A liberdade poética de Salomão Soares e Camille Bertault, uma bela apresentação do duo formado pelo pianista brasileiro e a cantora francesa
Imagine que você toca piano e é o escolhido para acompanhar uma vocalista completamente imprevisível. A dinâmica do show é em duo e você tem 2 sets pra condensar um repertório que vai de Hermeto Pascoal à Caymmi, sem fazer nenhum esforço.
O interessante no entanto é que não se trata de uma cantora brasileira. Camille Bertault é uma das cantoras mais interessantes de sua geração. Dona de um lirismo e de uma técnica absurda, a cantora francesa domina sua voz com grande habilidade enquanto vocaliza temas complexos – do nível de “Giant Steps” (Coltrane) – como se fosse a clássica “atire o pau no gato”.
Salomão Soares, por outro lado, é um dos grandes pianistas do Brasil. Representante da cena instrumental, o paraibano possui um repertório bastante interessante e que é utilizado sempre com grande astúcia. Como numa mescla de Jazz e referências nordestinas, sua abordagem mostra grande capacidade para promover relações musicais, enquanto apresenta grande domínio, principalmente em termos de técnica e sensibilidade.
Quem esteve presente no show da cantora no Jazz nos Fundos – no dia 07 de fevereiro de 2020 – entende do que estou falando. Num concorrido espetáculo, Salomão e Camille tocaram juntos novamente e mostraram uma afinidade que tem tudo pra virar disco no futuro.
Ao piano, coube ao maestro Salomão – como bem disse Camille – acompanhar os voos mais ousados da voz da cantora. Ambos estavam claramente concentrados. Como um midas que prevê a hora certa de transformar algo em ouro, seu piano de cauda foi bastante desafiado pelas imprevisíveis intervenções da cantora e foi justamente isso que deu a tônica da interação da dupla.
É importante salientar que Camille possui formação clássica. Estudou piano e voz, mas também é versada no Jazz. É nesse extremo que ela gosta de viver e mesclar toda essa bagagem de estudo com a música popular brasileira. Sei que parece muita informação, mas além de tudo ela utiliza a língua portuguesa como um recurso em seu trabalho.
É notável como a dialética do nosso complexo português virou mais um ativo em seu arsenal. Ela prova que é possível coexistir debaixo desse pouco ortodoxo guarda chuva e bastou Salomão sentar ao piano para que improvisações belíssimas surgissem.
Foram mais 90 minutos de som e entre temas autorais e versões, o público brasileiro pode conferir um show bastante orgânico. Com a participação luxuosa da cantora Vanessa Moreno – que protagonizou um duelo memorável com a francesa – a plateia teve contato com uma linha lírica riquíssima e que poucos são capazes de traduzir, ainda mais em duo, 100 por cento no gogó e com vertiginosos embates melódicos.
Ao fim do show, Camille e Salomão estavam visivelmente cansados, mas o formato do show não dava espaço para que eles pudessem relaxar. As intervenções e interações aconteciam e se dissociavam o tempo todo, por isso a necessidade de foco, justamente para que o conceito do espetáculo funcionasse.
Foi muito intimista e grandioso. Ambos souberam ler as situações muito bem e o resultado foi um show que cumpriu a difícil tarefa de orquestrar o Hermeto Pascoal com o Serge Gainsbourg. Teve de tudo, rolou até uma canja de trompete pra aliviar a tensão do duo e flexibilizar em trio com um quê mais Jazz.
Acima de tudo foi um show muito bonito, tal qual as linhas cristalinas do trompete de Julien e apesar de Salomão e Camille dizerem que um disco colaborativo ainda não está nos planos, quem assistiu ao duo tem certeza que um trabalho conjunto seria quase impossível de dar errado.
Magnifique, Salomão e Camille. Foi de fato primoroso, tal qual o exuberante passeio conduzido pelo Jazz, MPB e toques de música clássica.
-A liberdade poética de Salomão Soares e Camille Bertault
Por Guilherme Espir
Fotos por Thiago Alef
Fique aqui com um vídeo de uma outra apresentação do Salomão e da Camille Bertoult com uma banda!