Heartless Bastards lança disco novo com uma produção mais pop, sem perder a áurea conquistada e a essência de sua música!
Amamos certas coisas sem perguntarmo-nos porque. Na verdade essa pergunta só vem ocorrer muito tempo depois. Apenas quando precisamos explicar pra alguém o motivo desta ou daquela paixão exacerbada. Por muito tempo, vibramos, curtimos, nos deliciamos com aquele caso de amor ao qual nos entregamos sem perguntas – e seguimos assim. No caso do Heartless Bastards e da sua líder Erika Wennerstrom a coisa (cá entre nós) passou de uma leve paquera à juras de amor com uma rapidez impressionante.
Tudo começou com uma notinha em alguma revista que marcava o lançamento de The Mountain (2009) e obviamente fui pesquisar. A audição das músicas do Heartless Bastards é daquelas que vai te pegando aos poucos, como um flerte bem feito, seguindo todas as etapas da conquista. Sua arte vai nos seduzindo aos poucos, chega-nos devagar pela sua consistência que apesar de nunca abrir mão da qualidade, não é dada a arroubos de genialidades e nem a momentos onde constatamos o fracasso imediatamente. Seus discos sempre seguem uma constante, apesar das diferenças entre as faixas. Uma banda que toca para uma boa cantora, prenhe de sensações que sua voz evoca como um arco certeiro, tal qual aquela imagem clichê de um cupido.
As paredes de guitarras sempre casando perfeitamente com o timbre melancólico de sua voz, em andamentos que variam do blues ao punk, sem nunca procurar alcançar a frivolidade da alegria pop. E, no entanto, marcando a potência que sua arte, tem de nos contaminar com a possibilidade de reconquistar essa mesma alegria entoada melancolicamente em suas letras com uma força surpreendente. É uma espécie de luta, de agon, que a compositora parece travar com a música como seu canal máximo de expressão. Sem se render ao pop radiofônico, o Heartless Basards consegue ensaiar linhas que agradariam a públicos diferentes desde a country music até aos alternativos de plantão.
Desde seu primeiro lançamento a voz do Heartless Bastards vem mudando de banda com certa frequência. Porém, sem deixar a peteca cair e afirmando lançamento após lançamento sua integridade artística, termo pouco usado hoje. Erika segue ao longo de mais de 10 anos, lançando belos discos e permanecendo ilustres desconhecidos do grande público. Em suas obras percebe-se inquietação, a busca por novos caminhos, execução técnica de primeira e como coroação: uma das melhores vozes femininas da música pop hoje.
Compositora de mão cheia, daquelas que poderiam estar facilmente na linhagem de uma Joni Mitchell ou porque não de uma Patti Smith, o Heartless Bastards não é uma banda que aparecerá com um hit arrasador. Infelizmente, pois não lhe faltam músicas que pudessem lhe alçar a esta posição. Em seu último disco junto ao Heartless Bastards encontramos a tentativa mais acessível no rumo para uma capilaridade maior ao público menos afeito ao rock alternativo. Uma produção que alivia nos timbres, nas afinações e nas distorções da guitarra, limpando-os e colocando a voz e as composições de sua aposta maior na linha de frente.
Não quero de modo algum marcar aqui um mea culpa, ou dizer que a mudança na forma da produção do Heartless Bastards não dá testemunho de outras intenções. Mas o fato é que se não existe neste último disco as radicalizações experimentais dos trabalhos anteriores, a qualidade que fisgou admiradores antes esta lá e permanece intacta.
Gates of Dawn toca confortavelmente e dá testemunho da qualidade melódica que aqui chamamos atenção e que marca há anos este trabalho – porém numa depuração bem feita. Mas não ficamos por aqui, o fato é que o Restless Ones (2015) marca uma pequena diferença com relação aos seus trabalhos anteriores. O Heartless Bastards parece ter incorporado, digamos, aspectos mais solares em suas músicas. Que o digam, por exemplo, a animadinha Hi-Line. A artista – que sempre se cerca com excelentes músicos – fechou com coesão esse seu novo grupo que a acompanha desde a gravação de Arrow (2012). Assumindo as guitarras temos Mark Nathan, com o baixo Jesse Ebaugh, as baquetas de David Colvin e John Baggot nas teclas.
Um grupo de excelentes músicos, versáteis e capazes de viajar com tranquilidade entre as influências do country, do blues, hard rock, punk, que são algumas das linhas que a Erika Wennerstrom e o Heartless Bastards incorpora ao seu trabalho. No entanto, sem nenhum aspecto revival ou retrô, todas essas linhas estilísticas são atualizadas em sua obra como nuances que recheiam um poderoso rock alternativo, por falta de definição melhor. É rock’n roll, mas lá você pode ouvir muitas outras coisas que certamente o tornam inclassificável para além desse rótulo meio vazio de alternative rock.
Porém, com toda certeza, se eu tivesse que escolher, selecionar qual o afeto principal que me fez amar sua música: é a sua voz. E isso está intacto nesse novo disco. Lembro-me de uma passagem clássica do filme Ray (sobre o grande mestre Ray Charles) onde o cantor está em vias de produzir um dos seus álbuns mais importantes: A Modern Sounds In Country And Western Music (1962), bebendo do country até a última gota. Que indigência percebemos quando o que se chama sertanejo universitário é citado ao lado desse estilo.
O mestre é interpelado numa cena por um músico sobre estar tocando música de branco. E com toda a sabedoria de quem trabalha para a música ele responde: “Eu gosto do country man, toda aquela dor e toda aquela resignação, e todo aquele clamor ao Deus da bíblia”. Não sei se foram essas as palavras exatas, porém esse aspecto do country também me afecta muito. E reconheço uma forte presença dele no timbre e nas linhas melódicas e harmônicas que constroem o canto da Erika e o som do Heartless Bastards seja em qual estilo eles se aventurarem.
Essa melancolia (uma espécie de lamento que se faz presente em todas as suas músicas, independente do ritmo) é só ouvir Tristessa nesse novo álbum e entenderão o que quero tentar explicar e talvez não esteja conseguindo. Em outros momentos essa melancolia serve de combustível para viagens insólitas através de camadas pesadas de guitarras como em Eastern Wind. Com um riff de abertura certeiro a música caminha na melhor tradição rockão de arena.
A singularidade de sua voz encontra outro momento vigoroso em The Fool, onde a compositora parece carregar toda a dor do mundo em si e de quebra nos dá forças para seguir por qualquer deserto que surja para nós. A faixa mescla um andamento swingado, com o baixo quebrado de Jesse Ebaugh comandando, sem linearidade em sua construção como o andar de um “Tolo”, e onde podemos ouvi-la cantar: “Eu sou uma ferida aberta”. De uma força descomunal um simples Looooo em seu vibrato inconfundível emitido pela cantora destrói qualquer coração mais molenga.
Mas é a força de resistência e a transmutação de afetos tristes em arte (potência de agir e de denúncia, de por em ridículo os sentimentos abjetos que somos incitados a cultivar) o que governa a disposição estética do Heartless Bastards. Ouça Black Cloud e veja inacreditavelmente o sol brilhar no céu, pois não se trata de chorar as pitangas. A missão é resgatar do fundo das dores do mundo força para continuar ativo, vivendo e buscando os bons encontros, buscando a alegria e a contrapondo as misérias. Afinal, Dante Alighieri já nos alertava que do inferno só se sai pelo meio do círculo, não correndo pra fora, é correndo pra dentro que se foge ativamente. Ao que o Heartless Bastards parece concordar, pois Erika canta em The Journey (“Oh now it’s suddenly clear/ The journey is the destination”) algo como “Oh agora está claro, a jornada é o destino”.
Na linda balada Pocket full Of Thirst, outra pedrada poética de resistência: “I set myself on fire/ And I jumped into the lake/ Disguised myself as someone else/ So you could not break me”. A melancolia que evidenciávamos deixa claro nas primeiras audições que de jeito algum era aquele sentimento que provoca certa languidez, recuo e imobilidade. Mas outra forma de tratar esse afeto que é fruto (para alguns teóricos) de certa saudade do absoluto, de alguma espécie de dor provinda de seu reenvio ao mundo normal dos homens, com sua pequenez, mesquinharia e falsos problemas.
Restless Ones do Heartless Bastards é um disco que merece ser ouvido e de certa forma precisa ser ouvido. Se não pelos censores que buscam no artista uma coerência ossificada, pelo menos por aqueles que entendem e buscam compreender mudanças que não são sinais de decadência ou desespero e que liberam o artista para outras aventuras. Para os já iniciados é mais uma deliciosa aventura, mais alguns poucos minutos inéditos de amor, daqueles encontros que só são notados e precisam ser pensados depois que terminam. De fato, é o único momento em que o pensamento é convocado para tal tarefa – quando o corpo já não dá conta a razão precisa intervir.
Fico cá de minha parte, pensando e desejando um dia onde poderia entrar em êxtase presencial ao ouvir aquela voz seca, penetrante e sofrida percorrendo meus ouvidos, acompanhada de uma excelente banda. Guitarras altas, baixo afiado, bateria seguindo o ritmo, sendo atravessados por tão forte e bela voz, uma noite de loucuras e extravagâncias. Porque apesar do Belo não ser mais o objeto primordial das estéticas, ele ainda encontra uma trincheira resistente dentro da arte de Erika Wennerstrom e consequentemente do Heartless Bastards.
Heartless Bastards – Restless Ones (2015):
Confira o Heartless Bastards em ação no clipe de Hi-Line:
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