologia é uma área do conhecimento que na biologia se dedica a estudar o comportamento social e individual dos animais em seu habitat, porém na antropologia é parte do estudo sobre o comportamento humano como fatos sociais. É possível ver este filme como um caso de um movimento mais amplo, como o agenciamento entre homem e cavalo, no caso aqui não mais como uma máquina de guerra ou como um instrumento para o trabalho, mas como um devir. 

A relação entre homem e animal no filme, isso fica evidente, é como preveniu o “Sweet Medicine” aos Cheyennes, uma relação de enfrentamento ao homem branco, em seus estereótipos racistas atribuídos aos negros. É também, a possibilidade de fuga da guerra às drogas através do resgate de sua própria história e de um contato íntimo e de uma auto reflexão sobre si mesmo. Tudo isso também ancorado na história dos cowboys negros do “velho oeste” pois era atribuição deles treinar cavalos “selvagens”, pratica que não pode ser feita através da violência mas de uma aproximação carinhosa.   

Também podemos ver nesse movimento atual uma forte demonstração de que homens e mulheres negras podem e têm sempre a possibilidade de expressar outros modos de ser, mesmo na cidade grande e dentro do processo de massificação do humano pela técnica. Não restam dúvidas de que esse processo também implica numa forma de enfrentamento ao capitalismo e o modo como este age sobre a comunidade negra, afinal possuir um cavalo e cuidar do mesmo com condições dignas não é barato. No filme, podemos perceber por parte dos personagens senão uma contestação dos modos de produção, a produção de fricções culturais que geram micro enfrentamentos.

Os processos de especulação imobiliária, gentrificação, questionamento às grandes marcas e porque não, a forma do homem se relacionar com a natureza estão presentes no filme, mas também em iniciativas como os Compton Cowboys. 

Em Alma de Cowboy temos um exemplo notável de filme que nos abre um horizonte, rumo ao passado e ao futuro, que não apenas nos mostra um drama sobre novas cores, como nos impulsiona a entender o que está sendo mostrado, E uma vez que sejamos tragados pelo espanto de ver homens e mulheres negras como cowboys no asfalto, rapidamente com poucas pesquisas no google veremos como tudo que aconteceu nos EUA possui contribuições valiosas da cultura negra local, seja na colonização do oeste, seja no desenvolvimento da música country que é o tema do nosso próximo artigo 

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-Alma de Cowboy (2021) História Negra no oeste americano

Por Danilo Cruz

Edição e consultoria: André Farias e Fábio Mandingo

 

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