Nervosa se mostra revigorada em novo álbum

Nervosa revela com Perpetual Chaos, que nova formação traz novos ares, sem perder a fúria e a identidade. 

Nervosa
Capa de Perpetual Chaos

A Nervosa, formada em 2010, vinha em uma ascensão absurda, com discos corretos, longas tours, participações em grandes festivais, inclusive, sendo um dos principais destaques do último Rock in Rio, e fez o público do metal nacional parar para acompanhar a montanha russa de emoções que foram os seus passos no ano de 2020. Acontece que, o ano virou, e abrimos os trabalhos com um mega resultado para toda aquela jornada, na forma de Perpetual Chaos

A banda, que ficou famosa em formato power trio, agora traz, acompanhando a fundadora e guitarrista Prika Amaral, um verdadeiro supergrupo de jovens talentos da música extrema mundial. É surpreendente como esse casamento deu certo, em vista que a banda foi literalmente formada pela internet, através de redes sociais e video calls, levando muito tempo até que todas as integrantes estivessem, de fato, juntas na mesma sala. 

Se você não conhecesse os trabalhos anteriores e paralelos das novas nervosas, e corresse para conferir um pouco dos seus talentos, criaria mil teorias sobre os caminhos que a banda seguiria, agora que conta com musicistas oriundas de tantas vertentes, técnicas e lugares distintos. Acontece que o resultado aqui é certamente diferente de tudo que se possa imaginar, e o que pode soar como um passo para trás, acaba nos revelando que o coração e a essência da jornada da Nervosa são mais fortes do que todas as turbulências que o nome enfrentou nesses últimos tempos. 

Apesar da brilhante dinâmica vocal da Diva Satanica (Espanha, também integrante do Bloodhunter), do baixo robusto da italiana Mia Wallace (ex-AbbathTriumph of Death) e da técnica apuradíssima da grega Eleni Nota (Lightfold), nas baquetas, o que comanda a nova (e internacional) Nervosa são mesmo os riffs brutos e um jeito de tocar tipicamente brasileiro, que a Prika faz questão de deixar explícito. Ponto pra elas.

O metal nacional sempre teve a sua marca, e o Sepultura foi um dos grandes responsáveis por revelar essa pegada brasuca ao mundo. O thrash brasileiro é diferenciado, conversa com duas vias muito fortes: de um lado, o flerte com o death metal, o thrash alemão e o blackened thrash, e isso ficou bem explícito desde o Bestial Devastation, e acabou influenciando até bandas que já os tinham influenciado. 

Mais pra frente, o Sepultura, aproveitando-se das influências que já existiam lá nos primórdios (Discharge, Dead Kennedys, Black Flag, entre outros – os irmãos sempre estiveram na cena), alimentando-se da companhia do Ratos de Porão e dos rolês no circuito hardcore, o grupo foi revelando um lado cada vez mais sujo e punk, encontrando uma forma bem coerente de inserir o estilo dentro do seu som, ainda que se apoiando em melodias e estruturas que conversassem com o thrash metal de pares como o Slayer. 

O conceito de thrash da Bay Area, de jeans e tênis branco de cano alto, solos à la Dave Mustaine/Marty Friedman, nunca foi uma realidade no nosso país, a não ser por casos isolados, como nosso queridíssimo Violator, que fez/faz isso muito bem, adaptando-o, com maestria, às ideias estabelecidas no underground nacional. O “nosso som”, no entanto, sempre foi mais brutal, mais selvagem, mais nervoso. 

Se você imaginou que o conteúdo aqui soaria como Tech Death ou death melódico, está completamente enganado. A Prika trouxe, simplesmente, a Nervosa nua e crua, com uma produção seca, direta, pronta para ser servida ao vivo, trazendo o melhor dessas duas facetas do thrash de veia nacional, em uma imersão total por essa mistura que fez os gringos identificarem tão cedo que tinha algo diferente na nossa água. 

Se no disco anterior, o antigo trio revelava muito da vontade de misturar suas influências vindas do Big Four do thrash alemão com blast beats e climas do death metal, aqui, os dois mundos parecem uma coisa só, um verdadeiro amálgama do mal que enche as caixas de som sem nos dar tempo para respirar. Ouça bem alto.

Pode parecer simples demais em muitos momentos, muitos ouvintes podem sentir falta de solos, dobras de guitarra, lapidação nas estruturas, mas pra mim, o caminho de algo mais punk e iminente parece mais do que acertado, quando você aceita que é algo natural para elas, mesmo sabendo que são capazes de trazer um produto mais refinado. É apenas blackened death/thrash nacional como se fazia antigamente, mas sem querer soar nostálgico, apesar de perceptíveis ecos de Sabbath, Slayer, Death e Motorhead

Perpetual Chaos, lançamento da Napalm Records, de produção assinada por Martin Furia (o mesmo do álbum anterior) e pela própria Prika, e de masterização de Yarne Heylen, levou, em média, 3 meses para ser concebido. A guitarrista compôs 70% do material sozinha, e a reta final do processo se deu com as meninas se encontrando (algumas pela primeira vez), no belíssimo estúdio Artesonao. Casa de Grabación (Málaga, Espanha), em um verdadeiro clima de acampamento de verão. Ali, juntaram todos os rascunhos, deram nova vida à composições que já pareciam terminadas, e escreveram as letras que clamariam por uma forte conexão com a situação que nosso mundo enfrenta. 

A Nervosa continua como uma banda crucial. Ainda é formada só por mulheres em um cenário machista, ainda quer debater todos os conflitos que nos rodeiam, e também herdam a revolta que o metal nacional trouxe dos tempos em que ainda tentavam fazer a coisa acontecer nos últimos anos de Ditadura Militar. Todos esses elementos estão presentes para dar fúria ao texto que revela a falta de esperança carregada no título do álbum. No decorrer das tracks, a banda trata, de modo muito simples, de dominação, imposição, abuso, das mais diferentes formas, gerando o caos político, social, natural, cibernético, e o mais assustador de todos, o mental.  

Como grande fã de longa data da banda, foi natural todos os medos e incertezas na hora de ouvir o primeiro single “Guided By Evil”, e devo admitir que ele acabou não me ganhando, de cara. Minha ideia do que estaria por vir, era de algo com mais melodia, com estruturas mirabolantes, um tempero prog… caminhos que o metal moderno tem tentado explorar demais, nos últimos tempos. Ainda assim, serviu de cartão de visita para sentirmos que poderíamos esperar climas bem Iommi e black metal no que viria adiante. “Under Ruins”, segundo clipe lançado, já me fez entender melhor a proposta, confirmar o que tinha ouvido no anterior, e ficar de boca aberta com a energia absurda que elas colocaram nessas gravações.  

Passando para o disco em si, seu primeiro momento é impecável: a abertura com “Venomous”, primeira composição que fizeram juntas, já engole seus ouvidos! É disso que eu tô falando! Que pressão, amigos, que pressão!  

Nesta, já percebemos que a Diva Satanica será responsável por nos tirar o folego em vários momentos da audição. É impossível, especialmente pra mim, fervoroso seguidor do Arch Enemy, não ligar esse nome à Angela Gossow, mas mesmo a vocalista, em seu auge, entoando a canção que empresta nome à nova frontwoman da Nervosa, não tinha tanta diversidade e repertório para se mostrar como tantos personagens diferentes no mesmo contexto. Temos aqui a mulher das mil vozes. É mesmo impressionante.  

A sequência com “Guided” fez muito mais sentido agora, e abre caminho para minha música preferida do disco: “People of The Abyss”. A explosiva faixa traz à tona o terrível esquema de abuso sexual de mulheres e menores performado pelo bilionário Jeffrey Epstein, que acabou se suicidando na cadeia. O caso ainda deu origem a uma série documental na Netflix. O tema fortíssimo vem envolto em uma inteligente mistura de Black e Death, com um melodioso e emocionante refrão que, aí sim, mostra uma Nervosa bem diferente da que conhecemos, e pode alegrar muito os fãs de Arch Enemy

Se os grooves anteriores revelavam alguma influência de Obtiuary, a intro de batera da faixa-título vai fazer os corações da Sepulnation (me incluo nessa) baterem bem mais forte. “Perpetual” só confirma o talento gigante da pequena Eleni, que apesar de ser uma verdadeira máquina quando o assunto é velocidade, também consegue entregar muito balanço quando a música pede. Ela, com certeza, também tem sido um ponto fortíssimo na nova formação, e tem criado linhas impossíveis, que nos faz voltar alguns segundos no play pra vibrar, mais uma vez, com algumas viradas alucinantes. 

O disco segue com “Until The Very End”, com participação do Guilherme Miranda (Entombed AD, Krow), para nos lembrar de lutar contra os fantasmas da depressão. E por falar em participação, não tem esse ser humano que não abra um sorrisão, ao ouvir o grito do Schmier(Destruction) na divertidíssima “Genocidal Command”! O padrinho da banda tinha que estar nesse verdadeiro tributo ao thrash alemão, que tanto alimentou os primeiros anos da Nervosa.  

“Kings of Domination” e “Blood Eagle” trazem grooves bem maliciosos e dão palco para a Prika e a Mia colarem ainda mais a guitarra e o baixo para trazer mais ares de black metal para a roda, e já podemos sentir que o feito será parte do vocabulário dos próximos lançamentos das meninas. É definitivamente um dos temperos trazidos pelas novas integrantes.

“Godless Prisoner” e “Pursued By Judgement” nos trazem de volta ao death/thrash e aos temas fortes, discutindo a dominação pelo fanatismo religioso e o cruel tribunal da internet. A segunda, mostrando todo o poder de fogo e sinergia do grupo, além de mais riffs e cavalgadas matadoras da Sra. Prika Amaral. 

 Acontece que, os verdadeiros destaques dessa segunda parte do álbum, e que serão, acredito eu, as maiores surpresas e alvos de discussão, ficam mesmo para “Time to Fight” e “Rebel Soul” (com vocais animais de Erik “A.K” Knutson – Flotsam and Jetsam). Essas duas são, sem dúvida, as mais empolgantes de Perpetual, e representam o grande twist da audição, por serem extremante cativantes, positivas, e trazerem uma leitura altamente punk/hardcore/crossover para o som da banda. E é absolutamente maravilhoso! É como se a banda tivesse encontrado um mundo só dela, ainda que com muito de Motorhead, e nos faz pensar que não tínhamos ideia de como precisávamos ouvir o grupo fazendo esse tipo de som. Nervosas, precisamos de mais faixas assim!

Como todo disco do grupo traz uma canção fora da curva, aqui não poderia ser diferente, a versão nacional promete entregar “Exija”, mais uma incursão pelo território hardcore, só que, trazendo a Diva cantando em nossa língua materna. Belo jeito de agradecer ao público nacional por todo o apoio durante uma transição tão delicada. 

É sempre muito difícil apresentar um novo lineup para uma audiência tão exigente, como é a da música mais extrema. Já vimos muitos grupos se afundarem, e o histórico de rachas no metal brasileiro se mostra bem traumático. No caso aqui, já significa muito ver Perpetual Chaos como o disco mais comentado do início desse ano. Ver um grupo só de mulheres, sob um nome em português, estampando todos os sites e revistas especializadas já é uma grande vitória, e pode dar, para uma nova geração, um pouco do gosto do que era ter o Sepultura e o Krisiun, por exemplo, sendo descobertos por novos públicos.  

A Nervosa não é, de forma alguma, uma revelação, mas não podemos negar que temos novo fôlego aqui. A banda cumpriu a missão de entregar sua declaração, depois de uma drástica mudança de formação, em meio a uma situação completamente adversa, e ainda deu vida nova a um som que já estava ali, respeitando muito os timbres, limitações e bagagem de cada uma das integrantes. É um recomeço, uma volta por cima, e apesar de ainda não ser seu disco definitivo, já podemos, deixando a questão afetiva de lado, consagrar o álbum como seu melhor trabalho.  

Trazer uma formação totalmente voltada para a Europa pode ser uma estratégia muito interessante para conquistar de vez um mercado que sempre foi o principal palco para o crescimento dentro do metal, mas ainda assim, temos que louvar que a escolha de uma leitura tão brasileira para o estilo, na briga dentro do mercado em questão, ainda parece um ato de bravura. Perpetual Chaos resgata uma dureza e uma bestialidade que precisam ser constantemente reafirmadas como parte do nosso legado, portanto, não deixem de conferir essa verdadeira ode ao metal nacional. 

Leia mais matérias como essa na coluna Menor Threta do nosso colunista Tom Siqueira. 

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