Em seu disco de estreia, o MC Nego Freeza em parceria com Pupillo produziu uma obra de arte que sobrevoa a história da negritude em diáspora
Um satélite para um quilombo vivo: ICYEREKEZO
Em seu disco de estreia, Nego Freeza não fala apenas de África, ele faz África ressoar nas 8 faixas que compõem o trabalho. Apresentando um álbum de estreia à altura de uma carreira brilhante e plenamente vitoriosa de quase 30 anos junto a uma das bandas mais importantes da história do rap nacional: OQuadro. Um dos discos mais relevantes lançados em 2024, ICYEREKEZO nos apresenta uma sonoridade e perspectiva únicas.
Um álbum inventivo que dificilmente ficará fora das listas mais atentas sobre os melhores discos do ano, trazendo dois nordestinos na feitura. A forma como o ICYEREKEZO, chega nas ruas empolga e nos faz pensar em outras formas de apresentação e recepção para obras do nosso underground. Mesmo que seja um underground de pessoas com uma carreira já consolidadas: como Nego Freeza e Pupillo. Músicos que caminham para mais de 25 anos de carreira.
A produção de Pupillo, um dos mais importantes produtores musicais do século XXI no Brasil, traz uma perspectiva mais eletrônica na construção dos beats, com uma verve que de certo modo dialoga com o seu trabalho junto ao cearense Edgar. Porém, em ICYEREKEZO o produtor pernambucano leva esse approach eletrônico para sonoridades africanas. Com lançamento pela gravadora Cachoeira Music, o disco chegou às plataformas digitais no dia 27 de setembro, contando com a fundamental produção executiva de Luísa Accetti.
Em sua composição, ICYEREKEZO apresenta múltiplos aspectos que encontram uma coesão estética na ideia de fazer um disco poder ser compreendido como um satélite. A palavra que nomeia o disco é fruto da pesquisa de Nego Freeza sobre o continente africano, e remete ao satélite lançado por Ruanda em 2019 buscando conectar e acabar com a exclusão digital da zona rural do país. Dentro desta perspectiva, Nego Freeza lança um trabalho artístico que sobrevoa e conecta referências invulgares e essenciais do pensamento africano do continente e da diáspora.
A começar pelo aspecto mais destacado de um país – Ruanda – que ficou mundialmente conhecido pelo genocídio colocado em prática pela política colonialista Belga, Nego Freeza de saída nos coloca sobre a perspectiva de renascimento e desenvolvimento amplo de um pequeno país africano. Nada mais adequado para um dos grandes “griôts” da cultura hip-hop que saiu em meados dos anos 90 da pequena cidade de Ipiau, no sul da Bahia, para alçar voos que o levaram pelo Brasil e pela Europa em shows com a banda OQuadro.
É impossível dissociar o trabalho de estreia de Nego Freeza do simbolismo e da poética presente na discografia do OQuadro. Do nego veio guerreiro do icônico primeiro disco da banda, passando pelo Nego Roque e chegando no Preto sem Açúcar, a negritude musical e poética construída aí encontra em ICYEREKEZO seu próximo passo. Do erigir de uma figura humana onde a musicalidade e poética se constituiu plena e fortemente informada ao longo de 3 discos, para o lançamento de um disco-satélite.
Este caminhar feito em coletivo, fez com que Nego Freeza arrastasse toda uma herança constituída com a banda e com o presença na rica cena do rap baiano, ao mesmo tempo que se desenvolveu em pesquisas próprias, teóricas e musicais ao longo das últimas três décadas. ICYEREKEZO expressa não apenas uma visão representativa da cultura afro diaspórica, mas sobretudo uma diferença essencial diante de tudo que se repete na indústria cultural, onde a forma e o conteúdo do disco, de fato sobrevoa criativamente e conecta uma visão de mundo que parte de Àfrica.
Diante das formas de escravidão e sujeição contemporâneas, Nego Freeza nos apresenta um disco que abrindo mão de sacar facilidades compradas de segunda mão e transformadas em palavras de ordem, viram hits antiracistas. ICYEREKEZO fala a língua de uma negritude insurgente, cósmica, afropunk real, passando por referências como o dub poetry de Mutabaruka, Antipop Consortium, Jorge Ben, Ilê Ayê, John Coltrane, Shabazz Palaces e Sun Ra.
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Neste processo, Pupillo talvez tenha sido o único produtor capaz de dar o acabamento musical necessário para este trabalho. O produtor musical que nos últimos 24 anos tem trabalhado com nomes como, Otto, Seu Jorge, Gal Costa, Elza Soares, Erasmo Carlos, e ao mesmo tempo com nomes mais novos como Céu, Edgar, Emicida e Criolo, não possui vícios em suas produções. A diversidade de artistas com quem produziu garantem um frescor em seus trabalhos, haja vista a parceria desenvolvida com o Novíssimo Edgar, sem nada parecido no cenário do rap nacional.
O mesmo se repete com o ICYEREKEZO, Pupillo elaborou uma musicalidade que não se prende em rítmicas como o Trap ou o boombap, mas puxa elementos dessas sonoridades, mistura com pitadas do Funk carioca e muita influência de trilhas sonoras de filmes de ficção científica. E contando com músicos Carlos Trilha, Antônio Neves e Oswaldo Lessa, que abrilhantam algumas das faixas do disco, dando contribuições orgânicas às construções.
Um Afrofuturismo com a força de Ogum!
Homem do axé, Nego Freeza traz como símbolo principal do disco uma capa construída pela Aline Bispo, artista visual premiada pela capa do best-seller Torto Arado, o signo de uma mão preta segurando uma espada de Ogum. E certamente, quem ouve o disco percebe que ao longo do trabalho, há a construção de um ideário que parte da auto-estima rumo ao cosmos que dialoga com a ideia do lançamento do satélite ICYEREKEZO.
Sem utilizar uma teleologia que prediz um futuro de sucesso, Nego Freeza constroi um disco onde a autoestima condiz com o desenvolvimento tecnológico, como luta, como plantio, como florescer consciente de sua própria vida e arte. Ogum segue sendo aqui o Orixá que determina essas diretrizes, ao mesmo tempo em que não esconde de nós o abismo diante do qual estamos dançando nesta contemporaneidade. Essa é uma das maiores qualidades – senão a maior – do disco.
A carne preta hoje no Brasil vive a esquizofrenia de ser a mais barata e a mais lucrativa, e já na faixa de abertura, Nego Freeza denuncia esse fato. Em diversos níveis é possível perceber que o “mercado racial” no Brasil, se compraz muitas das vezes em se tornar representativo, sem romper com as estruturas racistas, o The Colors of Brasil é um show de horrores onde o oportunismo é a chave.
Nesse sentido, a faixa “Nosso Ilê” é uma das mais belas e potentes do disco ICYEREKEZO, pois alfabetiza em pensamento africano, pode soletrar: Á-F-R-I-C-A. Sem recuar, sem recusar, sem negar o que lhe é mais próprio, aquilo que pulsa dentro de si, a força matriz do continente africano que nos deu a música em que vivemos. E desse amor que acalenta e serve como plataforma de expressão, a política nasce como identificação diferencial de quem são nossos irmãos. Nego Freeza produz uma espécie de oração ao que é nosso e aos nossos, substancializando o amor primevo ao nosso continente mãe.
Em meio a um sistema que constroi noções de que ter é o essencial para ser, criando desta forma uma arapuca que muitas vezes o rap compra, Nego Freeza canta: “As ruas me deram motivos, os beats me deixaram vivo”. Em “Brilho Forte”, em um beat onde Pupillo nos traz uma sonoridade que vai até o funk do refrão propiciando o flow mutante do MC, esquivando-se das armadilhas e intenções da branquitude, nos leva para uma auto estima em alta.
Um disco como ICYEREKEZO é feito para ser degustado, percebido e entendido, sentido aos poucos, dada a gama de intenções e informações, os blocos de afeto e percepções que ele cria. A presença de Matéria Prima neste disco é significativa demais, para pensarmos uma negritude que infelizmente não tem sido vista como possível de ser “consumida” pelo sistema supremacista branco da nossa Indústria Musical.
Com a música “Meu Lar” o satélite ICYEREKEZO sobrevoando a diáspora nos traz a realidade do genocídio em curso no Brasil. E Nego Freeza nos mostra o quanto é necessário prudência no enfrentamento: “Eu grito fuck police pra polícia do país e corro, baby eu corro!”, sacando que as posturas vendidas pelos falsos gangsters do rap nacional é apenas fakenews. Da parte do MC de Ipiau, a faixa é um reconhecimento de sua quebrada, das nossas e da malandragem necessária para vivermos.
Já o Matéria Prima manda um storytelling pesado sobre as quebradas de BH nos mostrando que Periferia é Periferia em qualquer lugar. A música produz ampla conexão com a seguinte “A Gente Pulsa” nos explicitando os mecanismos que estão presentes para oprimir a Senzala do Barro Preto, Trenchtown, Recife e Kalakuta. A música que foi lançada como single, nos apresenta a virada de perspectiva presente em ICYEREKEZO, do Lado A para o Lado B.
Um espaço-tempo preenchido de amor pela África!
De George Floyd como mais um numerado nas contas do genocídio até a busca da destruição subjetiva do povo preto, “Sinfonia do Caos” abre o espaço para o diagnóstico do tempo doentio e da história do povo negro em diáspora e no continente africano pós colonialismo. Ao mesmo tempo, nos apresenta uma visão sobre o “metaverso” de fé que o povo negro encontra no seus aspectos ancestrais.
Uma estocada certeira em boa parte da militância que incorporou a mitologia Hollywoodiana de Wakanda, que se não é plenamente perniciosa, ajudou e ajuda a obscurecer em nome da representatividade, um conhecimento real de África, “Resistência do Passado” é mais uma das pesadas do Lado B. Nego Freeza meio que se disfarça recriando uma espécie de Grave Digger (Salve Chester Himes) em um cenário Blade Runner, e investiga com minúcias os problemas da nossa distopia em curso.
O encerramento do disco com “Espaço Versos Universo” é de certo modo a gênese e a expansão desse universo que Nego Freeza criou ao longo de oito faixas e 26 minutos e 11 segundos. Uma verdadeira aula de referenciar algo colocando isso como substância da própria feitura artística. Não meramente uma citação. Uma mente com as portas da percepção plenamente abertas, com uma pesquisa ampla em termos artísticos e teóricos compõe aqui uma das melhores – senão melhor – músicas de 2024. Nego Freeza dialoga com o afrofuturismo em ato.
A força criativa entendida como força suprema de emissão amorosa em um espaço tempo que é nosso e que não é entendido como mera progressão progressista, tocando real fogo na Babilônia ao nos descortinar todas as formas de controle. Nego Freeza emite com a certeza da fé, do amor e da sabedoria a necessidade de refazermos Quilombos Vivos e pulsantes.
ICYEREKEZO é o seu lançamento que busca sobrevoar e conectar os corações e mentes através da música e da poesia em diáspora, pois ao contrário do que querem nos fazer crer, seguimos em território inimigo, faz tempo. Nego Freeza não apenas nos conecta com África, ele faz África em nossos corações!
-Nego Freeza e o seu ICYEREKEZO, um satélite musical pulsante sobrevoando a diáspora
Por Danilo Cruz