Guilherme Espir conversou com Black Alien sobre “Abaixo de Zero: Hello Hell”, novo trabalho que coroa a conturbada e brilhante trajetória do rapper carioca
Ele tem nome. Na verdade carrega diversas alcunhas. Uma galera o conhece como Mister Niterói. Tem uma parcela da população underground (carioca) que já manjava o cara desde a época do flow do Speedfreaks, lá atrás, em 1992.
Gustavo de Almeida Ribeiro, um dos discípulos de Jah que tentaram deixar a Babilônia de ônibus, “by bus”, como diria Black Alien – em clara referência ao disco ao vivo do Bob Marley, de mesmo nome, lançado em 1978 – conseguiu navegar sob o asfalto e o cimento, tal qual um verdadeiro timoneiro.
Alienígena negro. Esse é o nome artístico de Gustavo Black, em sua tradução literal. Outros ouvidos, no entanto, conhecem seu verso pioneiro como Gus, este apenas para os íntimos. Um dos primeiros Rappers cariocas, Gustavo foi muito mais do que um reserva de luxo quando o Bnegão saiu do Planet Hemp – em 1996 – para se dedicar ao seu novo projeto paralelo, o Funk Fuckers.
Desde então, o cidadão mostrou o valor de seu groove, sempre 100% calcado num extrapunk & extrafunk. Quando teve a oportunidade de sair em carreira solo, assinou com a Deck em 2004 e precisou de apenas 1 mês para gravar “Babylon By Gus – Vol. 1: O Ano do Macaco”, um dos maiores trabalhos da história do Rap nacional e a maior pedra no sapato de sua lírica bereta.
Seu primeiro registro solo criou um mito. É disco de cabeceira e obra obrigatória para todos que queiram entender um pouco mais sobre a arte dos beats e das rimas correndo no flow dos pulsos em riste. O problema é que entre seu lançamento e sua sequência, Gustavo de Nikiti demorou 11 anos para gravar e, como resultado, o “tal do volume 2” se transformou numa verdadeira lenda urbana.
Com o lançamento de “Babylon By Gus – Vol. 2: No Princípio Era o Verbo“, já em 2015, Black preencheu o vazio que deixou desde que sua obra prima viu o mundo. Após mais de uma década de excessos, o compositor não escondeu de ninguém que simplesmente não conseguiu dar sequência a uma gravação que muitas vezes pareceu maior do que o próprio artista.
Imerso em conhaque e linhas de pó de pirimpimpim, todo o caos que antes era retratado apenas em seus versos, virou sua rotina, e com isso, muitas fãs chegaram a perder a fé no retorno do Faraó de dreadlókis. Será que esse disco vai sair mesmo? Será que não vai virar o próximo “Na Face” – disco de Black & Speed que foi gravado em 2000 e que nunca foi lançado?
Mas o trampo saiu e não só cumpriu a difícil tarefa de suceder o ano do macaco, como também revitalizou sua carreira. Em nova fase, já sóbrio, saudável e com um CD que expulsava o saudosismo, o compositor pôde, enfim, abrir as portas para um futuro promissor que talvez nem ele acreditava que teria.
Depois de lançar um disco icônico, mas que em termos de tiragem foi um fracasso, Black sentiu um gosto diferente depois do “No Princípio Era o Verbo”. O carioca da gema, natural de São Gonçalo, sentiu o gosto da relevância e essa segunda chance trouxe seu repertório para uma nova geração de ouvintes que cresceram sob os encantos insulares do ano do macaco (2004).
Só que o momento histórico do Rap naquela época era muito diferente. Com 43 anos de idade, tinha quem pensasse que sua hora já tinha passado, mas depois do play ficou claro como os plano do compositor eram diferentes. Sua lírica estava longe de estar ultrapassada.
Ao lado do produtor Alexandre Basa, além de outros nomes de peso da cena, como Luis Melodia, Céu, Edi Rock e tantos outros, o poeta retornou com as métricas e saiu numa requisitada turnê pelo Brasil. Mas o tempo passou e conforme os anos viravam, o buchicho sobre mais um CD voltou.
E quando todos pensavam que o terceiro capítulo ia demorar 10 anos pra sair, bom, essa galera ficou de cara quando escutou “Abaixo de Zero: Hell0 Hell“. É lindo poder afirmar, sem sombra de dúvidas, que hoje, do alto de seus 46 verões, o reverendo das aliterações está em seu auge criativo.
Você pode até não gostar de Cone Crew Diretoria, mas é necessário ressaltar o trampo finíssimo do Papatinho. O produtor ficou responsável pelos beats que englobam o conteúdo das estrofes, e sua versatilidade é digna de nota. Os timbres vão do Boom Bap ao Jazz, sempre com Groove, emanando muita classe. Lançado no dia 12 de abril de 2019 – via Extrapunk Extrafunk records – o terceiro disco do Black Alien ocupa um lugar único em sua discografia.
Depois do retorno do filho pródigo em 2015, ele finalmente conseguiu fazer um disco sem pressão. O resultado? Um trabalho objetivo e que, apesar de curto – cerca de 26 minutos – entrega 9 faixas que cumprem a difícil tarefa de condensar seu riquíssimo repertório e abordagem. É rapaziada, já estamos em 2019 e o Black Alien ainda tem um speedflow único.
Poucos artistas são capazes de colocar o Dave Brubeck e o Black Flag sob o mesmo teto. Gustavo e suas referências com um quê de Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga, desafiam não só o som, mas também a Língua portuguesa. Tecla SAP é pouco. Não é só o idioma, mas sim a fonética, a linguística, gramática e o professor Pasquale que estão envolvidos para criar essa levada inconfundível.
Quem já pegou uma caneta valoriza essa poesia. Dá valor para toda essa riqueza e percebe – ainda sobre a questão de estrutura das linhas – como Gustavo chega a brincar com a mescla de idiomas para deixar sua bereta ainda mais melódica.
Quase 4 anos depois, o flow surge ininterrupto e com eloquência ímpar, muito além do Hell de Janeiro e os drinks da “Área 51”. O sentimento de quem escreve sabendo que pode ser “a frase que muda a escolha de alguém no parapeito”. Essa perspectiva traduz as translúcidas visões da chapação, mas mostra a leveza do equilíbrio, tudo enquanto seus ouvidos cultuam a Nina Simone em “Cartas de Amy” (e seu inebriante beat).
É um disco que faz o ouvinte pensar. Questiona os excessos e mostra que nem mesmo o Usain Bolt pode correr de si mesmo. Tem hit ao som de “Vai Baby”, resquícios autobiográficos em “Que Nem o Meu Cachorro” e uma atualização de referências jazzísticas com “Take Ten”. Um trocadilho com a clássica “Take Five” do pianista Dave Brubeck”, Gustavo troca discos e cita Coltrane, enquanto celebra sua caminhada e relembra os tempos de galã com os sintetizadores de “Au Revoir”.
Vai de uma pedra pra uma pluma num estalar de dedos. A sensibilidade é notória e apesar das temáticas que exorcizam seus demônios, o criador disso tudo demonstra um controle que chega a iluminar o ouvinte. “Aniversário de Sobriedade” talvez seja a faixa mais emblemática desse disco. A letra chega metralhando a lírica desde o Nietzsche até a Rua Augusta, mas quando o saxofone entra, parece uma espécie de redenção.
Não é balela, mas alguns compositores simplesmente “Jamais Serão”. E a prova disso é que vai ter muita gente cantando que o “Black é a nossa escola” quando esse show sair em turnê. Vai muito além do saudosismo, de um mito, um hype ou do próprio Rap. É sobre a vida, bons grooves, autocrítica e paz de espírito.
Ao fim das centenas de viagens que fiz até o momento, confesso que ainda não consegui identificar se saímos do inferno, desse hell, nuestra Babylon, Beleléu do céu. Independente do plano terreno, o mais importante é perceber que temos Black Alien, no auge, ligadíssimo pra musicar novos rumos nessa Babilônia.
Guilherme Espir: De que modo esse disco se relaciona com o antecessor? Pois apesar de ser um Babylon Bye Bye, ele retoma aspectos de sua lírica mais bereta, ainda mais ácida e auto crítica que o anterior.
Por Guilherme Espir (Macrocefalia Musical)