Tá na pista ‘Liturgia Sambasoul’, novo álbum da Aláfia, uma ode à black music brasileira do anos 70.
Em sentido amplo, liturgia designa o conjunto de práticas ritualísticas relativo à igreja católica. Tratando-se da Aláfia sabemos que as divindades estão mais próximas ao terreiro que da cruz. Nessa perspectiva iremos nos deparar com rituais cheios de dança, swing e groove.
A banda paulistana Aláfia resinifica o termo liturgia, que passa a se referir às práticas relativas ao sambasoul. Esse gênero musical ganhou notoriedade no Brasil ao longo dos anos 70, promovendo transformações profundas na sonoridade do leque de estilos musicais que compõem a black music nacional naquela década.
Nesse sentido a sonoridade de Liturgia Sambasoul está muito mais próxima do samba de gafieira envenenada pelo funk e soul estadunidense da Black Rio, bem como do soul de Cassiano, Carlos Dafé e Tim Maia, que do samba rock, seu predecessor mais famoso.
Lembremos, Aláfia é uma palavra iorubá, significa “caminhos abertos”. Sendo assim, o álbum inicia os trabalhos com a faixa Abre Caminho, mostrando a ritualística presente no disco, tornando claro o sentido do título. Atabaques anunciam o começo, abrindo os caminhos para o ritual sambasoul que se inicia.
A letra dessa música apresenta uma percepção holística acerca da nossa caminhada existencial. A vida segue seu fluxo a partir de pontos diversos, estabelecendo links constantemente, sem partir da raiz, mas do rizoma, ou seja, não há centralização da energia emanada, esta se apresenta em diversos pontos da existência, são focos diversos. O modo como os versos são construídos quebram a visão unilateral que temos da realidade, onde o caminho e o caminhante são distintos, em que a ponte é a coisa usada para atravessar o rio, e este o obstáculo a ser superado. Não apenas abrimos o caminho, mas este abre a gente, isso porque segundo a visão exposta na letra, essa relação é uma via de mão dupla, em que cada instância exerce influência sobre a outra.
Abertos os caminhos, saltemos até a faixa Oberdan. Nela juntam-se Black Rio (na sua sonoridade evocada pelo nome de um dos seus membros originais) e Carlos Dafé. Homenagem forte à figura do membro original da Black Rio, que foi determinante para definir a sonoridade desta banda. Carlos Dafé participa emprestando sua voz cheia de malícia a essa música fortemente temperada pelo swing que faz o corpo se agitar.
Contudo o álbum Liturgia Sambasoul é muito mais que simples homenagem a um gênero musical ou panfleto de divulgação do mesmo para aqueles ainda ignorantes acerca de sua existência e importância. Temos aqui obra inspirada por este segmento musical, usado como elemento principal na composição de músicas atentas às questões de seu próprio tempo.
Vamos começar falando do primor que é a sonoridade desse álbum!! Diferente dos últimos trabalhos da banda cuja pegada era mais forte, imprimindo densidade através do uso de elementos de estilos musicais contemporâneos, como o hip-hop, o funk brasileiro e o eletrônico, Liturgia Sambasoul busca inspiração nas bandas de gafieira dos anos setenta, nas fusões do samba com outros gêneros, resultando em músicas de swing fluido e momentos de tensão mais tênues, sedutores, envolventes e que fazem o corpo swingar.
O foco temático permanece. Letras carregadas de empoderamento e críticas político-sociais cantadas ao swing e ao groove característico do DNA da banda conscientizam, celebrando a pujança da cultura negra em seus mais diversos seguimentos. Não podemos nos furtar do destaque da música Facada Fake, isso porque aborda o contexto eleitoral de 2018, cujo evento principal, a tal facada recebida por Jair Bolsonaro, mudou os rumos daquela eleição.
O levantamento dessa questão acerca da facada já havia sido feito pelo documentário A Facada no Mito, que acabou ficando mais conhecido pela alcunha de Fakeada no Mito. Na verdade a letra trata de todo contexto e eventos que levaram à eleição de Jair Bolsonaro. A influência das redes sociais, principalmente do whatsapp, é abordada. Tem-se ainda a imagem da facada que alveja em cheio a classe trabalhadora brasileira. O poeta Sérgio Vaz declama versos durante a música aumentando seu teor simbólico.
A ousadia própria da Aláfia de se posicionar não esquivando da responsabilidade de fazer as críticas necessárias, mantendo a combatividade e a resistência, garantem à banda uma força simbólica de grandes proporções. Sempre esteve presente no trabalho da banda, quem ouviu os álbuns anteriores percebe essa característica.
Aláfia são muitos membros, são muitos sons, são muitos grooves, diversos sentidos, embalados por rituais agregadores, fortalecedores da posição da cultura afro brasileira conquista através de muita luta. Estamos em novembro, mês voltado à reflexão acerca da luta da população afro de nosso país, momento de fortalecimento para lutar ao longo dos próximos meses do ano. Liturgia Sambasoul ritualiza esse momento servindo a dois propósitos: confraternizar entre irmãos e estimular o espírito para a luta ainda longe de ter um fim.