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A força da produção feminina no SESC Jazz 2022

A edição do SESC Jazz 2022 fez um belo retratato da produção feminina. Fizemos essa matéria para enfatizar as propostas apresentadas.

Em meio ao superfaturado cenário de festivais brasileiros, o SESC mostra-se uma opção sempre interessante para quem gosta principalmente de música ao vivo. Com grades repletas de shows – que exmploram diferentes linguagens e estéticas – em diversas unidades distribuídas pelo interior e a grande São Paulo, além de outros estados do Brasil, a instituição tem sido um refúgio seguro para quem busca arte e cultura por um preço acessível.

Quando o assunto são os festivais realizados pela instituição, como o Nublu Jazz e o Sesc Jazz, por exemplo, ambos revelam-se opções perfeitas para quem não quer gastar um aluguel no Primavera Sound ou no Lollapalooza.

Em 2022 o SESC Jazz retornou com atividades 100% presenciais e o trabalho de curadoria, luz, som – além do cardápio especialmente desenvolvido para a edição 2022 – mostrou mais uma vez como é possível promover um line up multi ètnico – com foco no Jazz – valorizando a história da música negra – sem esquecer de artistas nacionais e com um olhar clínico para promover um encontro de gerações.

Em 2022 no entanto, a quarta edição do festival foi bastante diversa, não só pela paleta de diferentes propostas ou pelos ouvidos antenados que trouxeram desde o hypado híbrido de Jazz/Afrobeat dos britânicos do Kokoroko, até o som do pianista congolês, Ray Lema, como também fugiu da lógica – que infelizmente circunda principalmente os festivais de Jazz/música instrumental brasileira – com um line up repleto de shows que visam registrar a força da expressão feminina.

Abajur

Um deles foi o encontro franco-brasileiro do Abajur, que trouxe as referência ritmicas brasileiras com o núcleo formado por Juçara Marçal (voz), Clara Bastos (baixo) e Maurício Takara (percussão), junto da escola europeia dos franceses Nicolas Pointard (bateria) e Christopher Rocherd (clarineta). O trabalho de pesquisa da Juçara Marçal mostrou desdobramentos surpreendentes e a maneira como o grupo explorou a improvisação e a composição, ressaltando como as distâncias entre o groove de Brasil e França são mais curtas do que parecem.

Dobet Ghanoré

Outro show que merece menção foi a apresentação de Dobet Ghanoré, cantora, compositora, percussionista e dançarina da Costa do Marfim. Dona de um repertório linguístico digno de uma diplomata, Dobet canta em diversas línguas e dialétos, como francês, bambara, lingaia, fon, bété, baoulé, malinké e mina, para citar alguns.

Promovendo um clara resgate, não só linguístico, a artista revela uma abordagem interdisciplinar e que valoriza a tradição oral de seu continente. Ao lado do trio formado por Colin Laroche de Feline (guitarra), Louis Haessler (baixo/sintetizadores) e Ludovic Nholle (bateria), o grupo trouxe um pouco do repertório da música Pop, mostrando claras conexões com o Axé brasileiro.

A sessão ritmica do grupo em particular chamou bastante atenção. O baterista Ludovic Nholle é o motor do grupo e o entrosamento com os precisos graves de Louis Haessler é bastante azeitado. O guitarrista Laroche de Feline aparece pouco, mas também fez um trabalho elementar nas guitarras, impressionando principalmente na hora os improvisos.

 

O Atlântico negro de Ilessi

Um dos momentos mais bonitos da edição 2022 do Sesc Jazz foi o show da Ilessi, com particição luxuosa da dama da canção, Alaíde Costa. Com direção musical do pianista Marcelo Galter, o show colocou duas gerações da música negra brasileira no palco e contou com um grupo de músicos que executou o set de maneira milimétrica, valorizando a beleza das vozes, mas sem se limitar ao papel de mero acompanhamento.

No show que assisti, a banda contou com Rodrigo Digão Braz (bateria), Tahyná Oliveira (flauta), Marcelo Galter (piano), Reinaldo Boaventura (percussão), Pedro Moreira (trombone), Tarcísio Santos (guitarra/violão) e Vanessa Ferreira (baixo). A baixista merece destaque, pois manteve o swing no elétrico e no acústico, mostrando uma distinta abordagem, com um timbre sempre presente e um som muito limpo e preciso. O trabalho do Digão e do Reinaldo Boaventura trouxe bastante riqueza para a sessão ritmica e as interpretações de Ilessi – tanto em suas composições solo – quanto ao lado da Alaíde, foram dignas de sair do Teatro com os olhos marejados.

Com o show “Atlântico Negro“, Ilessi mostrou sua rara voz para um novo público, fora do Rio de Janeiro, sua terra natal. Com discos autorais extremamente competentes, fruto de sua técnica vocal e trabalho de pesquisa, a cantora mostrou um repertório poderoso e que encontrou o balanço ideal para variar versões com material próprio, sem perder a capacidade de emocionar se conectar com o ouvinte.

Assistir a Alaíde Costa é sempre uma honra, mas nesse show em especial foi muito bonito observar não só como a Ilessi estava feliz com aquele momento, mas também como a Alaíde estava visivelmente empolgada. Aos 86 anos de idade, a cantora vive a melhor fase de sua carreira e toda vez que ela abre a boca, sua voz parece fazer malabares com algumas das músicas mais complexas do cancioneiro popular brasileiro.

 

Katherine Windfeld

Outro show que figurou no agurdado line up foi a apresentação da Katherine Windfeld, pianista dinamarquesa que faz um Jazz com óbvias conexões com a música europeia – com um quê de ECM Records (Edition Of contemporary Music) – o selo de Jazz criado pelo alemão Manfred Eicher. Com um show junto do seu quarteto, além da Big Band do Clube, de Minas Gerais, a pianista mostrou versatilidade e percepção musical apurada.

É interessante como a sonoridade do quarteto da Katherine é bastante compacta. O minucioso trabalho de distribuição dos instrumentos no palco também ajudou o set a mostrar expressividade, mas sem deixar nenhum elemento muito alto, explorando propostas que promoviam um sinuoso relacionamento entre o silêncio e o espaço, contracenando com a parede sonora da Big Band.

 

Kokoroko

O Kokoroko foi o grupo escolhido para encerrar o SESC Jazz. Herança da edição 2019 que contou com outros integrantes do mainstream da cena de Jazz londrina – como o pianista, beatmaker, produtor e DJ Kamaal Williams e a cantora Yazmin Lacey – o Kokoroko, grupo liderado pela trompetista Sheila Maurice-Grey retornou para o Brasil para a sua segunda apresentação, 4 anos depois de tocar no Jazz Nos Fundos, em 2018.

Com uma nova formação, depois da saída do talentoso guitarrista Oscar Jerome (para a entrada de Tobi Adenaike Johnson), o grupo veio para o Brasil na crista da onda de seu primeiro disco de estúdio, o aguardado “Could We Be More“, lançado em agosto de 2022. Com um show sem o sax alto de Cassie Kinoshi, a dupla de metais ficou sob a tutela do trompete de Sheila e o trombone de Richie Seiviwright. Foi com esse time que o coletivo entregou um show sólido e que mostra como essa nova geração borra as fronteiras entre os estilos sem pestanejar.

O baterista do grupo Ayo Salawu merece menção honrosa. O jeito que a sua dinâmica deixa o som da banda sincopado é impressionante, não só pelo vigor, mas também pela técnica e fluência. O tecladista Yohan Kebede mostrou um feeling nos sintetizadores que deixaria o George Duke orgulhoso. O baixista Duane Atherley tocou com a pressão necessária e o guitarrista Tobi Johnson mostrou tato para destilar seus insights harmônicos.

Depois de lançar um EP homônimo de 2019, o grupo caiu como um raio no mainstream, sem nem mesmo ter um disco gravado. Com lançamento novamente via Brownswood Recordings, “Could We Be More” mostra como o sucesso do EP não foi sorte e agora o grupo está caminha para se firmar como uma das maiores bandas do cenário mundial.

No entanto, creio que seja necessário ressaltar alguns pontos. Nos shows de São Paulo, a trombonista teve um pouco de dificuldade na hora de acompanhar as linhas do trompete de Sheila, principalmente nas dobras. A falta do saxofone tirou um pouco da pressão do som, resultado em picos e vales que não ajudaram a manter a linearidade do show. 

 

Nicole Mitchell’s Earth Sway

Outro show impressionante foi a apresentação da Nicole Mitchell’s Earth Sway. Grupo formado pela Nicole Mitchell (flauta), Coco Elysses (percussão/voz/arco), Alexis Lombre (teclado/vocal) e JoVia Armstrong (percussão/vocal), o quarteto trouxe um show que valorizou a tradição oral desde os primórdios da música negra norte americana.

Fazendo um parelo com a composição de Quincy Jones,Guitar Blues Odyssey: from Roots to Fruits” – do clássico LP “Smackwater Jack“, lançado em 1971 – a banda fez uma verdadeira cronologia musical diaspórica, valorizando principalmente o poder da palavra e a evolução da música, conforme o tempo passa, exatamente como Quincy faz na faixa mencionada.

 

Susana Baca

Um dos grandes momentos do SESC Jazz 2022, sem dúvida alguma foi a apresentação da Susana Baca. A cantora peruana com vasto conhecimento acadêmico, é dona de um trabalho que une etnomusicologia, poesia, dança e o estudo das raízes da formação cultural do Perú, com foco nas heranças andinas e nas raízes afro perunas.

A música da Susana Baca ajuda a delinear os sons da América Latina e do Caribe. Artista de inquieta produção, com mais de 50 anos de carreira, a cantora fez um show político e vibrante, pautado na resistência das tradições das minorias.

 

Quarteto Negro, Macha Gharibian e Mariá Portugal

É válido ressaltar que todos os shows mencionados foram acompanhados pelo Oganpazan, no entanto, a grade do SESC Jazz contou ainda com 3 apresentações que merecem destaque, são elas, o show do Quarteto Negro (com Zezé Motta no vocal), além do set da francesa Macha Gharibian e a cantora brasileira Mariá Portugal.

 É claro que o festival ainda contou com diversos outros shows, porém é bastante necessário destacar esse pilar da edição 2022. Fiz questão de trazer essa relação de shows isolados para se ter uma ideia da atenção e cuidado que o SESC teve na hora de montar a programação. Que sirva de lição para os outros festivais do Brasil. A produção feminina merece atenção.

Fotos: equipe SESC 

 

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