Os primeiros três minutos do EP funcionam mais ou menos como aquele furacão que carregou Dorothy e Totó para longe do Kansas. É a nossa passagem por dentro da toca do coelho, momento em que começamos a perceber que as regras com que estamos acostumados já não fazem o mesmo sentido dentro do universo ali proposto.
É interessante observar como esse trecho da obra (que já havia sido mostrado com o nome O Rei do Cagaço, com direito a um vídeo clipe muito bem realizado por Caio Araújo) se encaixa dentro do todo no qual foi concebido. Sua grande força simbólica nos atinge em cheio, já deixando claro para o ouvinte que será necessária uma atitude menos contemplativa da sua parte.
Não por acaso a representação sonora dessa força que nos carrega para longe remete diretamente ao som de uma locomotiva em movimento. Diversos outros elementos sonoros parecem circular freneticamente ao redor desse vórtice, como pedaços soltos de um mundo em suspensão.
[A locomotiva avança. Seu destino final: a cidade que não dorme.]
Ao fim da introdução, a sensação imediata é de desorientação. A partir dos fragmentos de uma urbanidade caótica, que logramos reconhecer apartados de seus lugares de origem, o artista reconstrói a seu modo um universo onde pequenas frações de passado e presente ganham novas formas de existir e de interagir no mundo.
A metrópole polifônica de Edbrass ostenta uma arquitetura repleta de anacronismos onde os diálogos entre o tradicional e o moderno ganham sentidos surpreendentes. Máquinas de escrever, interferências radiofônicas, poemas, ruídos e frases soltas convivem com batidas eletrônicas, cantos populares e orquestras, criando uma densa e envolvente textura sonora.
Dentro dos limites desse mundo testemunhamos encontros improváveis. É difícil conter o deslumbramento – como um turista frente a um grande monumento – ao notar a destreza com que o autor concilia o poema Lisbon Revisited de Fernando Pessoa (recitado pelo saudoso Antônio Abujamra) com uma batida eletrônica que há poucos instantes servia de base para um dubstep. Nessa interação ambos se abrem para novas e excitantes possibilidades.
Os quinze minutos de A Cidade que Não Dorme está repleto desses jogos hermenêuticos que desconstroem nossas expectativas imediatas. Definitivamente ela é um daqueles tipos de obras que crescem a cada nova audição. Quanto mais nos aprofundamos no seu universo mais detalhes conseguimos captar, enriquecendo a experiência e ampliando os horizontes nos quais os sentidos são construídos.
Se não podemos fixar residência nessa cidade pode ter certeza que ao deixá-la, estaremos mais aptos a perceber o nosso próprio “Kansas” de uma maneira diferente.
O responsável pelo achado é o selo gaúcho Plataforma Records, via Max Chami.