Depois de um determinado horário, as pessoas que ocupam as ruas de São Paulo são outras. O ritmo das vielas muda, os becos escurecem e em algum lugar, existe uma vadiagem acontecendo. Só tome cuidado com a interpretação, pois tudo isso ocorre imerso num contexto não rude e costumeiramente primitivo, é um lado humano que precisa ser liberado, e o som ajuda todos esses ecos de fluxo, apoiando sua luta e priorizando sua existência.
Basta apenas uma sede para que isso comece. E em andanças pelo miolo do centro paulista, mais especificamente na região da Cecília (a Santa), ouvi um som… Uma sequência de reverberações que saia do Morfeus Club e o fazia com uma classe sombria, estabelecendo um parentesco estranho entre Blues, Hard, Jazz, Doom, Prog, psicodelia e Stoner, bem ali, numa casa que mais parece a residência do Nosferatu.
Chegando com uma das melhores propostas para o feriado em São Paulo, a Abraxas mais uma vez montou um line up de estrações bastante caótico e rico. Foi com o Hammerhead Blues, Saturndust e a Necro, que a produtora tratou de evidenciar (mais uma vez), toda a riqueza de nosso cenário.
O underground pulsa e rejeita os aparelhos. Demonstra uma força contundente e colocou 3 bandas, que sob o palco, justificaram toda a sorte de elogios que receberam em tempos recentes. A primeira delas foi o Hammerhead Blues, trio que abriu as celebrações e tratou de mostrar, desde o primeiro take, que o bom Hard usa botas.
Foi um set bastante coeso. Aliás, mais uma vez, o grande destaque foi a jam. Aquele improviso que no fim das contas se confunde com o script original de temas como ”Low”, (faixa que abre o EP da banda), por exemplo.
Os devaneios instrumentais demonstram o controle que os criadores desse universo possuem, e deixam claro como o entrosamento entre os três meliantes está azeitado. A bateria segue administrando o som com o mesmo vigor de uma bomba hidráulica. O Jazz bass continua dando pistas de seu bom gosto na timbragem. E a guitarra segue fritando mais que o Syd Barrett num open de ácido. A versão dos caras para ”St. James Infirmary” foi um dos pontos altos do show!
Mais ai chegou o Saturndust e aí tudo mudou. A atmosfera perdeu a glicose do Hammerhead e a pressão dos presentes caiu. As luzes perderam cor e o peso parecia varrer a platéia, ainda bem que eu estava com a máquina no pescoço para fazer peso, pois o Doom estava inspirado.
O clima foi denso, assim como a fórmula do full lengh do trio. Aliás, em termos de experiência, o show do Saturndust é bastante singular, as composições corrompem qualquer cenário e em meio a um peso incomensurável, o trio ainda finalizou a session mostrando novas composições.
Tudo isso depois de zunir ouvidos com uma guitarra econômica, fazer o ouvinte matar as timbragens de baixo no peito e manter o groove pulsante com uma bateria que mais parece uma locomotiva saindo dos trilhos!
Foi assim que uma noite promissora estava prestes a explodir, mas ainda faltava algo… Não posso especificar o que era, mas sei que depois do show da Necro, a satisfação foi garantida, total e irrestrita.
Mostrando um entrosamento que só uma banda com 6 anos de história possui, o último trio da noite fechou a conta no Morfeus e finalizou a tour em São Paulo com muito, mas muito bom gosto. Apoiando o repertório do show nas composições que entraram no terceiro disco de estúdio do grupo, (trampo ainda não lançado e gravado no Estúdio Superfuzz), os alagoanos mostraram com quantos goles de pinga se toca um belo Hard-Prog.
E o pior, os caras nem parecem se esforçar para tal, a técnica dos envolvidos é soberba. Pedrinho solava com a calma de um marajá em horário de almoço. Lillian Lessa subia e descia o Rickenbacker com a naturalidade de quem faz uma visita semanal à feira, e o que o kit compacto de Thiago Alef, foi um workshop gratuito para você, gafanhoto que pensa que para a bateria ser foda, é necessário possuir um kit maior que uma Kombi.
Foi um show grandioso, milimétrico e que mostrou um pouco do ilimitado repertório dessa união. As referências são incontáveis, creio que basta ouvir uma track para se ligar que esses senhores manjam muito de música.
A diversidade de influências é contundente e o resultado é bem como o Pedrinho falou antes do show: um ”Rock do mau”. Um elemento riquíssimo, pesado, técnico, cheio de sentimento e com aquele quê brasileiro pra ninguém botar defeito. Foi um feriadaço!