Neuronêgo, Neuro, Neuro Cage, um poeta/MC em movimento e mutação!

Neuro é um poeta que vem construindo uma obra muito potente na circulação dentro do Universo 75, uma força do Recôncavo!

Neuro “Sou das áreas 75 não erro no mic, os poetas 75 não erra no mic”

Há dois anos atrás noticiamos o lançamento do EP “Fadologia” em uma matéria coletiva onde tentávamos dar conta minimamente do grosso da produção que nos chega do interior. Nesse meio tempo uma pandemia atingiu o nosso planeta, aprofundando as misérias que nos atingem cotidianamente, hoje mais do que nunca sob o governo federal abertamente fascistas e o governo do estado de iskkkerda!

Nesse meio tempo, o MC original de São Filipe: Neuronêgo aka Neuro aka NeuroCage expandiu seu trabalho com outros EP’s onde sua poesia assume cada vez mais ideias, técnicas e elabora mensagens de rexistência. Em sua estréia o MC já nos abre suas vivências em uma faixa impactante onde ele rima sem beat a poesia “Arte por Necessidade”. Esta abertura nos inicia em um caminho de combate constante contra o status quo de uma sociedade onde a desigualdade social é antes de tudo racial, mantida por um estado genocida e onde as estruturas racistas impedem que mesmo os pseudo atentos reconheçam a importância de um artistas como Josias Andrade. 

Parte de uma geração interiorana que teve acesso a universidade pública e cedo entendeu que essa instituição longe de ser uma salvação para uma vida melhor de oportunidades, é mais um campo de combate e local de possível instrumentalização e alianças para uma guerrilha cultural cada dia mais urgente. Formado em Letras pela UFRB, Josias não incorpora os pressupostos que formam o cânone do que seja a literatura brasileira, antes luta por se inserir e o faz bem, como divergente. 

Em aliança agenciada com outros importantes atores do cenário atual do hip-hop no recôncavo baiano que tem produzido em altíssimo nível. “Fadologia” é um trabalho de estréia que cresce a cada audição e que traz DJ Felipe (Cachoeira) e Roque (Santo Antônio de Jesus) na produção musical, o trampo foi gravado no Sujeira Rec. A imposição que o rap fruto da cultura hip-hop lhe impõem como destinação atravessa todo o trabalho, como conceito e leitmotiv das fachas, como profecia a ser desdobrada, como uma oração negra que clama e se prolifera!

São apenas 5 faixas, mas o flow e a impostação vocal junto à construção poética se diferenciam muito do que muitos estão acostumados a ouvir. “Contas” prod. DJ Felipe, é uma afirmação cadenciada com uma guitarra safada de fundo em pique soul, enquanto a lírica narra os diversos obstáculos sob os quais a sua fé é testada, sempre se reafirmando dialeticamente sobre essas provas. “Hoje eu vou te ver” se constrói como uma love song de amor preto, sem excessos de açúcar, antes utilizando o boombap e o trap como analogia para uma construção de relacionamento onde razão e instinto são os pares que precisam se harmonizar, em um casal preto. É nessa profundidade que Neuronego constrói sua arte, de modo muito distinto do vulgar de uma produção falida sob a égide do mercado e do pensamento senso comum bem embalado pelo marketing. 

Entendendo o game, o que não significa se curvar aos ditames do capital e a episteme branca da indústria cultural racista que gera o véu de maia da meritocracia, na faixa “Produto” Neuronego canta: 

Mais um neguinho sem nada vai ser produtor e produto, vai controlar investimento, a venda e o lucro. Apesar desse luto, eu olho pra frente na força que a pele de preto carrega e luto, pra tá mais forte amanhã, pra ser mais humilde amanhã, pra ter mais conforto e dinheiro, não ser um problema amanhã

Pensamento e produção, atentos às armadilhas do capitalismo em suas mais diversas manifestações de controle. Aqui, obviamente apenas um exemplo de diversos outros possíveis de demonstrar a força dessa poesia. O EP fecha com a faixa que intitula o trabalho Fadologia, onde novamente com uma poesia sem beats, o MC reafirma as causas do seu destino, suas motivações! 

“Não estou só reclamando dessa seca suja, tô plantando correria e prevendo a chuva”

Neuro

Nos parece que em sua construção recente – diga-se de passagem – o homem Josias escolheu não se definir – pelo menos ainda – e tem seguido um fluxo muito próprio. Neuro é um termo indefinido que se diz da relação com nervos e ou com o sistema nervoso. O que podemos perceber em seus primeiros trabalhos, é que há uma escolha ou ainda uma intenção de não definir um nome próprio, apesar de já existir enquanto estilo, que o prenda nesse momento. 

Neuronêgo, Neuro e NeuroCage são abordagens múltiplas que expressam seus sentimentos, ideias, relações, agenciamentos, sem necessariamente se localizar de modo fixo, ele não tem buscado uma Neurologia, talvez antes uma Neuro Etologia, um estudo da ecologia comportamental sua enquanto parte de um coletivo, e do povo preto historicamente condicionado em um contexto. E neste processo, percebemos a força do MC em produzir uma análise de conjuntura que não deixa de ser ao mesmo tempo, enquanto produção poética uma fabulação de possíveis, uma polaroid ou uma sequência de fotografias dos movimentos, que vislumbram em ações, teorias e práticas, destinações que o artista tem assumido e projetado.  

Foi com a audição de Rosa do Deserto (2021), sua primeira mixtape, que nos foi indicada recentemente por DJ Sica, onde certas ideias nos apareceram para esse texto. O trabalho está necessariamente localizado temporalmente entre o “Nêgo e o Cage”, entre o jovem estreante e o combatente do futuro, em uma audaciosa postura temporal que coloca passado e futuro em xeque, no que de melhor a tradição ontológica africana pode nos ofertar, Sankofa demonstrado poeticamente através do rap enquanto expressão da potência da cultura hip-hop!

Resta-nos apontar a negritude como único ponto fixo de onde parte o poeta, com suas qualidades líricas e de flow, com o auxílio luxuoso de artistas parceiros e parceiras, dentro de uma organização pan africana, de enfrentamento da guerra racial de alta intensidade, na qual estamos imersos. E aqui, uma dificuldade se nos demonstra, muitas vezes intangível para a maioria, a dificuldade de dar conta de uma história de opressão que se expressa no presente submerso em uma guerra. Por isso, nos parece que o trabalho de Neuro tem se dado entre agenciamentos diversos, de modo muito original, pois está atento a essa dificuldade que muitos do rap não são nem capazes de racionalizar, de elaborar poeticamente. 

“E em busca de certezas eu virei detetive… Neuro sabe de onde vem e pra onde vai”

A abertura de Rosa do Deserto, com a faixa “Contramão”, exemplifica com perfeição e na simplicidade da poesia todo o falatório acima. A faixa título “Rosa do Deserto” é uma das faixas mais interessantes que ouvimos nos últimos tempos. A produção da Nancy é loka demais, chamando para jogo solto e atualizando uma tradição afro caribenha no beat, onde Neuro rima sem miséria, chamando as palavras para um mambo surreal. 

Entre quedas e levantamentos, os jogos de palavras, as afirmações políticas e nesse caso em específico a rítmica utilizada nos contamina pela originalidade abrindo para o peso da faixa de conclamação do bonde: As “Área 75” (prod.uProdutor). Pra quem possa se passar e achar que está diante de um trampo inofensivo, pela descrição empolada acima. Essa faixa mostra que o bang não deixa de ser RUA, apesar da complexidade que pode ser desdobrada, há a simplicidade própria da arte bem feita, que embala com poder de comunicação uma série de informações, análises, teorias, em um conjunto de signos impactantes capaz de fazer a ponte a qualquer público. Restando ao receptor receber a força da potência e se virar com ela.  

A questão ontológica se faz mais uma vez presente com a lovesong “Futuro da Memória” (prod.QuadraSul), que transcende as descrições do cotidiano, depurando as ações em afetos rumo ao imemorial. “Olha que Onda” bate de modo invulgar no racismo, buscando exemplos históricos e mesmo gastronômicos para descrever certas armadilhas que podem “pânhar” os pivete. A mixtape fecha com um trap onde o MC escalda tudo tomando como mote, as postagens nas redes sociais e sua superficialidade de controle de comportamentos pré determinados: “Posta no Story” (prod. MagrinNuBeat). Elaborando a diferença entre quem posta no Story, ou seja quem tem ficcionalizado a própria vida e quem tem poetizado de modo potente e contra o tempo, sua própria história.    

Um poeta de aço forjado com o material companhia ferroviaria de Solano Trindade

Josias Andrade é arte educador, MC, poeta publicado e contista, e há um entre muitos contos fantásticos, que é de sua autoria e está presente no site da Universo 75 (clique aqui para ler).  Em Neuro Cage, a destinação assumida em Fadologia encontra a fabulação de Rosa do Deserto, no presente-futuro de um Recôncavo distópico localizado em 2096. Quarto lançamento de um dos projetos mais interessantes do Rap nacional, o Universo 75 reúne produção de fonogramas, contos, uma produção visual e debates registrados em podcasts, com o melhor do hip-hop. 

O nosso anti-herói Neuro Cage é um personagem que traz uma subjetividade onde não há a separação entre ciência, arte, natureza e espiritualidade, fruto de uma civilização altamente desenvolvida. Desembarcando após um pouso forçado numa viagem interdimensional nas Zonas da Morte do Recôncavo sob o jugo da branquitude, Neuro Cage utiliza o seu poder de transformar sua pele preta em aço para lutar contra a perseguição de Drones Armados, aos autointitulados: Ciborgues Pretos! 

É nesse universo, rico esteticamente e muito bem espelhado na atual realidade que as produções de Aganju Uh Anti-Influencer vão se aliar às rimas do Neuro Cage produzindo um EP fantástico. Composto por 5 faixas, esse EP foi minha trilha sonora por muitas noites à caminho do Lobato para as aulas no noturno. Confabulando e castelando nas ideias presentes e apresentadas dessa forma impactante, com uma forma estética que potencializa e encaminha o trabalho de Neuro para uma outra dimensão. 

Como todo grande trabalho de ficção científica, aqui recortada dentro de uma perspectiva afro futurista, o trabalho espelha um presente dentro de um campo inventivo onde a guerra racial de alta intensidade é retratada em sua mais “límpida clareza”. 

“Acho bom você correr, corre, corre, corre… Eu não tenho conselhos pra poder te dar…”

Disco que relata diversas questões de quem tá pista, de aviso para uma negritude enredada em ideias e ideais que a branquitude prepara sob medida para melhor controlar, colocar no ostracismo, adoecer,  aprisionar e exterminar. Talvez possamos inferir daí o signo da pele negra que pode se transformar em aço, afinal baseada na mitologia da Marvel e o seu herói Luke Cage, o Neuro Cage é a atualização afro diaspórica e futurista enfrentando outras tantas ameaças. 

Neuronego aka Neuro aka Neurgo Cage é um poeta em movimento, em transformação que tem produzido em alta intensidade, em alta densidade, um rap que merece ser melhor ouvido, aqui seguimos, aprendendo com ele!

-Neuronêgo, Neuro, Neuro Cage, um poeta/MC em movimento e mutação!

Por Danilo Cruz 

 

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