Tema importante para nossa sociedade, dois MC’s lançam singles que anunciam próximos trabalhos e refletem sobre Paternidade no Rap.
“A primeira coisa que nós fizemos nessa primeira fase do Hip-Hop foi matar o pai e sempre colocar a mãe como o elo mais importante nosso. Então a partir desse momento você vê qual o desafio que nós temos, porque a partir daí já começa a denúncia de mostrar que o Hip-Hop chegou para apontar e colocar o dedo na ferida mas apresentando uma solução.” GOG no programa Provocações
Enquanto uma forma de arte, o Rap também é uma forma de pensamento, e recentemente dois lançamentos que anunciam discos tratam do tema da paternidade, através de suas rimas, batidas e de audiovisuais. O MC e produtor baiano Aganju Uh Anti Influencer lançou o primeiro single do seu EP “Crônicas Afrofuturistas de um Ciborgue Preto”, com o vídeo-documentário “Mochileiro da Galáxia Perdida”. Já o paulista Rashid, soltou o single e posteriormente o videoclipe da música “Cairo”, que abre os trabalhos para o seu próximo disco, cujo título ainda não foi anunciado.
Estar atento à cultura Hip-Hop e as suas produções no Rap enquanto um dos seus elementos, para além do culto aos produtos culturais mercadológicos, implica necessariamente a percepção de formas de pensamento, a produção de afetos subversivos, estilos e pautas que muitas vezes são subterrâneas aos interesses da indústria cultural. Ao mesmo tempo, em que nos impulsiona a uma leitura crítica de conjuntura que nos faz perceber de que modo a arte e a cultura impulsionam o povo e através de quais métodos e ideologias, elas comunicam sobre problemas importantes para a nossa sociedade e nossa subjetividade.
-Leia o primeiro Relatório sobre Paternidades Negras no Brasil!
Os dois trabalhos aqui em questão, nos parecem muito salutares, obviamente por serem construídos com visões que fogem a estereótipos, abrindo-nos perspectivas hoje essenciais para se pensar masculinidades, paternidade e paternagem como modelos existentes dentro da cultura Hip-Hop. Se é sabido que existe um sério problema que atravessa a nossa sociedade com relação a paternidade, onde os números atuais mostram um aumento em 2023 de 5% de certidões de nascimento com pais ausentes, por outro lado, é preciso ter em mente que estamos diante de um tema complexo.
A normalidade racista que se expressa em nossa sociedade produzindo estereótipos sobre as masculinidades negras, desde o monstro potencialmente estuprador, chega também a imputar à existência de homens negros o maior reincidente em abando paterno. Só recentemente, em nosso país se produziu um relatório sobre Paternidades negras, que visa incluir no debate de gênero e classe, o aspecto fundamental da raça. Apontando ainda, para a deficiência em se tratando de pais PCD’s e LGBTQIA+, que não são auferidos nas pesquisas.
Se é verdade que o racismo se estrutura historicamente na sociedade brasileira, através de uma série de práticas, leis, signos, estética, ética e política e que o homem negro é desumanizado pelo homem branco, como seria possível pensar uma paternidade negra tomando como modelo a pretensa universalidade racista da branquitude. Sem levar em consideração, os instrumentos de desumanização, subalternização, marginalização, encarceramento, degradação psicológica e extermínio físico como tecnologias políticas de destruição da possibilidade de famílias negras.
Diante de um problema tão gigantesco, o Rap nacional e a cultura Hip-Hop historicamente se posicionaram como uma frente de combate a esse estado de coisas, e vem construindo crítica e alternativamente outros discursos e práticas. Em práticas de denúncia de violências contra as mulheres, da busca de valorização das mesmas dentro da sociedade, da cultura e da arte, assim como dos abandonos paternos. Nos parece, que é neste sentido que a fala de GOG, citada no início deste texto e retirada de uma entrevista ao Antônio Abujamra no programa Provocações, vai.
“Eu me desenvolvo e evoluo com meu filho, eu me desenvolvo e evoluo com meu pai”
As denúncias dentro da cultura Hip-Hop antecedem as construções políticas e sociais e mesmo as formações geracionais que darão vida às demandas trazidas. A fala do brasiliense GOG sobre a primeira geração do Hip-Hop ter matado o Pai, hoje encontra um cenário onde alguns MC’s da geração dos anos 90 viram seus filhos seguirem os seus passos. O caso mais famoso é certamente do Marcelo D2 e do seu filho Sain, atualmente um MC já há muito consolidado no Rap nacional. No entanto, exemplos não faltam, KL Jay passou o seu ofício aos filhos – no plural – DJ Will, DJ Kalfani e a cantora de R&B Hanifah.
A observação atenta dos caminhos e manifestações do rap e da cultura Hip-Hop verá uma crescente valorização da paternidade como fortalecedor e um direito dos homens pretos. Em um estado que historicamente busca negar a paternagem a homens pretos, os exemplos acima mencionados possuem um impacto simbólico positivo no público. Por mais que ainda e sempre existam no cenário denúncias de pais abusadores, pais ausentes, do não pagamento de pensão alimentícia. Em um sentido primário, a história é feita desse processo dialético de mudanças e permanências, e dentro desse processo é papel da cultura hip-hop o tensionamento óbvio pela mudança.
Estamos vivendo atualmente uma mudança geracional no rap nacional e na cultura hip-hop, acompanhando o envelhecimento de atores e atrizes que formaram toda uma geração, Racionais MC’s, Rúbia RPW, MV Bill e Kmila CDD, Stefanie, Rodrigo Ogi, Matéria Prima, De Leve, são alguns exemplos de artistas pais e mães de filhos e que permanecem atuantes dentro do Rap e da Cultura. Neste sentido, Aganju e Rashid trazem, digamos assim, novas perspectivas em seus lançamentos, que reforçam e expandem nossa forma de ver e pensar a paternidade na cultura Hip-Hop.
As produções são nesse sentido complementares pois abordam através de líricas, batidas, de escolhas estéticas diversas para a construção musical e dos audiovisuais, perspectivas de tempos, lugares e visões diante da paternidade no rap. O vídeo-documentário que apresenta a faixa Mochileiro da Galáxia Perdida de Aganju é um peça audiovisual tocante e combativa. Que se apresenta com todo o background panafricanista assumido e criado pelo MC e produtor enquanto ativista comunitário e peça fundamental da cultura hip-hop no Recôncavo baiano.
-Leia mais sobre Aganju e o Universo 75 aqui no site!
O audiovisual registra através de arquivos de vídeo feitos com celular o “dia-a-dia” dele com a belíssima e fofa Imani, regar a horta, alimentar as galinhas, andar de mãos dadas enquanto o corre não para e fazer arte. Se todo filho é uma promessa de futuro, Aganju está preparando uma mulher para fortalecer as fileiras da nossa luta permanente, e da qual ele próprio é figura essencial, com sua arte e suas ações culturais comunitárias e políticas. O que é reforçado pela letra que nos remete para a luta em sentido amplo, que todo homem preto precisa enfrentar para simplesmente ter o direito de ser.
O single que precede o lançamento do EP “Crônicas Afrofuturistas de um Ciborgue Preto” praticamente todo construído por Aganju que rima, fez o beat, criou o roteiro, e que tem finalização de Val Maloca e do Maloca Rec., já nos remete a caráter multifacetado de mais um de seus “personagens”, que compõem o projeto Universo 75. Testemunhado aqui pelas ações vivas presentes na tela.
Já em “Cairo”, primeiro single do próximo disco do Rashid e nome do filho do MC, a direção de Philippe Noguchi trabalha fora do registro documental acima mencionado e apostado na representação, através de personagens. A presença do MC neste cenário funcionando como um discurso indireto em relação ao representado, tem no “personagem” Cairo o leitmotiv da música e da representação através dos atores Elton Sacramento o pai bailarino e o Elton Sacramento Miranda, o filho que observa e é conduzido pela figura paterna.
-Leia sobre Rashid aqui no nosso site!
Prenhe de simbologias e semióticas que remetem a recente descoberta de Rashid da paternidade, as emoções descritas na letra, as promessas, estão representados nos planos abertos com o campo – da vida – amplo em segundo plano, assim como a bicicleta pilotada pelo jovem Elton e o trem onde o MC é capturado, assim como pai e filho. Por outro lado, o ritmo lentamente cadenciado do beat, uma produção de Bernardo Massot nos remete exatamente ao ninar, aqui como metáfora a paternagem da lírica.
Para finalizar, gostaria de registrar aqui que como parte da cultura Hip-Hop, o Rap foi e segue sendo um espelho de onde retiro ideias, afetos e percepções críticas da realidade. Tendo tido contato com a cultura ainda no meio da minha adolescência, certamente discos e audiovisuais, MC’s, homens e mulheres, e hoje LGBTQIA+ me ajudaram a me tornar o pai – cheio de defeitos – porém esforçado que fui e sou, de um jovem homem que amanhã completa 19 anos. Te amo Aquiles, o meu Ogan predileto, para sempre!
-Aganju Uh Anti Influencer & Rashid lançam singles para pensarmos a Paternidade no Rap!
Por Danilo Cruz