Mestrinho do Acordeon, uma entrevista: Masterclass de Forró sobre sua carreira, parcerias e a versatilidade da sanfona!
A sanfona é um instrumento extremamente peculiar. É um elemento 100% integrada à cultura brasileira e sua relação com a história do nosso país e suas raízes está intimamente relacionada à essência do Forró, um dos maiores porta vozes da cultura nordestina.
Sob o guarda chuva do Forró, mestres como Dominguinhos, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga – isso só para citar alguns cânones – foram elementares e extremamente influentes para definir a roupagem rítmica do estilo, entretanto muitas questões regionais acabaram se perdendo no caminho e o consenso é dizer que é tudo Forró.
Existe uma questão muito particular no nordeste que é a diversidade rítmica e entender essas raízes é extremamente importante para entender essa linguagem, presente também na obra de outros maestros da música nacional, como o Hermeto e o Marcos Valle, por exemplo.
Esse swing irresistível possui uma história de luta muito bonita e que resistiu ao tempo para criar um groove que nenhum gringo no mundo faz igual. A sanfona fica bem de longe, de perto, com Blues, Jazz, Funk… É tudo questão de saber chegar, ela só precisa estar lá.
E hoje no Brasil, uma das maiores referências quando o assunto é sanfona é o reverendo Mestrinho do Acordeon. Escalado para tocar no Montreux Rio 2020 com um show especialíssimo ao lado de Michael Pipoquinha (baixo) e Marcos Suzano (percussão), em homenagem ao legado do Gonzagão, o também cantor e compositor aproveitou pra conversar com oganpazan e falar um pouquinho sobre esse rico bioma da cultura popular.
Vale lembrar que entre os dias 23, 24 e 25 de outubro, vai acontecer a edição online do festival Montreux Rio. A edição 2020 vai ter alcance em escala global, Com palcos em Los Angeles, Rio de Janeiro e Nova York, tudo com transmissão gratuita.
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Mestrinho, de onde surgiu seu apelido? Queria lhe perguntar sobre sua fase de formação, como foi essa caminhada e a honra de ter tocado com o Dominguinhos?
O meu nome é Erivaldo, assim como o de meu pai. O apelido surgiu por conta da minha mãe. Ela sempre quis ter um filho sanfoneiro. Meu pai também, Erivaldo de Carira, outro sanfoneiro, neto ainda do grande Manézinho de Carira.
Quando minha mãe ficou grávida – meus pais tiveram 3 filhos – e eu, filho do meio, já ouvia dela, ainda dentro da barriga, que eu ia tocar sanfona: desde então eu já era o Mestrinho do acordeon. Foi graças a Dona Bina que tudo isso aconteceu. Aí ficamos eu, meu irmão Erivaldinho e a Thais.
Pensando na fase que eu já comecei a tocar, bom, com 5 anos eu ganhei uma sanfona, com 6 eu já tocava “Asa Branca” e com 11 anos já atuava profissionalmente. Depois eu sai pra tocar com meu pai, viemos pra São Paulo e num Forró – já na capital – eu conheci o Dominguinhos, que era um grande amigo de meu pai.
O Dominguinhos morou um tempo em Sergipe – minha terra – e eles se conheceram nessa fase. Eu devia ter uns 15 ou 16 anos… Fui eu e Erivaldinho, meu irmão, e acabei dando uma canja. Logo depois ele passou o número de telefone pra mim e a gente manteve contato.
Quando eu voltei pra Sergipe eu fiz o Trio Juriti e depois fui pra São Paulo de vez, rodando com o trio, até o Dominguinhos me chamar pra tocar com ele, ai eu tive que conversar com a minha irmã pra sair do grupo e ela nem falou nada.
Vai falar o que né?
Então, aí eu continuei no caminho. Com 19 pra 20 fui tocar com o Dominguinhos e depois de alguns anos apareceu o convite pra tocar com a Elba Ramalho. Como eu gostava muito de tocar com ambos, eu sempre intercalei, até pra fazer de tudo pra tocar com o Dominguinhos, sempre que possível.
Toquei com ele até o show, o “Exu”, na terra do mestre Luíz Gonzaga (Pernambuco), foi maravilhoso. O que aconteceu depois foi que à partir da Elba eu cheguei no Gil. Fiz bastante coisa com ele nesse meio tempo. Era bom por que quando rolava gig com os 3 no mesmo lugar eu já matava tudo de uma vez hahaha
E aí teve o momento da sua carreira solo, certo?!
Exato, teve uma época que eu sai da Elba, justamente com esse objetivo: consolidar a minha carreira solo. Sempre compus desde criança, coisas instrumentais, letras, enfim, mas eu precisava sair pra dar início e foco pra essa nova carreira.
Eu sai da Elba e entrei num projeto chamado “Gilberto Samba”, idealizado pelo Gil, mas dessa vez em homenagem ao João Gilberto. Com esse trabalho a gente foi para os Estados Unidos, Europa e em paralelo eu já fui começando as coisas que viriam a ser o meu projeto solo.
Hoje em dia eu estou consolidado com a minha carreira solo, mas eu mantenho contato com o Gil e nesse meio tempo também conheci a Ivete! Foi muito legal por que ela me ligou, disse que gostava muito do meu trabalho e pediu pra participar do DVD dela. A gente gravou uma música juntos (“Serei Pra Ti”), fizemos clipe, enfim, tiveram todos esses acontecimentos no meu caminho.
Estou na carreira solo, mas sempre que me chamam, eu posso estar na China, mas pode me chamar que eu venho. Na live que fiz com o Gil, por exemplo, eu hesitei bastante por que eu estava rígido na quarentena. Lembro que fiquei meio ressabiado e o Gil me ligou, aí você sabe, né? não teve como falar não.
Em carreira solo eu tenho 3 discos gravados, fora os singles. Fiz o “Opinião” (2014) na época da Elba saiu, o “É Tempo Pra Viver” (2017) e o terceiro é um disco que já é de Forró raiz como os outros. “Grito de Amor” (2019) apareceu com uma abordagem mais Pop, repleto de canções e eu concorri ao Grammy Latino com esse trabalho.
Mas eu tenho feito muito single junto com tudo isso, aliás, se você reparar bem, a questão do lançamento é só single. Eu não concordo com isso por que a gente tem muita informação na internet e aí dizem que lançar o disco é confuso, mas ao mesmo tempo cadê a continuidade?
A construção da discografia, né?
Exatamente, eu sigo fazendo singles, mas não vou parar de fazer discos, mesmo que o formato de lançamento não mude.
Mestrinho, você leva o forró para territórios que musicalmente são muito interessantes. O Baião, Choro, Forró, Xote, enfim, como é absorver essa riqueza rítmica nordestina e ao mesmo tempo tocar Jazz com o Pipoquinha, Hamilton de Holanda, Edu Ribeiro, enfim. Como você faz pra não só fazer essa estética caber, mas enriquecer o som com essas paisagens tão lindas que você constrói na sanfona?
Primeiramente é não esquecer da minha essência, de onde eu vim e como foi o meu começo. Eu preciso estar com isso comigo, sempre, pra desenvolver qualquer ideia. Sempre que eu vou no Jazz, Samba, instrumental, Pop, enfim, eu estou lá carregando a essência da música nordestina, independente do gênero.
Eu acho que o principal é isso, sempre lembrar da musicalidade do começo de tudo, as referências das paisagens da minha infância… O sítio da minha vó, as casinhas humildes, enfim, eu carrego essas lembranças pra poder expor isso na minha música.
Eu absorvi muita coisa quando novo e depois estudei muito, mas apesar disso não deixei de expor a essência da minha música. Está presente em tudo que eu faço.
Ainda no nordeste, Mestrinho, queria um olhar clínico seu, com foco na questão regional. Acho muito importante pegar essas nuances de subgênero e mapear essas raízes do Forro. Um exemplo é um maxixe. Queria entender como conhecer essas opções ajuda na sua paleta de ritmos.
O Forró é um gênero muito rico nesse pilar. A influência dos ritmos… O interessante é que não existem muitas harmonias, mas existem muitas divisões. O Maracatu, o Frevo… O Frevo é mais rico harmonicamente, mas na zabumba do Forró, no Xaxado, eu vivi muito esse lance de quadrilha, com trios de forró tocando.
Essa questão regional, eu definitivamente vivi e convivi muito com isso. A música do Jackson do Pandeiro foi muito importante. Ele era grande defensor da onda rítmica, com uma abordagem própria na divisão… O trabalho dele é muito rico, também nesse aspecto e muitos músicos de Jazz piram na obra dele.
Ele construiu a rítmica do nosso Forró, justamente por que ele tocava um tipo de Forró Côco e a galera que busca entender isso, bom, precisa nascer lá. Isso é algo que vem junto, na alma, mas pra entender é importante volta nesse tempo pra ouvir os ritmos regionais, entende? O Cavalo Marinho de Pernambuco, enfim, a cultura de cada estado no nordeste envolve diversos ritmos riquíssimos e isso ajuda você a desenvolver algo diferente, não tocando só Jazz, com licks de frases prontas.
A questão é o que faz parte da melodia, o que é mais rico é a rítmica, justamente pra improvisar e não ser aquela coisa só de semicolcheia, né? Aquele música reta. A música nordestina traz muito disso, até como descendência da música africana, como é o caso da música baiana.
Falando sobre música popular, você lançou um disco com o Hamilton de Holanda (“Canto de Praya”) e eu queria saber um pouco mais dessa gravação. Eu entrevistei o Hamilton e ele comentou que foi a primeira vez que vocês tocaram juntos e o disco é tão bonito que parece um projeto que vocês já vinham fazendo. Como foi esse processo de escolher o repertório e tocar em duo?
O projeto era o Canto de Praya e a cerveja bancou as coisas, mas como o Hamilton mora no Rio e eu em São Paulo, a gente bateu o repertório à distância mesmo, mas sem definir nada em termos de arranjo.
A ideia era trazer uma roupagem de solista, mas eu cheguei no Rio e foi a primeira vez que tocamos assim, em duo. Quando estava lá, nós só tivemos o tempo pra passar o som – que foi meio que um ensaio – e depois já era hora de gravar.
Eu fui tocando, ele foi sentindo, acompanhando… Os arranjos que saíram ali foi tudo na hora, a gente definiu mais os ritmos, mas saímos tocando. Tocar ao lado do Hamilton é uma honra, ele é um cara fantástico que saiu de Brasília pra vencer e hoje é um dos maiores.
Ele tem o mesmo objetivo que eu na música, evoluir e isso é muito bom. Não existe aquela coisa de: “nunca toquei nesse gênero, o que eu vou fazer?” É isso que eu quero e é disso que gosto, vou me jogar nessa fogueira, sempre gostei do desafio.
No começo da minha carreira, alguns amigos que tinham mais conhecimento me chamavam e eu nem sabia o que estava rolando, mas eu já ia pegando a harmonia e na segunda parte da já estava solando. Meu maior talento é o ouvido, eu não sou muito de partitura, chegava na roda, na primeira parte já pegava a harmonia e na segunda chegava improvisando.
Eu gravei com o Jair Rodrigues e o produtor dele falou: “pega essa partitura aí” e eu com vergonha de falar que não sabia ler, mas fui lá e peguei a partitura. Logo depois ele falou: “vamos ouvir uma vez aqui antes de gravar”. Isso aí foi a minha sorte.
Na hora de gravar eu já sai tocando, ai tinha um problema que o solo de sanfona estava escrito, mas na hora do solo do maestro eu meti um improviso, pois não sabia qual era o solo e fui pedir desculpa pra ele depois.
Foi engraçado por que eu falei que era um solo escrito e tal e como eu não conseguia ler, acabei improvisando, mas ele disse que o improviso estava lindo e o meu ficou valendo.
Eu não sou de coisa muita pronta, mas se precisar fazer um show com orquestra eu peço as partituras ao maestro, tudo junto com os áudios pra ouvir e decorar. Foi isso que eu fiz na primeira vez que fui tocar com o Gil. Ouvi o show todo e fui tocar sem partitura, que é como eu gosto de fazer.
Mestrinho, queria que você tecesse um panorama, dessa vez abordando a questão da riqueza de possibilidades que o acordeon possui. Quais são os horizontes possíveis e como você faz tudo se conversar na sua abordagem?
Ele é um instrumento universal, cabe em qualquer estilo. É muito amplo. Eu vou conhecendo um pouquinho dele a cada dia… É um instrumento complexo e sempre tem algo pra descobrir. São muitas possibilidades, tem o lance dos baixos que servem como acompanhamento do teclado, registro no baixo pra solar com o teclado…
É o loop station raiz
Exato, ele tem a possibilidade de criar acorde pra mão direita solar, os timbres são sutis, leves, não é a mesma coisa com o pianista, por que não é igual tocar piano e ir pra sanfona. Precisa ter sensibilidade pra encaixar e o instrumento exige que você toque com beleza, ou você toca bonito ou não toca, é muito delicado. Depois que eu conheci o Dominguinhos, mudei completamente a minha cabeça.
O acordeon é a extensão do seu corpo e sua alma precisa estar à frente de qualquer técnica, ele exige isso de você, então eu acredito que ele precise ser tratado com carinho. Não pode puxar com muita força, ele distorce, mas também não pode tocar fraco por que precisa de presença.
É importante saber equilibrar e ele cabe em todo lugar, é só questão de saber chegar. Pra compor é maravilhoso, os timbres graves, agudos, enfim, você pode fazer show solo, dá pra fazer parecer uma orquestra, o único problema é que ainda é um instrumento pouco popular.
Não tem o mesmo valor de um baixo, guitarra e violão… Precisa ser mais popularizado, chegar nas escolas e sobre o processo de aprendizado que você citou, eu confesso que nem lembro tanto. Quando vi já estava tocando.
Pra fechar, Mestrinho queria que você mapeasse seus próximos lançamentos e falasse sobre como tem sido produzir nesse momento. Vi que além dos singles e fulls você ainda fez lives com caras como o Gil, por exemplo e como a música não pode parar, gostaria de pegar sua impressão desse período inédito que estamos vivemos.
É muito difícil para o musico viver esse momento. A gente tá costumado com o calor do público, tocar por ai, ver os amigos, encontrar e tocar com eles, enfim, a gente precisou se adaptar. Eu tenho home studio e como estava de quarentena produzi sozinho, fazendo live, ligando aplicativo pra ter mais de uma câmera… Foi uma questão de estudar e ligar tudo pra fazer funcionar.
No começo foi mais difícil, mas acabou sendo bom pra mim, até pra aprender a masterizar, mixar, pensando sempre na qualidade do som pra galera, pra poder transmitir bem. Eu quero emocionar as pessoas, precisa de qualidade no som, por isso, nesse período eu estudei bastante pra conseguir continuar fazendo meu trabalho da melhor maneira possível.
Todo dia eu acordava e já começava a estudar, seguindo vários caminhos… Eu gravei 4 singles antes da pandemia e já deixei gravado pra ir lançando, mas com o isolamento eu soltei 2 já. São 2 xotes. O primeiro é “Eu e Você” e o outro chama “Seu Olhar não Mente”. Lancei isso, pensando na carreira como cantor. Como instrumentista eu fiz um disco com várias músicas.
Nesse caso eu não pensei muito em single e fiz logo o disco todo. Acho que serão 16 faixas. Fiz aqui em casa mesmo, tudo instrumental e solo. Eu mesmo gravei com os microfones, sanfona, fiz um cenário, chamei uma amiga pra filmar…
Massa, legal essa atenção sua pra registrar esse processo todo.
Exatamente, acabou que vai ser um disco audiovisual, até pra retratar o processo como você mencionou. Esse disco só tem composições que fiz na pandemia. Acho que se eu fosse gravar um disco com tudo que eu fiz não caberia, mas eu escolhi as 16 e vou lançar. No momento, estou terminando de editar. Tem Jazz, Choro, Forró e como eu estudei bastante, pude explorar mais coisas no acordeon.
O disco vai se chamar… Bom, eu ainda estou com um pouco de dúvida, confesso. Estou entre 2 nomes “O Caos e a Solidão” e “Solitude”, por que as músicas que eu fiz não tem nome, é tudo Solitude I, II, III, enfim, ai esse eu vou soltar em breve. Tem uma faixa cantada chamada “Navegando Juntos”, então assim que finalizar a edição eu já vou preparar mais esse lançamento pra galera.
– Masterclass de Forró: uma entrevista com Mestrinho do Acordeon
Por Guilherme Espir