Naná Vasconcelos: uma entrevista que remete Saudades

A música volta e meia me fez passar por um lunático. Em várias oportunidades ouvi discos tão monumentais e impressionantes, que na hora de explanar para outros, sempre me via em maus lençóis. Acredito que em boa parte desses momentos o interlocutor deu boas risadas.

Mas na tentativa de resenhar momentos impossíveis de serem descritos, creio que tenha atingido o cerne do motivo pelo qual me sento para batucar as teclas, tal qual o percussionista Naná Vasconcelos faz quando cria e recria música em sua totalidade de batidas, só que a milhares de milhas longe da excelência que o mestre da terra do Maracatu emana de seu corpo e mente quando resolve reverberar suas criações.

Costumo dizer que algumas discografias necessitam de uma vida para serem absorvidas com a devida atenção. E dentro desse panteão existe um nome em especial que merece muita atenção: Naná Vasconcelos, músico brilhante e de mente inquieta que já está eternizado por reinventar, virar do avesso, desconstruir e remontar tudo que um dia foi chamado de percussão.

Acredito que o grande mestre, que um dia já teve a honra de gravar com Pat Metheny, Gato Barbieri, Walter Bishop (isso só para citar alguns), encabeça essa lista, pois fez tudo isso dentro de um front específico, mesclou gêneros, mas tudo na percussão.

E assim sendo, considero que para apreciar o trabalho de mitos como esse com o devido tempo que eles merecem, seja necessário uma vida e meia ou duas, pois além da gama de material ser grande, músicos deste calibre dão vida a algumas gravações, que além da altíssima complexidade técnica e riqueza, só conseguem romper o paradigma da ”explicabilidade”, depois de 20 anos gastando o LP, se bem que ainda acho que para entender as ”Saudades” do poéta do berimbau, sejam necessários até mais do que isso, só para esse disco claro.

Line Up:
Naná Vasconcelos (berimbau/percussão/vocal)
Egberto Gismonti (guitarra)
Stuttgart Radio Symphony Orchestra (arranjo)

Track List:
”O Berimbau”
”Vozes (Saudades)”
”Ondas (Na óhlos de Petrolina)”
”Cego Aderaldo (Egberto Gismonti)”
”Dado”

Se existe alguma coisa que vou me lembrar com certeza quando envelhecer, será a primeira vez que ousei escutar esta mítica gravação. Todos os caminhos que a orquestra percorre, as notas intrincadas, as notas de Egberto e o toque miraculoso de Naná para caracterizar um disco, que se tivesse outro nome na percussão, falharia miseravelmente.

O baque é instantâneo e duradouro no decorrer de todos os 44 minutos que envolvem o registro. Cada tema que o forma se desenrola com os ares épicos dos grandes embates trovadorescos de nossa história em séculos clássicos e já anteriores. E no geral, existe uma energia que se mantém dentro deste clima único, mas que dentro de cada rito deste grande ato, acopla e sustenta uma energia própria.

Mas nem é isso que deixa os ouvintes costumeiramente embasbacados, o que o faz é como a criatividade de apenas um berimbau consegue se equiparar com uma orquestra completa e ainda colocá-la no bolso! É completamente desconcertante conceber que apenas um homem consiga tantos sons diferentes de um único instrumento, utilize sua voz como complemento de toda essa sinestesia e ainda supere um coletivo de músicos com tantos timbres inusitados.

  
E o mais impressionante é que a orquestra, no fundo no fundo mesmo, faz sala para que o maestro de Recife apenas consiga cumprir com sua missão de vida e música: mostrar o poder da percussão e trabalhar com este elemento como se este fosse a orquestra, por isso que o coletivo da Stuttgart Radio Symphony perde sua majestade, mesmo com a condução de Mladen Gutesha. Se alguém aqui rege alguma coisa esse alguém é Naná e seu comparsa de outros contundentes registros: Egberto Gismonti.

Músico do mais alto gabarito técnico, que surge em vossos ouvidos depois que Naná brinca com nossa mente enquanto imite ”Vozes” e finaliza o tubo com ”Ondas”. Temas que parecem fechar um ciclo nesse complexo trabalho, pois com a entrada de Egberto em ”Cego Aderaldo”, parece que o aspecto sensorial de uma volta nas trilhas Amazônicas fica mais tangível com os arpejos de ”Dado” e as suítes que nos guiam à terra firme.

”Saudades” não é só um disco absurdo devido a sua complexidade e criatividade. Esse CD que um dia foi LP, é uma obra consagrada por sua profundidade, desde o feeling de todos os músicos envolvidos, até a percepção única de Naná, que praticamente indivisível à percussão, cria temas que transportam o ouvinte para lugares incríveis.

Depois de virar o primeiro lado parece que você é um náufrago na floresta, quando Egberto entra as vozes param de confundir o raciocínio e a viola apenas conta como é ir e voltar para lugar nenhum, depois de sair de qualquer lugar. Transcendental.

1) Quando você começou a trabalhar numa linha mais jazzística, como foi o processo de transição? 

Não teve nenhum processo de transição (risos), eu estava numa coisa e de repente fui pra outra, tive apenas que me adaptar rápido, na hora, não foi algo que eu tenha pego desde o início sabe? Eu estava aqui com o Milton Nascimento, Gal Costa, esse pessoal aqui e me chamaram para um concerto fora e eu fui, já estava no meio da música improvisada.

Eu não tive tempo de fazer nenhuma transição, apenas fui, assinei o contrato e fui para os Estados Unidos e de repente estou lá ao lado do Ron Carter, da nata do Jazz… Nunca procurei emprego lá e não teve processo de adaptação, eu não cheguei lá tocando isso e depois toquei aquilo, não, foi assim: Vai meu filho! (risos), foi um processo bem espontâneo e que precisou ser rápido.

Tive que procurar entender por que eu não falava Inglês e estava na nata dos Estados Unidos, com músicos que tocavam com o Miles Davis e isso foi bom por que me entender que eu tinha uma coisa que eles não tinham, por isso que estava fazendo sucesso lá, eles nunca tinha visto uma coisa dessas e fui eu e o Airto (Moreira), que chegamos quase na mesma época e os jornais falavam da gente sem conseguir explicar o que a gente fazia! Nós somos os responsáveis por colocar a percussão no Jazz, nós fomos pra guerra e ficamos no meio do barulho e o Miles Davis estava reposicionando esse Jazz negro americano por que convidou músicos como Chick Corea que eram brancos e estava quebrando todas essas barreiras e o Airto estava lá no meio tocando cuíca e tal.

2) Sua percussão consegue ir além do ritmo e criar climas, como que você trabalha pra criar atmosferas dentro de uma música?

Não, isso aí é uma maneira de pensar. Eu ouvia muito Villa Lobos e percebi que a música tinha um potencial visual na sonoridade. Ver o que ele faz em ”Trenzinho Caipira”, ele monta o trem e coloca você na janela vendo as paisagens do Brasil. Quando eu entendi que eu tinha uma coisa que não apareceu pra eles eu falei assim: ”Ah, aqui é o solo” e já que era o solo eu tinha que ter uma ideia, se quisesse um trem tinha que fazer o trem, eu sempre gostei da salva e se quisesse esse som tinha que criar também, então isso surgiu muito com o Villa Lobos, essa ideia, esse lado visual… A intuição me levou a pensar dessa maneira, eu acho.

Hoje eu entendo esse conceito, mas na época era muito informação chegando e eu no meio do pessoal do Jazz, eu nem falava Inglês, e eu ficava pensando muito em casa, tinha que inventar alguma coisa. Foi tudo um processo que aconteceu que foi acontecendo eu fui vivenciando isso e foi acontecendo, não planejei nada (risos).

3) Depois de tudo que você já fez dentro da percussão, misturando estilos, fazendo parcerias e tocando no mundo todo, como que você define o conceito de percussão? O que você acha que ela precisa trazer pra música quando requisitada?

A percussão não precisa agregar nada nem ter nada, ela já tem. A percussão pra mim é uma orquestra de timbres, eu uso a percussão como se fosse uma orquestra. Percussão não é pra quem toca mais rápido nem mais alto, eu procuro fazer música como percussão, essa é a diferença. Eu procuro contar histórias através de sons então eu entrei nessa área de sonoridade e fui explorando como se fosse uma orquestra.

4) Dentro da música você possui um curriculum bastante completo, gravou com o Pat Metheny, com o Itamar Assumpção, mas existe alguma coisa que você ainda não fez musicalmente?

Claro que existe! A experiência é experiência, mas se eu disser que já fiz tudo estou sendo burro, cada vez mais a gente sabe menos. Não procuro provar nada nem estou aqui pra isso, estou aqui pra tocar, mostrar uma perspectiva diferente e continuar fazendo música.

5) Você aborda o berimbau em sua totalidade e mescla uma linha vocal que se une na percussão, como você percebeu que poderia unir esses dois elementos e potencializar o todo?

O berimbau estava na capoeira como um instrumento solista e eu não sei como ou por que eu criei essa coisa, foi algo que quando eu peguei o instrumento mudou a minha história e eu comecei a encontrar coisas que estavam ali. 
Eu não encontrei nada nem criei nada e isso mudou minha forma de pensar, minha música, minha concepção, ele fez eu usar minha voz… Foi tudo por causa do berimbau, tudo que eu faço hoje sai do berimbau e eu transporto ou traduzo para outros instrumentos.
E eu consegui fazer o meu maior trabalho com o ”Saudades”, que foi conseguir fazer um concerto para berimbau com uma orquestra, então eu tirei ele da capoeira e elevei ele como instrumento solista para o mundo todo, por que na África eles usam até hoje como eles fazem aqui, mas ninguém usou ele dessa forma, é sempre pra acompanhar um conto, uma história, alguma coisa assim. O centro da coisa é a capoeira, ele é um acompanhamento e comigo ele foi para o lado principal. 

6) O que você anda ouvindo hoje em dia, tem algum percussionista pra indicar?

Tem bastante coisa, eu gosto da turma jovem, tem o Marcus Suzano, gosto muito do trabalho… Tem um pessoal muito bom, eu gosto dos alternativos, aquela história de percussão com bateria, é interessante essa ideia. Eu não uso esse tipo de abordagem, formato, mas é muito interessante, tem gente fazendo grandes coisas com isso também, mexendo até com música eletrônica, é um campo bem aberto.

7) De que maneira o conceito das religiões afro brasileiras influenciou seu trabalho?

A cultura da África é a espinha dorsal da cultura brasileira e por ser negro e ter ascendência africana, claro, eu fui criado ouvindo tudo isso, fui vivenciando e a influência sempre esteve presente.

8) Pra fechar, Naná, gostaria de saber como é o seu processo criativo, se você improvisa sempre ou se chega com alguma ideia já formulada quando adentra o estúdio.

Pra mim, tudo é música. O primeiro instrumento é a voz, o melhor é o corpo e o resto é consequência disso. Então a música pra mim está em tudo, silêncio é a música mais difícil de fazer por que o silêncio é um estado de espírito, as vezes a pessoa está parada mas não está em silêncio, as vezes está na maior zueira.

Então é muito mais esse processo pra mim, eu só sei fazer música então meu processo de criação as vezes pode trabalhar com trilhas pra ballet, filmes e isso ajuda muito por que faz você pensar, é um processo de trabalho mesmo, sabe.

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