O artista de Jundiaí Nikito Labrae solta seu primeiro disco NOva (2020), em parceria com BPP Tan, são 14 faixas intensas e chapadas!
Água batizada em forma de música
Discos são combos, pacotes, blocos de sensações e afetos, embalados em ritmos e atemperados por texturas, timbres, samples e mais o que a criatividade humana permitir. Está aí uma das grandes potências do rap, os infinitos modos de tecer colchas de retalhos ricamente organizadas, pulsando através de infinitas possibilidades títmicas e apresentando ideias criticas sobre a realidade que nos circunda. A poesia aí não é simples adorno ou perfumaria chique, mas antes parte da composição e da estrutura musical, seja na sua construção e no seu flow. Além de, quando bem executada e em congruência plena com a música, alcançar os pontos chaves de uma crítica necessária ao nosso modo de vida, à sociedade e aos seus indivíduos. Muitas vezes, externando sentimentos (sensações e afetos) de um “eu” que retrabalha a realidade ao seu modo.
O rapper de Jundiaí (SP), Nikito Labrae, acaba de soltar seu primeiro disco oficial e em parceria com o beatmaker e produtor BPP Tan, exemplificando ao seu modo, as ideias acima mencionadas, através de um trabalho singular. É tempo de lanche fast food, o Trap no Brasil apesar de possuir diversos artistas originais, entrega na maior parte do mainstream pratos rápidos para consumo rápido, ou comida requentada.
Nikito Labrae nos oferta uma viagem líquida, que se por um lado nos leva a chapação, por outro nos hidrata para sermos capazes de seguir na contra-mão dessa corrida de ratos, amplamente consentida. Através de uma poesia intrincada e emitida de modo original com um flow a nos transmitir as negações, o tédio, e o ódio diante do contexto infernal que a contemporaneidade nos apresenta e onde ele busca para construir o seu próprio mundo, uma luta constante. E é esse mundo que o Nikito vai construindo ao longo das 14 faixas que compõem o disco.
Costumo insistir na impossibilidade de comparar universos distintos, na negação de colocar animais distintos dentro de uma mesma jaula. Pois é assim, que entendo artistas, através da biodiversidade que eles compõem dentro de uma cena qualquer. seja em qual gênero for. Em Nova (2020), Nikito junto aos beatmakers e MC’s que parcipam do projeto, e ao BPP Tan, vai através de música e poesia nos desvelando quais os afetos que cultiva, quais as ideias que o move.
Água colorida, xarope no refri e vários cigarros são os sacrificios aos quais ele devota seu corpo e saúde. Porém, não são os recheios faceis a serem consumidos como mera propaganda ao longo do play. Antes servem como combustível para o autor seguir, desanuviar, pensar e colher do conjunto de suas experiências com substâncias alucionagénas, uma lucidez ímpar. Algo, que se encontra em escassez, seja no cenário do Trap mainstream, ou mesmo em níveis globais.
“O caminho do excesso nos leva ao palácio da sabedoria!
Através dessa lucidez conquistada, o MC engendra uma visão sobre as suas relações pessoais, suas visões políticas e sociais, e interfaces com as redes sociais e como elas interagem hoje em nossas vidas. O universo pessoal também está ali, subentendido através de algumas pistas jogadas no intercurso das linhas. Além de se utilizar dos personagens Luck Medo, Hector Labraejjin e Margo de modo a povoar esse seu universo expandido.
Para além, de uma egolátra autoexaltação, há um desenho sensível de um universo afetivo, social e político, de uma auto estima em construção, na mesma medida em que o disco avança. Nos proporcionando uma experiência em camadas a cada audição e durante às quase 1 hora de duração da bolacha.
Ao mesmo tempo, Nikito Labrae nos conduz pelos seus rolês na city, pelas noites, com seu bonde. E nesse passeio, o ouvinte recebe uma sequência de imagens – produzidas por suas linhas – que nos dão a ver que o autor não vive através de um roteiro pré-estabelecido (“não é filme”). Isso é algo que fica bastante evidente na sonoridade do disco, assim como no conjunto da obra como um todo.
Pois, a coesão estética e a inventividade apresentadas estão a serviço da criação de um duplo contendo toda a diferença possivel da realidade, mas sem ser uma mera ficção, ou a absorção de uma teatralidade velha como mera mímese da realidade. Nikito e BPP Tan, são artistas que não estão presos em formatos pré-estabelecidos, eles não tem medo de expor o que sentem e acreditam. E isso nos comunica vivências reais, ideias e convições bem assentadas.
Um disco, com 14 faixas e quase 1h de duração hoje é algo temeroso e raro, principalmente se se contar com a preguiça de um público acostumado com singles fáceis e feitos com repetições vazias. O que faz “sucesso”. Porém, se você como eu gosta de ouvir disco, não terá problemas em chegar ao final de Nova (2020), e se tiver uma sensibilidade que se afine com a proposta vai curtir a viagem, e as companhias e os construtores dessa jornada merecem menção!
“Uma ode a melancólia e a crítica anti-capitalista”
O disco conta com muitas e excelentes participações, estão presentes aqui na rima: Bon, Ryam, Stefanie Lima, AFK, Matheus Coringa, Choice, Yung Buda, Gord1N, Zemaru, nILL, Janssen Lima e HootsieDoppel Um time de peso que contribui para essa alucinada e crítica viagem que Nova (2020) nos apresenta como universo expandido. Esse universo ganhou uma cara e animação visual pelas mãos de Ana Sathler (Ilustração da capa), Serginho Tattoo(criação de personagens) e direção de arte por Helena Sayuri, além do Dyhogo.
A veia crítica pode ser notada nas diversas menções feitas pelo Nikito Labrae aos boys, o que nos apresenta dentro desse universo a uma visão muito necessária em tempos atuais de um estruturante de nossa socedade: “A luta de classes”.
A falsa impressão de que a tecnologia teria nivelado essas desigualdades em termos de acesso a bens culturais e a divulgação de trabalhos, é uma das falácias mais bem contadas dos últimos tempos. Tempos onde pobres se consideram empreendedores, onde artistas que alcançaram sucesso e conquistas financeiras nos alertam: “Se eu consegui, você também pode”. Hoje, se faz urgente uma crítica ao capitalismo em todas as suas evidentes impossibilidades.
Impossibilidade de dar vazão plena a um sistema democrático, impossibilidade de adequar a produção às necessidades ambientais do nosso planeta, impossibilidade de ser um sistema que combata a desigualdade. É curioso mas tudo isso pode ser deduzido através da escuta atenta do disco do Nikito Labrae e do BPP Tan, quem diria que um disco de Trap teria a potência de produzir uma critica ao capital e às alienações tecnológicas? Qualquer um que não seja um guardinha burro.
Por fim, a boa “Nova (2020)” é que tudo isso vem embalado numa sonoridade pra cima, o que os autores chamaram de M.Bounce (melancholic bounce). Uma sonoridade criada por eles inspirando-se nas produções do Makalister, e que consegue um efeito interessante.
Aqui é preciso talvez separar melancolia de tristeza, estar triste é uma condição humana que pode deorrer de diversos eventos. O professor Lourenço Leite, ao qual tive a honra de ser estudante, definia a melancolia em seus cursos como: “uma saudade do absoluto”, a consciência de que estamos separados do Ser. Ora, dessa separação pode-se decorrer diversos estados, um que me chama atenção e que gostaria de elaborar um pouco aqui se refere a como lidamos com os aspectos tristes que nos aflinge.
Para resumir, um estado melancólico não é necessariamente uma patologia, antes pode se referir a uma visão de mundo e a uma busca. Nesse sentido, Nova (2020) apresenta essa tonalidade afetiva onde a sonoridade é pra cima e as idéias criticas são fruto de uma visão entristecedora da realidade, porém em sua conjunção produz nos espiritos mais saudáveis, vontade de lutar. Na medida, em que engendram uma reflexão sobre as desigualdades que nos cercam.
É nisso que tenho brisado com a audição de Nova do Nikito Labrae e do BPP Tan. Talvez estejamos na eminência de uma geração que seja capaz de lamber suas próprias feridas e descer pra arena. De jovens que busquem na transgressão mas do que mero escapismo, e que sobretudo não se deixem cair em estado clínico. Lembro de uma fala, mas não me recordo de quem que dizia que o vazio da “depressão” pode ser também o espaço para preencher a relaidade com outras visões, com outras possibilidades de ser, com outras ideias.
Escutem e produzam seus próprios sentidos, pois a água Nova do Nikito Labrae e do BPP Tan, nos chapa para entender a realidade de modo crítico e nos hidrata para batermos de frente com tudo que está aí.
-Nikito Labrae e uma água “Nova”, que hidrata e chapa!
Por Danilo Cruz