Terceiro disco do MC Matéria Prima conta com diversas participações e direção musical do MC e produtor nILL (Soundfound Gang).
“Mais por sanidade do que por estratégia”
Grandes artistas nos ofertam generosamente os seus combates contra si mesmos e contra a realidade através de uma luta intensa com os meios técnicos de sua arte. Matéria Prima já alcançou um nível técnico que há muito o alçou à categoria dos mais originais MC’s da história do rap nacional, mesmo que você não saiba disso. Afinal, não é porque você não sabe ou não conhece, que algo não existe ou não é. Da mesma sorte, O Adotado aka nILL, vem nos últimos cinco anos inovando tanto na sua obra poética quanto em suas produções.
E é através da parceria entre esses dois grandes artistas, que o rap e a cultura hip hop brasileira avançou como pouquíssimas obras lançadas nesse 2020, conseguiram fazer. O terceiro disco do Matéria Prima com a direção musical d’O Adotado aka nILL, traz um diálogo entre a caneta rara, a experiência e a excelência do primeiro com as sonoridades loucas e irresistíveis do segundo, além das participações. Esse diálogo entre gerações nos propicia uma abertura inspiradora para novos horizontes do possível, dentro do rap nacional e da própria cultura hip hop.
São 18 faixas e pouco mais de 50 minutos de um dos projetos mais relevantes do ano, que infelizmente não estará na maior parte das listas de melhores do ano. Mais, ainda dentro da generosidade a qual mencionamos acima, o Matéria nos falou que se decidiu a lançar o disco ainda esse ano: “mais por sanidade do que por estratégia”. O disco “Visão” vinha sendo pensado antes da pandemia mas o seu grosso foi produzido durante o ano, e poderia tranquilamente ser guardado para o ano que vem… Porém, estamos diante de uma obra de arte, que não conseguiu ser contida por estratégias, e por nossa saúde mental e espiritual veio a luz.
“E sempre vai ter alguém do Capital que te tira, dizem que números não mentem mas vendem muita mentira”
Em tempos onde muitos se comprazem em se digladiar em redes sociais, se auto elogiar, espalhar ignorância, fazer joguinhos de cena, Visão (2020) nos inspira a pensar e a buscar os nossos aliados para seguirmos mais saudáveis. Aos 42 anos, sem estar no mainstream, sem milhões em números, Matéria Prima é quem realmente nos inspira com mais veemência a buscarmos algo verdadeiro. Em tempos onde a verdade se tornou “doxa”, onde a opinião falsa, o revisionismo histórico mais esculhambado, onde até a intocável ciência perdeu valor, a poesia do Matéria Prima nos abraça.
Sem papo tilele, sem academicismo fajuto, poesia de um preto que nos impulsiona a outras formas de ser e pensar, a questionar as “verdades” que vem sendo amplamente aceitas. Um impulso que ganha muita força se se observa a relação entre vida e arte que ele vem traçando com primor nos últimos 20 anos. Uma relação que o tem tornado alguém com amplo domínio técnico, cantando e rimando como poucos no país, e ao mesmo tempo com a experiência de quem fez parte do pioneirismo do underground nacional enquanto estética, e que seguiu habitando esse mesmo underground com uma elegância pouco vista.
A capa do artista gráfico Robert Frank captou a essência desse disco com muita sutileza, pois ouvir Visão (2020) é realmente estar diante de uma adequação, de elementos capazes de curar o nosso olhar. Pontuando questões extremamente relevante, produzindo denúncias críticas, visões poéticas de extrema beleza até quando toca em questões como a morte e o racismo.
Essa subida de sarrafo se dá não apenas no nível do conteúdo poético, mas também através do trabalho d”O Adotado e do Fantasmatik que produziram uma miríade de sonoridades ímpares ao longo das 18 músicas. O disco traz house, trap, boombap e um monte de beat torto, e em todos eles, Matéria Prima é aulas, só ou junto às participações.
“Quando o rap ainda era mato, mano eu capinei muito lote, olha a mão cheia de calo, a caneta é minha enxada filhote”
As participações do disco são deliciosas, pinçadas da fina flor do nosso underground e conta com o JOCA, nabru, 1LUM3, Delatorvi, Jamés Ventura, Mano Will, nILL e Ellen Corrêa. E quaisquer desses nomes que você se dê ao trabalho de ir buscar, certamente lhe abrirá um horizonte novo. Todes com menos ou mais trabalhos e tempo de carreira, são artistas que tem construído obras importantes e inovadoras em suas singularidades. Mas é o coroa quem demonstra facilidade para voar junto a cada um deles, com uma desenvoltura impressionante, seja em qualquer estilo. É presenciar um artista em seu auge criativo, com uma liberdade ampla, criativa mas também combativa.
No aspecto comercial, o disco consegue também ser portador de diversas perspectivas possíveis, com amplitude de pontos de vista que seduz o ouvinte pelo horizonte imenso de qualidades distintas. Música para a pista? Tem. Boom bap sujo? Tem. Trapzeira? tem também. Amor? ok. Discurso Racial afiado? ok. Crítica a indústria cultural? ok. Sobre a hiper exposição nas redes sociais e suas tretas monetizadoras? ok também.
O cardápio é amplo e saboroso, e sem dúvida alguma você voltará repetidamente a essa fábrica de rimas suculentas e nutritivas, “rimaria”. Os baixistas Ravel Veiga e Vinicius Ribeiro chegam em algumas das faixas emprestando suas linhas de groove e acrescentando peso swingado ao disco.
A mix e a master ficou a cargo do Fantasmatik que fez um trabalho sensacional encorpando o som do disco. Como reiteramos ao longo deste texto, os aspectos técnicos do disco estão redondos demais e isso faz com que as 18 faixas do disco soem numa coesão sonora, que agrega a toda a visão estética. O que nos leva ao fato incontestável de que Visão (2020) é o disco mais amplo esteticamente do Matéria Prima, por tudo já afirmado acima, e menos por qualquer visão evolutiva. Vivência, postura, experiência e reflexão, conhecimento, empatia, estamos diante de um disco que congrega todos esses aspectos, e mantém ainda assim a verve combativa.
“O que vai acontecer, o mundo não consegue renascer/ então tenho que viver, enquanto o tempo não interromper”
O rap nacional de modo particular, mas muito do espírito destes tempos em que vivemos tende a desprezar a força dos mais velhos. Matéria Prima é um nego véio malandro, porém experimentado, que enfrenta o veneno de ser um artista excelente e não receber o reconhecimento devido, há muito tempo. O que muitos meninos de 22 anos, choram pelas redes sociais, ele enfrenta na quase totalidade do tempo de vida desses. Não comungamos da lógica cruel de que se foi difícil para uma geração tem que ser para as próximas, mas também não abençoamos o discurso falso e canalha da meritocracia.
O que está presente na poesia e no flow do Matéria Prima, e talvez como um dos seus aspectos mais inspiradores, é perceber a força da serenidade que atravessa as suas composições. Não há uma gota de mágoa ou rancor, nada de ressentimento em ser um artista de excelência que vive a vida do povo. E isso faz a sua usina de poesia nos entregar versos incandescentes, numa respiração bem feita, variando de acordo com os afetos, mas sobretudo sabendo distinguir vida e morte.
Em um disco recheado de jovens negres, nos faz entender que a aceitação da morte é o que dá sentido à vida, assim como o trabalho. E esse pensamento elevado, lhe confere um ethos necessário para seguir em paz, e satisfeito em meio a tanta morte. Visão é um sopro de vida, serena, alegre, irônica e consciente do seu papel como obra de arte da cultura hip hop.
No começo do mês que finaliza um ano de terror, de perdas, de caos, de progressivo aumento da miséria em nosso país, ouvir Visão (2020) é remédio. É o disco que se não nos oferece um futuro melhor, afinal é uma obra de arte. nos ajuda a lutar contra a morte, pois ele a venceu com louvor. Matéria Prima nos inspira a dialogarmos mais, a ouvirmos mais, a julgarmos menos, a não odiar os nossos, a melhorarmos nossas críticas e sentirmos com intensidade reflexiva, essa vida que insiste apesar de tudo.
Obrigado poeta!
-A generosa e inspiradora Visão (2020) do Matéria Prima
Por Danilo Cruz