Lessa Gustavo este ano produziu dois trabalhos que precisam ser ouvidos, Impasse Mexicano (EP) e o disco Wilson Grey, leia o nosso artigo:
“Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha, avacalha e se esculhamba!”
O Bandido da Luz Vermelha (1968), Rogério Sganzerla
Desde quando eu ouvi o Naftalina (2019) EP do Lessa Gustavo com o Godjira nas produções, nunca mais perdi os seus lançamentos, e de lá pra cá sigo cada vez mais refletindo sobre esse artista e a importância de trabalhos como os seus para oxigenar o cenário. Ali, há três anos atrás, tomando contato com suas formas e conteúdos, estava titubeante no entendimento do trabalho, tentando compreendê-lo eu escrevia que expressões como as de Lessa são sempre invisibilizados por um mercado, público e mídia que privilegiam as formas mais pop dentro do rap.
Infelizmente, com o passar dos anos, a situação só parece piorar ao ponto de artistas lançarem os mesmos discos, ano após ano, com o rap se aproximando cada vez mais do pop e emulando o que ele tem de pior. Chegou-se a um etapa onde se dividiu – artificialmente – o público entre aqueles que ouvem e gostem de rap e os que não. Como é possível que tenhamos um público de rap que não gosta de rap, o cenário vive neste paradoxo.
Diante desse quadro, o trabalho de Lessa Gustavo e de tantos outros, outras e outres MC”s e grupos que se propõe a fazer rap, se tornam cada vez mais marginais. Passam a habitar a margem com impossibilidade lógica – pela presença do paradoxo acima mencionado – de alcançar outros públicos, que não gostam de rap, mas consomem o rap e por isso mesmo ditam as tendências. Considerando que em nosso país o rap demorou muito para ser considerado música e que hoje é notória a diluição dos artistas que alcançam o mainstream, com raríssimas exceções, trampos como Impasse Mexicano e Wilson Grey são fundamentais.
Este ano, além dos trampos supracitados, Lessa Gustavo também foi o produtor do disco do carioca Ieti, em seu Roteiro de um Filme Sujo (2022). Nesta estreia em disco do Ieti, Lessa Gustavo se destaca como produtor, produzindo “a trilha sonora” do Filme Sujo escrito pelo MC’s e suas participações. Os beats quebrados, as camadas de sons, os loops e os samples, compõem uma musicalidade instigante neste trabalho que deveria ser mais escutado.
Ora, essa colaboração nos joga luz sobre o tamanho da obra e da qualidade do Lessa, que além de MC é também beatmaker se inserindo numa tradição muito interessante e seleta de artistas que desenvolvem forma e conteúdo de sons e poesias. Um primeiro dado interessante de notar, no caso das obras do Lessa Gustavo é que sua poesia não possibilita leituras comuns de um público que busca na poesia uma narrativa como na prosa, ou dito pelo Décio Pignatari:
“A maioria das pessoas lê poesia como se fosse prosa. A maioria quer “conteúdos” – mas não percebe formas. Em arte, forma e conteúdo não podem ser separados. Perguntava o poeta Yeats: “Você pode separar o dançarino da dança?” Quem se recusa a perceber formas não pode ser artista. Nem fazer arte.” Décio Pignatari
Se começarmos a não separar forma de conteúdo e buscarmos ouvir a obra do Lessa Gustavo pelo que ela entrega, já estaremos em um caminho de compreensão melhor. Pois estamos diante de um artista que não entrega “storytellers” e não rima sobre uma temática clara e simples de ser entendida. Seus trabalhos buscam sobretudo a experimentação, o desenvolvimento de uma linguagem única e consequentemente uma forma e um conteúdo que não se separam.
São fragmentos, versos que seguem sendo feitos com um esmero ímpar como micro crônicas de si mesmo e de seu entorno, mas que não contam uma historinha. Ao mesmo tempo, pelo que coloca em suas rimas, vemos referências formais diretamente ligadas ao cinema marginal e ao concretismo poético dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e do próprio Décio Pignatari.
Curiosamente, em seus dois trampos rimando esse ano, o Lessa Gustavo utilizou beatmakers e produtores com quem produziu o Impasse Mexicano e Wilson Grey, respectivamente Ericbeatz e Nnay Beats, e o Keith. Lançado em junho, o Impasse Mexicano é curtinho mas sua duração ainda assim não nos leva a uma solução favoravel. Não há solução favorável para quem busca construir as coisas fora dos padrões vigentes pois não há fórmulas que deem conta das inquietudes, senão a busca por expressá-las.
E neste sentido, os trabalhos de Lessa são primorosos em nos fazer ver um artista buscando, se debatendo dentro da camisa de força da indústria como nas da sociedade capitalista. O drumless melancólico produzido pela dupla Nnay Beats e Ericbeatz na faixa “Castigo” encontra os versos:
“Eu me lembro, pode ser difícil mas no fim sustento, caminhar contra o vento em busca do alívio no tal firmamento, duradouro, redundante, brilho no outro, na prata, no diamante, ainda é pouco..”
A música que não passa de 1 min 02s, é lapidada sonora e poeticamente com uma força muito grande. Música e poesia comunicando afetos e ideias em estado bruto, Lessa Gustavo disserta aqui sobre busca, riqueza, expectativas e tudo isso com um sentido de movimento, portando uma auto reflexão sobre si mesmo, a conquista sobre suas afecções e seus estímulos, sua firmeza e a dor de carregá-las que pode ser entendida no seguinte verso:
“Não gosto de droga que me alucina, percebi isso novo, isso é o bastante. Só, eu preciso de estante para organizar as tralhas e objetos que trago comigo, espanador para não deixar empoeirar, rinite alérgica é um castigo.”
Somente essa musiquinha já daria uma tese, mas o maluco segue, na faixa “Trapaça” ele manda faixas de ataque contra as visões do mainstream. Em “Diss”, outro drumless muito bem construído, como o próprio título diz ele manda linhas de reflexões sobre as mudanças e posturas de dois nomes fortes do rap carioca: Shaolin e Black Alien. As batidas voltam a cadenciar o beat na faixa “Maldade” onde Lessa faz observações sobre a paisagem caótica da cidade e sobre as estratégias do capitalismo, junto com sódan – sobre o qual escrevemos aqui – que segue a pegada da faixa em suas linhas.
A penúltima música do EP Impasse Mexicano traz o grande Marcão Baixada e o Williams Luis, nossa faixa preferida do disco. “Vilões” é mais um drumless da dupla de produtores que mostra muito bem o quanto a variação de flows do Lessa é absurda. O loop que constrói a música é groovado de um modo muito bacana, que se complementa com as inserção de um sample que remete a soulmusic. William Luis é um jovem que consegue brincar com esse loop metendo um flow de trap numa operação técnica digna de mestres… Deveríamos nos deter nessa faixa, pois aqui às aulas são atemporais.
O Impasse Mexicano termina com as “Tesouras” do Lessa Gustavo que sempre frustram nossas expectativas sobre o que vem a seguir. A faixa termina com aquele sentimento melancólico e aqui também temeroso provindo do mundo onírico, o MC narra um pesadelo que não condiz com os seus afetos conscientes. Outro pequeno fragmento poético e musical que nos dão muito a pensar e sobretudo a sentir.
“Não me pergunte que horas são que eu não sei não, vivo na função”
Em um tempo de instataneidades e a consequente liquidez do pensamento, A frase acima é o refrão da música “Vilões”, mas serve muito bem aos nossos propósitos como uma espécie de ritornelo que reflexiona tanto o tamanho deste artigo quanto a tentativa de dar um sentido a obra do Lessa Gustavo. A preguiça estimulada pelos click baits e a pequenez da reflexão em um mundo onde tudo está ao alcance de clicks, impede muitas vezes de continuarmos um caminho de pensamento.
As imagens de sucesso hoje são brilhos opacos de uma leveza e vacuidade descontraída que diante do caos em que vivemos, produzem ânsia de vômito nas fisiológicas mais saudáveis ou mesmo adoecidas – depende do ponto de vista do que seja saúde ou doença. É interessante notar como Lessa Gustavo utiliza um ícone para produzir sua masterpiece até aqui. Wilson Grey é um ícone nos dois sentidos do termo, tanto no sagrado quanto no profano, um ator que serve ao artista como modelo de esteta na arte de representar e sua própria inserção na história.
Ator que mais filmes fez na história do cinema nacional, Wilson Grey nunca foi o “protagonista” e aqui já podemos deduzir como talvez o próprio Lessa Gustavo se enxerga dentro do cenário. Em um insert durante o disco, uma fala sobre a potência dramática e de construção de personagens de Wilson Grey no cinema brasileiro, nos dá uma dimensão do jogo intertextual e histórico produzido aqui. A interpolação proposta aqui é entre o cinema nacional e o rap nacional. E isso dá muito pano pra manga.
Para quem não sabe a interpolação em matemática é um conceito que visa aproximar os valores dos conjuntos discretos. Conjuntos discretos são os conjuntos dos numeros naturais. É curioso que em nosso país de maneira geral as artes e suas tradições, seus grandes inventores são meros desconhecidos do povo. O conjunto do cinema nacional neste sentido, com a utilização de um de seus maiores nomes, serve a nós como exemplo utilizado pelo Lessa Gustavo como uma tomada de posição e reflexão sobre o conjunto do rap nacional.
No momento em que escrevo este texto, as redes sociais explodem em elogios aos artistas BK e Rashid, que lançaram discos recentemente. A questão da manada é a lógica que comanda a percepção das pessoas na era da informação. Diante de um conjunto infinito de artistas mídia e público prefere a eleição, a seleção aleatória é comandada geralmente por níveis de visibilidade determinados pelo mercado. Não está em jogo aqui a qualidade dos artistas, mas antes a matemática obscura que impulsiona os engajamentos, completamente rendidos aos desígnios da indústria cultural.
“Me disseram que você quer saber qual o segredo, mano se eu soubesse com certeza te contava, mas não existe fórmula, tudo é tentativa, um tiro no escuro não garante nada”
Pois bem, “Papelada” é talvez uma das produções chaves para entender o Lessa e sobretudo para compreender o tamanho da excelência do trampo do Keith nesse disco. Wilson Grey traz 12 músicas, e nesta em questão temos um bolero escroto versando sobre as grandes questões da arte. Algo que coaduna muito bem com todas as questões que levantamos aqui no texto.
Bolero rap! Dentro do mercado latifundiário do drill e do grime carioca em guerra com o paulista, a produção da agricultura celeste feita pelo Keith e pelo Lessa Gustavo encontrou a sua reforma agrária! hahahahahahahahaha Banal banal banal… Demolidor não adianta nada, um tiro na cabeça e já era! assuntos congelados na minha Bag Térmica!
São saídas políticas, poéticas e musicais inauditas, as que a dupla formada pelo MC e o produtor conseguem nos fazer sentir com Wilson Grey (2022). Certamente é um disco que gostaríamos de ver em vinil… Não sei muito bem como continuar mas agora começou a tocar o sample da faixa “Certezas” neste momento de dúvidas. Keith, faz um loop aqui utilizando o baixo quase como batida.
Vamo lá, vou retomar o racíocinio! Wilson Grey traz diversas participações e uma delas nos é cara: Gil Daltro, um dos nossos comunistas prediletos do cenário rap underground, new golden era. Ficamos contentes quando vimos essa parceria que chegou primeiro no clipe da faixa “O Júri”, veja abaixo:
São muitas as questões que abraçam trampos como esse audiovisual por exemplo, aqui o Graça – ainda escreverei um dia sobre ele – fez a direção, a produção executiva ficou a cargo da Subtrama! Nem vou me encorajar a tentar desvendar os apelos semióticos e a força desse audiovisual visto por 2.877 sortudos. Mas é importante pontuar que pra quem não sacou é uma faixa sobre política e capitalismo, onde a burguesia estúpida que confunde Kafka e Kafta, colocam milhões dentro do inferno que Joseph K viveu diante da burocracia. Segue o baile…
Junto com essa participação vieram Ieti, Duvô, Nulo, Vici e o insano Sopa Preta aka jjjeru jjjamal, uma equipe de respeito do under, que ao longo das faixas contribuem com suas singularidades para a força do trabalho. A produção de Endorfina, as linhas em ritmo de speedflow do Lessa, a participação do Iete… Um dos melhores drumless do ano, bagulho acelerado, na temática nos flows e no beat, tudo amarradinho… Sinceramente, eu não tenho roupas para escrever sobre esse trampo, eu deveria para o texto aqui mesmo, mas lembrei de falar de uma coisa: o amor de Keith por Gal Costa, precisa ser mencionado. Na faixa “Débito” ele insere um loop animal e constroi um beat maravilhoso com um sample foda… o beat quebra no meio e entra o Vici rimando, e realmente as linhas merecem um brinde, e eu acabei de abrir uma cerveja e tô fumando um cigarrrrrrrrrrrrrrrreeeeeeeeeete fechado pela Souza Cruz na terra do Olodum!
Olha querido leitor, eu deveria fazer um faixa a faixa, mas quando a gente não pode nada a gente esculhamba, o que posso lhes dizer é: Ouçam o Lessa Gustavo e ouçam os trabalhos dos participantes aqui que formam esse conjunto discreto do rap nacional. Sem ideias e apresentando formas naturais, como números naturais, próprios, mas que não designam quantidade apenas, mas sobretudo intensidades!
Wilson Grey é um dos discos do ano e nessa estão comigo kolx, Lester Bangs, Amiri Baraka e Hunter Thompson. Parafraseando o Kafka sobre livros poderíamos dizer:
“Apenas deveríamos ouvir os discos que nos picam e que nos mordem. Se o disco que ouvimos não nos desperta como um murro no crânio, para que ouvi-lo?”
É isso escutem se tiverem ouvidos…
-Lessa Gustavo é um Wilson Grey vivendo o Impasse Mexicano!
Por Danilo Cruz
