A importância do Rap de Quebrada, os eventos feitos nas periferias de Salvador, que guardam a essência do hio-hop, não deve ser esquecida!
“O que não se registra, o tempo leva” (Mãe Stella de Oxossi, 1925-2018).
No final da década de 90, quando a cena do Hip Hop soteropolitano ainda dava seus primeiros passos rumo a uma organização estrutural do que viria ser o Movimento Hip Hop Organizado em nossa cidade, contávamos ainda com poucos grupos.
Foi percebido que mesmo pertencendo a esses núcleos de Hip Hop, esses primeiros agentes do movimento, vinham dos mais diversos bairros da capital e região metropolitana. E foram esses grupos que com o propósito de difundir a boa nova e de abrir espaços para os seus e para outros trabalhos dentro da cultura, buscaram se apresentar em suas áreas, e deram início a importantes eventos, o que aqui iremos chamar de “Rap de quebrada”.
Hip Hop: Do centro para a periferia.
Invertendo a lógica da pátria-mãe do Hip Hop, onde podemos encontrar farto material histórico que comprova que essa manifestação surge primeiro nos bairros periféricos (Bronx) para só depois ganhar os grandes centros. Curiosamente no Brasil esse fenômeno se deu de maneira contrária, ainda que o Hip Hop seja uma cultura urbana oriunda das classes mais pobres, aqui ela primeira acontece nos grandes centros (vide as primeiras batalhas de break na Estação de metrô São Bento – SP), para só depois galgar espaço dentro das quebradas.
E assim permaneceu durante algum tempo, mas que com o passar dos anos, percebeu-se a necessidade dessa manifestação mundialmente periférica ocupar de fato o seu lugar de origem… as periferias.
Com muita força de vontade, criatividade, porém, pouca grana restou colocar em prática a máxima “do it yourself”, ideal emprestado de uma outra forte manifestação cultural urbana, o punk. Mas que aqui ganham a força e a vitalidade no Hip Hop. Afinal, “…periferia é periferia em qualquer lugar…”.
Como ocorrido em outros centros urbanos do Hip Hop, em Salvador e região não foi diferente. Os primeiros eventos de “Rap de quebrada” datam do fim dos anos 1990. E muitos deles perduraram por anos, alguns tiveram diversas edições, até mais de uma por ano e muitos existem até hoje.
Alguns dos artistas que mais tarde figuraram entre os grandes nomes do Rap.Ba, deram início às suas carreiras artísticas em eventos como esse. Sempre com características muito comuns entre eles.
Ao revisitar fotos e flyers antigos, podemos comprovar muitas coisas em comum a esses eventos. Estrutura simples, sonorização muitas vezes precária mas que com o passar dos anos foram se estruturando, eram característicos a essas apresentações na primeira década dos anos 2000.
A interação com moradores das comunidades e a colaboração de comerciantes locais, sobretudo, por entenderem que o propósito dessas intervenções artísticos-culturais era (e é ) o de promover a interação da comunidade com o movimento e as suas ações sociais, que em muitos casos iam além do entretenimento.
A virada do final dos anos 1990 para primeira década dos anos 2000, foi de fundamental importância para a difusão e consolidação do Hip Hop nas periferias de Salvador e região.
Época em que surgiram diversos núcleos de Hip Hop (Posses) por toda a cidade e por consequência a realização de incontáveis eventos de quebrada, como bem lembra o rapper e professor Lázaro Erê, do grupo Opanijé a Wall Cardoso no 2º episódio do podcast Reg de Rap.
“Uma coisa que eu acho que é fundamental nos anos 2000, aqui do Hip Hop são os eventos de bairro. Dois mil pra cá, começou a pipocar vários eventos de bairro. E esses eventos de bairro meio que era um termômetro do que rolava na cena… esses eventos de bairro definiram a cena nos anos 2000”.
Os chamados eventos de quebrada foi um fenômeno que contemplou todas a regiões da cidade e entorno. E por conta de uma carência de uma rede de comunicação mais precisa, era muito comum termos eventos realizados no mesmo dia em localidades diferentes. De Cajazeiras ao Cabula, de São Caetano a Cidade Baixa. De Itapuã a Itinga, passando pela Sussuarana, Pernambués, Nova Brasília e Portão.
Muitos desse eventos se consolidaram por anos no que podemos chamar de “calendário do Hip Hop”, como os tradicionais: Boca do Rap, São Caetano Resistência, Narandiba em Atividade, Revolupaz, Hip Hop na Chôta, Hip Hop na Onça e Hip Hop União d@s Man@s entre outros.
Sabendo da grandeza, tanto em tamanho quanto em importância histórica, nós do Oganpazan iremos mergulhar um pouco nessa rica história desses eventos de quebrada, tomando como fio condutor alguns desses eventos.
Revolupaz/Adeus Ano Velho, Feliz Ano Novo: Idealizado pelo Dj e produtor cultural Ruben Dias, conhecido como Di Tubara, o REVOLUPAZ teve sua primeira edição realizada no ano de 2005. O evento idealizado pelo DJ não era um evento genuinamente voltado para a cultura Hip Hop, pois era muito comum em praticamente em todas as edições outros gêneros musicais como: rodas de sambas, apresentações de bandas de reggae.
Em uma troca de ideia com o Oganpazan, Dj Tubara nos fala um pouco dessas edições do Revolupaz:
“O Revolupaz, a primeira edição foi em 2005. Essa edição foi a noite num dia de sábado, lotou o espaço. De lá pra cá tivemos um total de 5 edições. Em uma dessas edições colocamos banda de percussão e roda de capoeira, mas também tivemos MPB com voz e violão”.
Pernambués e o seu Hip Hop Solidário: O Hip Hop de Pernambués é sempre lembrado não somente pelas suas edições, por onde passaram diversos dos grandes nomes da cena do Hip Hop da cidade e região, mas também por suas ações sociais, para além da cultura dos elementos. Como o próprio nome nos sugere a articulação política e social são duas das marcas do “Rap de quebrada” praticado por esses verdadeiros operários a serviço do Hip Hop soteropolitano.
Vamos entender um pouco dessa articulação política e social do Hip Hop de Pernambués pela ótica de um de seus grandes articuladores, o rapper e apresentador Negro Davi:
“Pernambués e o Hip Hop Solidário: O Hip Hop de Pernambués é sempre lembrado não somente pelas suas edições, por onde passaram diversos dos grandes nomes da cena do Hip Hop da cidade e região, mas também por suas ações sociais, para além da cultura dos elementos. Como o próprio nome nos sugere a articulação política e social são duas das marcas do “Rap de quebrada” praticado por esses verdadeiros operários a serviço do Hip Hop soteropolitano.
“O movimento Hip Hop do bairro começou nos final do anos 90, tinha a Posse Família de Pernambués, começou com várias pessoas. Tinha Fall, Sinho, Aline Negríndia, Jamile, e eram todos bastante atuantes. A partir dos anos 2002, comecei a atuar na Posse e começamos a fazer o Hip Hop Solidário no intuito de arrecadar alimentos para ajudar as pessoas da comunidade. Além do Hip Hop Solidário também fazíamos outros eventos e ações em parceria com outras entidades”.
O Hip Hop em São Caetano ou São Caetano Resistência.
É inegável que o bairro de São Caetano é um dos grandes celeiros de artistas do Hip Hop soteropolitano. De lá surgiram nomes altamente relevantes e que muito contribuíram para a construção da cena do Rap de Salvador. Bruno Suspeito, Víctor Haggar, Gomez (Elemento X), Preto Seda, Spock MC, Baga, Gringo são apenas alguns dos grandes nomes dessa vasta galeria de talentosos MCs, que brotaram do fértil solo dessa parte da cidade.
E pra falar dessa prolífica quebrada soteropolitana e do período da realização dos seus primeiros eventos, o rapper e produtor cultural Bruno Suspeito nos dar uma maior dimensão desse inesgotável polo criativo do rap soteropolitano. Pega a visão nas ideias:
“…o Preto Seda fazia os eventos e a partir daí comecei também, colei pra ajudar a fazer eventos e a participar das batalhas que o Preto Seda realizava. Daí eu peguei aquela coisa da cultura e não parei mais. Depois de alguns anos o Preto Seda sai eu assumo e outras pessoas passaram a colar comigo, como Baga, Cabeça, Gringo e outros ajudaram direta e indiretamente. O “A Rua Se Conhece” já é uma coisa idealizada bem mais coletivamente…”
De São Caetano, partimos para a Boca do Rio, onde era realizado o tradicional Boca do Rap.
Boca do Rap
Tradição e longevidade, são duas das características desse que foi um dos maiores eventos de rap de quebrada já produzidos na cidade, o Boca do Rap, realizado entre os anos de 2005 à 2011, quase sempre era realizado no Espaço Escologia. Mas que também tiveram edições realizadas em outros espaços importantes, e aqui vale citar o Espaço Ricarti, onde foram realizadas suas primeiras edições, e também no Espaço Transa, mas sempre na região da Boca do Rio.
O rapper Fúria 1, ex-integrante do grupo A Febre, que nesse período inicial integrava o grupo Pivô do Caos, também da Boca do Rio, nos fala um pouco desses eventos, que inicialmente eram realizados no Espaço Ricarti, algumas edições chegaram a ser realizadas no Espaço Transa, até migrar para o Escologia, onde podiam contar com uma estrutura e uma sonorização melhor.
Fúria também cita nomes de figuras importantes no início de todo esse processo dessa passagem entre os espaços Ricarti para o Escologia e a guinada na realização dos eventos.
“…O Boca do Rap foi iniciativa de Siba, do irmão dele Ney e Júnior. Ambos Ney e Júnior faziam parte da banda de reggae Libertários (hoje Voz da Alma) e Vitor do Atitude Diferenciada. O primeiro evento foi em agosto (2005), depois teve um em outubro e teve um outro em novembro (…). Todos no ano de 2005”.
“E essa migração deu-se pro Escologia (Parque de Pituaçú) em 2006, o primeiro evento foi 30 de abril de 2006..”
Hip Hop Na Onça: As ações do Hip Hop no bairro de Sussuarana também tiveram e tem grande destaque e relevância na cena do Hip Hop soteropolitano. Além de ações voltadas para a música rap, o pessoal também articulavam encontros voltados para a literatura marginal e intervenções poéticas através do Sarau da Onça – O Diferencial Da Favela, que dentre suas significativas conquistas, conta com três volumes da famosa antologia: O Diferencial da Favela – Poesias e Contos de Quebrada, que consiste numa compilação de poemas e contos de autores periféricos.
Hip Hop União D@s Man@s: Realizado quase sempre na região do Cabula, o Hip Hop União D@s M@anos durou mais de 10 anos e com pouquíssimos hiatos entre suas edições.
A primeira edição do evento Hip Hop União D@s Man@s ocorreu no ano de 2001. E quase sempre realizado na quebrada do Cabula e entorno, e teve na edição de 2013, o ápice entre as suas edições, pois foi na edição daquele ano é que foi realizado o primeiro registro em DVD do Hip Hop baiano, com a participação dos grupos: Fúria Consciente, Donna Liu, Negro Davi, Os Agentes e claro, os anfitriões do RBF. a edição realizada naquele ano também contou com uma série de intervenções artístico-culturais.
Ao programa Hip Hop Vai Além, do rapper e apresentador Negro Davi, Aspri fala um pouco sobre o Hip Hop União D@s Man@s:
“O Hip Hop União D@s Man@s começou a fazer as atividades mesmo em 2000. E foi seguindo de ano em ano. Em 2007 foi a última versão que fizemos com recursos próprios. Em 2008 e 2009 demos um tempo. Nós queríamos fazer o União D@s Man@s com estrutura leal pros artistas”.
Os eventos de Hip Hop realizados em Narandiba foram os que mais colaborei ativamente, tanto na elaboração do eventos, quanto na sugestão de nomes de grupos para as grades de artistas e também como apresentador de grande partes dos eventos, sobretudo nas três primeiras edições do Narandiba em Atividade
Narandiba em Atividade e Família STN Nós Pega E Faz: A região de Tancredo Neves e Narandiba também tiveram e ainda tem seus representantes no Hip Hop local, e muito dessa articulação de deveu a criação do núcleo organizado de Hip Hop chamado: Família STN, em agosto de 2003, tendo inicialmente como membros fundadores, Jailson APRC e Jodson (Estado Emocional), mas que com o passar dos anos foi integrando outros membros oriundos de outras posses e também de simpatizantes do movimento local.
A Família STN costumava organizar seus eventos em dois locais bem estratégicos, por conta da localização: o Parquinho em Tancredo Neves e na quadra da Rótula de Narandiba. Vale lembrar que os primeiros eventos realizados na quadra de Narandiba, foram idealizados pelo MC e produtor cultural ABJ, sempre em parcerias com manos da quebrada e apoio de comerciantes locais. O ano de 2007 foi marcado pela realização das três edições do Narandiba em Atividade, os três primeiros eventos realizados na comunidade, que deram
Quilombo da Chôta: As ações afirmativas, muitas delas voltadas pro Hip Hop realizadas dentro do Quilombo da Chôta, sempre foram sinônimos de muita força de vontade. O mano Luiz, conhecido na cena do Hip Hop soteropolitano como Luiz Cafezeiro, figura de grande importância no Hip Hop de Salvador, nos conta sobre as dificuldades na realização dos primeiros eventos no espaço.
“…o primeiro evento que teve lá foi: Estourando os Tímpanos – Uma boa dose de consciência. Foi um título que eu e Yuri Loppo colocamos. Deu umas 30 pessoas foi uma situação de muita dificuldade…”.
O mano também nos relembra que diversas ações culturais ocorreram por um tempo, até o fechamento temporário do espaço. Ainda a respeito das ações especificamente voltadas pro Hip Hop, ocorreram os eventos batizados de – Manifesto Rap No Quilombo, em que nas diversas edições, se apresentaram no Quilombo muitos dos principais nomes do Rap, não só de Salvador, com também da região metropolitana e até de fora do estado. Nomes nacionalmente consagrados como Gog, Dexter, Kl Jay e do baiano radicado em São Paulo, João Basílio (Ibotirama Records) também deram amostras de suas artes no espaço.
Mas engana-se quem pensa que as ações desse coletivo de guerreirxs restringia-se apenas a difusão do Hip Hop. O conceito de organização social quilombola também se aplica a esse pequeno, porém, enorme em importância, oásis cultural. E sobre esse caldeirão cultural, Luiz ainda recorda:
“…Pelo fato abranger um movimento de cultura de rua, teve apresentação de grupos rock, de skate, de grafite…”.
E nesse mergulho na história de alguns dos principais eventos de Hip Hop nas quebradas de Salcity, chegamos ao que podemos citar como um dos eventos mais novos dessa leva de eventos de quebrada.
O Caravana do Rap, e que aqui se difere dos demais com uma característica incomum. Diferente dos demais eventos e como o próprio nome já sugere, A Caravana do Rap é um evento que não tem um “endereço fixo”. Pois, com a sua proposta itinerante de levar a cultura Hip Hop e seus elementos a diversas quebradas da cidade, o evento teve diversas edições em vários bairros de Salvador e também no centros.
Pra falar um pouco mais sobre a Caravana do Rap e de como surgiu a ideia, o mano Mr. Jack Rap Nordeste fez uma ponte entre o Oganpazan e o mano Ricardo, idealizador do evento:
“O Caravana Do Rap surgiu com o intuito de difundir a música rap em todo território baiano. Encima disso, a gente vem durante esses 9 anos construindo um trabalho dando voz e vez aos grupos de rap que não tem palco. Essa é a finalidade principal do projeto. (…) é um projeto itinerante que a a gente tá constantemente em diversos bairros”.
Além dos eventos acima mencionados, tivemos outros com poucas edições como: Castelo Hip Hop a Festa (Castelo Branco), Hip Hop na Quebrada e Projeto Hip Hop Na Tenda (ambos na Massaranduba), o C.Bx Hip Hop (Cidade Baixa), Movimento Hip Hop de São Rafael (São Rafael), Espaço Hip Hop e o Minha Área (ambos na Liberdade), Etnia Convida (Est. Velha do Aeroporto), Hip Hop em Valéria (Valéria), Na Paz com Hip Hop (Bairro da Paz).
E outros sem a possibilidade de obtenção de nenhum elemento que pudéssemos utilizar como documento histórico para serem citados até finalização deste artigo. Mas sabendo de suas importâncias, deixamos esse artigo em aberto para a adição de informações futuras, e podermos contemplar o máximo possível d@s agentes que protagonizaram a realização desses eventos. Entendemos também que na rica história do Hip Hop baiano nunca caberá um ponto final e sim, SEMPRE pontos de segmento.
-Rap de Quebrada – A genuína manifestação da Cultura Hip Hop
Por Paulo Brasil
Assista ao DVD do Encontro Hip Hop Uniçao dos Manos!