O cinema possui como uma de suas funções preservar e reinventar nossa memória, seja na ficção ou no documentário. O cinema brasileiro em seu conjunto, sempre vilipendiado, pela falta de recursos ou pela critica infundada (fruto do desconhecimento do mesmo), continua resistindo e produzindo belas obras. No quesito documentário, possuímos uma tradição sólida em nosso país e Paulo Henrique Fontenelle vem se mostrando e se inserindo nessa tradição com uma força incrível. No seu segundo filme tendo artistas como objeto, ele novamente não decepciona e consegue nos trazer um retrato fidedigno, instigante, vivo e dramaticamente relevante de uma grande cantora da nossa música.
Depois do excelente Loki – Arnaldo Baptista (2008) e do importantíssimo Dossiê Jango (2013), eis que ele nos aparece agora com Cássia Eller (2015). Assim como em Dossiê Jango, onde o diretor lançava novas luzes, novas informações e testemunhas capazes de nos fazer repensar as verdadeiras causas da morte de João Goulart, em Cássia Eller, ele traça um retrato bem completo sobre a vida e a arte da cantora e com isso nos instiga a repensar o que ficou gravado na memória coletiva sobre a cantora e compositora.
Talvez tenhamos uma percepção muito fragmentada sobre essa grande intérprete da nossa música. Muitos se lembrarão dela como aquela cantora irreverente, agressiva (nos palcos), rockeira. Outros, porém, a lembrarão por seus últimos trabalhos, mais suaves, mais chegados para a MPB. E é esse um dos grandes méritos do filme, traçar um quadro completo – ou quase – onde vida e obra se cruzam sutilmente e podemos perceber melhor (para além dos clichês) toda a grandeza desta personagem ímpar de nossa cultura. Garota tímida que encontrava nos palcos o local adequado para transmitir toda a força que ela represava, que não conseguia colocar para fora no cotidiano, dando-nos com isso algumas pistas contraditórias – timidez e extroversão – que nos ajudam a começar a entender melhor esse cruzamento.
Durante o filme (abrindo-o e terminando-o) temos acesso a um escrito de sua lavra, onde a cantora afirma que apenas nos palcos conseguiríamos perceber quem ela era. A escolha deste texto é um excelente fio condutor que o diretor parece seguir e que nos conduz sem que percebamos. Tomando essa escrita da artista como verdade, o que podemos constatar em sua obra é que, sobretudo, Cássia era uma cantora múltipla. Uma observação um pouco mais atenta nos leva a constatar o ecletismo de sua obra e a assustadora qualidade com que ela ia de Riachão a Jimi Hendrix, da chanson francesa de Edith Piaf a Xis, ou ainda de Chico Buarque a Otis Redding. A desenvoltura e a verdade de sua expressão independiam de estilos musicais e denotava todo amor que ela nutria pela Música (sim, com M maiúsculo). Muitos desses passeios entre gêneros e estilos, produziu uma integração importante entre tribos que antes preferiam se negar, do que perceber o que de bacana os outros tinham a oferecer.
Amplamente documentado e ilustrado com imagens de apresentações ou de backstages, entrevistas, retratos e depoimentos, Paulo Henrique consegue nos conduzir numa narrativa existencial que explica as suas escolhas estéticas. Ao começar linearmente com as imagens e depoimentos sobre o início de sua carreira e seguindo o seu desenvolvimento, o filme analisa as diversas passagens que Cássia Eller vivenciou e que obviamente refletiram-se em suas músicas e nas escolhas de sua carreira.
As namoradas, seu amor por Maria Eugênia, a maternidade e o nascimento de Chicão, os empresários, as bandas, as experiências com drogas. De atriz de teatro a cantora de blues e rock, até a passagem (pedido de Chicão) para um lado mais suave e romântico, a apresentação histórica no Rock in Rio. São muitos os episódios ricamente contados. Seguindo linearmente, das imagens em preto e branco das apresentações ainda em Brasília, em espetáculos teatrais no grupo do Oswaldo Montenegro, o sucesso e a viagem para São Paulo para tentar a vida artística, o Rio de Janeiro e a casa onde viviam todos em comunidade e depois o consequente sucesso. Essas travessias e mudanças nos são narradas e aos poucos, sem que nos demos conta, a percepção de sua obra musical vai ganhando um sentido maior.
Sobretudo, Cássia Eller nos deixou um legado existencial e musical que nos toca com mais força na medida em que consigamos entender os entrecruzamentos dessas duas esferas. Muito antes das calorosas discussões sobre os direitos LGBT, Cássia fez um filho com um dos membros de sua banda e o criou junto com a sua companheira Maria Eugênia, que após sua morte conseguiu a guarda de Chicão.
Com uma liberdade que transcende o tempo político de então assim como o de hoje, Cássia viveu e cantou. Muito antes dos descolados de plantão descobrirem que o samba podia andar junto com o rock, ela passeava com tranquilidade entre as duas vertentes musicais. São essas relações que mostram essa artista, essa mulher em constante reinvenção. Sempre desfazendo seu rosto, uma hora com cabelo na cara, outra com um moicano colorido, cabelo curto, cabelo longo. Nunca se prendeu em estereótipo algum. Sapata braba, mulher delicada, rockeira, intérprete da MPB, esses binômios nunca a defiram. Ela trabalhou sempre na fronteira, retirando, produzindo e vivendo sempre os afetos mais alegres, mais fortes.
O diretor Paulo Henrique Fontenelle em colaboração com Maria Eugênia e outros familiares, produziu um retrato honesto sobre os problemas da cantora com drogas e desmente veementemente todo o espetáculo midiático desonesto e sensacionalista sobre a morte da cantora, que teria sido vitima de uma overdose – tese produzida e estampada principalmente pela revista Veja, que foi completamente desmentida pelo laudo da perícia. Até no momento de sua morte Cássia parece decepcionar aqueles que esperam o óbvio dela. O resultado final deste belo filme é a imagem, a lembrança, uma memória nova sobre uma grande artista, capaz de reinterpretar tudo o que toca, de reinventar as relações que vivia. Uma pessoa doce e uma artista feroz, mesmo na delicadeza.
Cássia Eller vive!