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Discos, Resenha

A Mulher do Fim do Mundo (2015) – Elza Soares

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Elza Soares é dona de uma biografia única, digna de roteiros hollywoodianos. Filha de pais pobres (uma lavadeira e um musico), Elza viveu uma infância de carências na favela da Boa Moça no Rio de Janeiro onde, entre um afazer doméstico e outro, encontrava tempo para empinar pipa e sair no braço com os meninos da comunidade. Mostrando desde cedo a sua personalidade forte que seria um dos símbolos da cantora de voz rouca e sensualidade marcante.

Por imposição do pai foi obrigada a casar aos doze anos, tornando-se mãe pouco tempo depois. Motivada a conseguir dinheiro para comprar remédios para o filho doente, teve sua estreia no palco do programa de Ary Barroso na Radio Tupi, surpreendendo a todos com sua performance e conseguindo o dinheiro almejado. Os anos que se seguiram não seriam fáceis para Elza que aos vinte já era mãe de cinco filhos, tornando-se viúva aos vinte e um, tendo a duríssima missão de (sozinha) conseguir dar sustento à sua prole, obrigada a trabalhar alternadamente como encaixotadora e conferente numa fábrica de sabão.

Com pouco mais de trinta anos conhece o homem que mudaria de vez a sua vida: o camisa sete do Botafogo Mané Garrincha. O romance entre os dois se configurou como um dos maiores escândalos da época, já que o jogador era casado e largou a família para viver ao lado de Elza, que mais uma vez passou por momentos difíceis com o julgamento a as acusações da sociedade conservadora da época que lhe julgava e perseguia.

Elza permaneceu ao lado de Garrincha por dezesseis anos. Com ele teve apenas um filho homem, sonho do jogador que havia tido apenas filhas. Tendo que suportar o alcoolismo do companheiro (que arruinou a careira de um dos atletas mais talentosos de todos os tempos e foi responsável pela morte precoce do atacante da seleção), Elza se viu novamente no fundo do poço, mal podendo se recuperar das feridas deixadas pela perda do companheiro. Mas eis que o destino lhe prega outra peça. Seu único filho com Mané Garrincha morre em um acidente automobilístico com apenas nove anos. Esse fato serviu mais uma vez para provar a força da mulher por trás de uma das vozes mais marcantes do Brasil, que apesar das adversidades da vida sempre se mostrou uma artista nata, à frente do seu tempo e com uma capacidade ímpar de superar obstáculos.

Em 2000 foi eleita a cantora do milênio pela BBC de Londres. Seu último grande álbum Do Cóccix Até O Pescoço garantiu-lhe uma indicação ao Grammy, recebendo generosas críticas da imprensa pelo seu conteúdo ousado e contemporâneo. Os trabalhos seguintes seriam o morno Vivo Feliz de 2003 e o apenas simpático Beba-me de 2007.

Em 2015 Elza nos entrega um dos melhores discos do ano, levando para o estúdio uma deliciosa mistura de ritmos, crítica social e sensualidade, características muito presentes nos trabalhos da cantora. Em A Mulher do Fim do Mundo a cantora exala negritude pelos poros, servindo de plataforma para que Elza possa falar sobre morte, sexo, violência contra a mulher e outra infinidade de temas que precisam ser levantados nesse momento careta e reacionário que estamos vivendo. Acompanhada de músicos como Marcelo Cabral, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rubi, Guilherme Kastrup e da excelente Bixiga 70, Elza brilha como há muito tempo não se via.

O Disco

Em A Mulher do Fim do Mundo Elza Soares não entrega apenas o melhor disco brasileiro do ano, mas também o mais corajoso e ousado. Representando de forma visceral a voz do povo negro, mesclando ritmos de forma impecável e cercada de bons músicos, seu novo trabalho não é apenas uma obra de arte, mas representa de forma triunfal o grito daqueles que não tem voz, a quem a sociedade insiste em esconder dentro do espaço limitado de seus próprios preconceitos. 

O disco inicia com um poema de Oswald de AndradeCoração Do Mar. Cantado inicialmente à capela a canção vai crescendo com uma energia marcada pela negritude e pelos arranjos de corda de José Miguel Wisnik, já evidenciando uma característica que marcará todo disco: a emoção nua e crua. Cada verso cantado por Elza soa genuíno e honesto. Em um determinado momento da música somos levados a revisitar o passado numa viagem visceral a bordo de um navio negreiro. A força da voz de Elza faz tudo emergir maior e mais verdadeiro, sentenciando a relevância do disco em tempos de questionamentos sobre a dívida histórica que a sociedade tem com a população negra.

Já na música que dá título ao disco vemos o grito de resistência da mulher negra que apesar de ter sofrido inúmeras atribulações durante a vida se manteve resistente e não se rendeu, insistindo na busca pela felicidade e pelo direito de dar seguimento ao maior ofício que lhe foi conferido, o dom cantar. É de arrepiar ouvi-la praticamente implorar “me deixem cantar até o fim”!

O tema da violência contra a mulher aparece sem arrodeio em Maria da Vila Matilde. Com versos como “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, a música é um retrato poderoso da violência contra o mulher brasileira. Elza não tem o menor receio de abordar temas que tem gerado muita discussão atualmente e de se posicionar a respeito. Ainda repercute a reação preconceituosa, desinformada e reacionária de uma parte da população que acusou o ENEM desse ano de doutrinamento ideológico por discutir temas feministas. A sua interpretação empresta à canção um viés de malandragem mesclados a ritmos que vão do rock ao jazz, num duelo épico entre sua voz (poderosa, mas cansada) e um trombone.

Em Luz Vermelha a cantora presta homenagem a um clássico do cinema nacional: O Bandido Da Luz Vermelha de Rogério Sganzerla. Trazendo frases emblemáticas do filme de 1968 numa letra apocalíptica (“Quem tem cadarço não sobra/ Quem tem um pão pra comer/ Quem tem cadarço não sobra/ Meu amor”) a faixa se refere à angustia e à solidão das grandes metrópoles. Kiko Dinucci fica responsável pelas frenéticas guitarras que emolduram brilhantemente a canção, mostrando uma sociedade desesperançosa, falida e fadada ao fracasso. O clima rock’n roll acentua mais essa concepção. Não somos poupados e acabamos juntos num poço cheio de merda. Como diz um dos trechos da canção, “tudo é sujo e não há maquiagem que embeleze aquilo que já nasceu feio”.

A pra lá de sugestiva Pra Fuder é uma verdadeira ode ao sexo com versos beirando o explícito: “unhas cravadas induzem latejo / Roupas jogadas no chão / Pernas abertas te prendo num beijo”. Aqui Elza se mostra uma cantora ousada que nunca teve medo de se expor, exalando sensualidade e balanço com os quais poucas mocinhas conseguiriam competir. Acompanhada dos metais afiados do Bixiga 70 ela está em casa. Deita e rola literalmente. Arde em chamas e chega ao ápice do prazer repetindo exaustivamente o titulo da canção, ao som frenético dos tambores.

Outra canção que está em sintonia com as lutas atuais é Benedita. Tratando a transexualidade de forma honesta e sem deboche, a música mostra a difícil rotina das travestis no Brasil que precisam lidar com o preconceito, a violência e a truculência policial no seu dia a dia. A força da protagonista da canção se assemelha à de Elza Soares, se agarrando a um fio de possibilidade para manter-se em pé, utilizando as armas que tem para poder sobreviver nas ruas. “Guarda a navalha na boca e o cartucho na teta”. Juntando elementos do rock com o samba a canção serve como uma denúncia contra a transfobia e pelos direitos das minorias marginalizadas.

Em Firmeza? Elza bebe da fonte do novo. Ela que sempre foi um referencial para novos artistas, se deixa levar pela jovialidade dos arranjos da moçada paulista e pela informalidade de versos em forma de gíria de Rodrigo Campos, com quem divide a canção. Passeando pelos guetos e absorvendo os diálogos urbanos (“Beleza mano fica com Deus / Quando der a gente se tromba firmeza? / Pena que corre é mil grau”) temos o prazer de ouvir uma faceta mais moderna da cantora. Mesmo sendo mais descontraída que as demais canções, Firmeza? é um rap-gafieira que mostra a superficialidade das relações à qual o caos dos grandes centros condiciona a vida das pessoas.

No tango Dança, Elza está morta. Mas – como já era de se esperar – não está derrotada. Ela insiste em sambar! E como renasceu das cinzas várias vezes, se agarra até o ultimo vestígio de possibilidade para triunfar. “Mas se eu me levantar ninguém irá saber / E o que me fez morrer vai me fazer voltar”. Adepta das religiões de matriz africana, Elza se vê representada por Iansã e conserva viva em seu peito uma chama que nunca apaga, exalada pela entidade. Um sopro não é suficiente para apagar quem nasceu pra arder.

Na última faixa do disco (Comigo) a cantora revisita sua história, homenageia sua mãe fechando a obra de maneira emocionante: “Levo minha mãe comigo de um modo que não sei dizer / Levo minha mãe comigo, pois deu-me seu próprio ser”. A forma trágica como ela perdeu a mãe (vítima de um acidente de carro) certamente influenciou a interpretação de Elza que entrega uma performance vocal caprichada, buscando lá no fundo do peito a emoção precisa na entrega dos sentimentos.

O fator determinante para o sucesso de A Mulher do Fim do Mundo, não está na sua poderosa crítica social – uma vez que outros trabalhos tentaram navegar por essas águas e afundaram na sua própria concepção. Contudo, esse navio negreiro conduzido pela mais visceral cantora brasileira é uma obra emblemática de uma artista que não cansa de dar a volta por cima como ela própria diz: “Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida / Na avenida dura até o fim / Mulher do fim do mundo / Eu sou e vou até o fim cantar”.

Elza encontrou nos manos a medida correta de modelar seus maneirismos vocais. Até suas famosas “rasgadas” se mostram controladas e longe do trivial. Os temas urbanos abordados no disco ganham contornos atuais onde o encontro de gerações prova mais uma vez que para música não há limites, seja abordando a crise hídrica, a transexualidade ou a negritude. O importante é mandar seu recado com qualidade e astúcia. Firmeza mano?

Por Jarbas Santos

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Nota: 

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