Hip-Hop Com Dendê, Um documentário redimensionado! Filme das diretoras Fabíola Aquino e Lilian Machado é um registro precioso
“Rap Nordestino não precisa de avalista” (Afrogueto)
O documentário Hip-Hop com Dendê (2005) dirigido pelas então estudantes de jornalismo Fabíola Aquino e Lilian Machado apresenta a cidade de Salvador como pólo de produção do movimento Hip-Hop. Tomando como ponto de partida o show do rapper carioca MV Bill, as diretoras partem para uma investigação sobre o hip hop em sua terra.
A camêra investiga e apresenta os 5 elementos do Hip Hop Baiano tomando como pressuposto essencial uma das certeiras falas do saudoso sociólogo Gey Espinheira, daí a ideia do hip hop com tempero próprio, Hip-Hop com Dênde. Essa produção ocorre nas áreas periféricas da cidade, mostrando essas áreas como centros de produção e difusão de um nicho musical marginalizado naquela altura, mas inventivo, resistente e organizado.
O problema do processo de marginalização é demonstrado no doc e abordado pelo jornalista Mario Sartorello, que diagnostica a exclusão praticada pela grande mídia naquela época. Incapaz de absorver uma linguagem e estética que está afastada do que se entendia como cultura erudita e ao mesmo tempo daquilo que se entende por “boa cultura” popular. Ali, pelo começo dos anos 2000, o rap não era nem considerado como música no Brasil, por uma forte parcela da nossa “crítica especializada”. Assim, o movimento hip-hop baiano logo cedo se caracteriza enquanto uma música de negros para negros nos guetos de Salvador. Fato esse que inclusive serviu de entrave inicial para o contato das diretoras com a cena local, contando naquele momento com a força do grande DJ Branco para que as diretoras acessassem os espaços e os protagonistas da cena.
O filme se mostra como um registro precioso de um dos momentos mais prolíficos do hip hop com dendê. Apresentando a clássica classificação da cultura formada por Dj, Break, Grafite e Mc e entrevistando protagonistas que expressam na sua essência a criticidade de uma realidade vivida e sentida por quem mora nessas áreas periféricas. Figuras como MC Jack (TKG – Tema Gerado do Kaos) DJ Bandido, Negro Davi (naquela momento o jovem MC Preto), Lázaro Erê (Opanijé), MC Moacir entre outros, falam sobre a cultura hip hop e as câmeras também focam nas práticas e manifestações pela cidade.
Hip-Hop com Dendê pelo mundo e hoje
O filme foi apresentado em diversos festivais de cinema nacionais e chegou a ter exibições no exterior em cidades como Nova York e Paris. Um registro que nos mostra a força e uma parte das bases da cultura hip hop com dendê e ao mesmo tempo, é uma porta de entrada para a obra da documentárista de mão cheia: Fabíola Aquino. Após esse trabalho de conclusão de curso, a hoje sócia diretora da Obá Cacauê Produções já possui larga filmografia da qual tivemos a oportunidade de conferir os excelentes Samba Junino – de Porta em Porta e Água de Meninos – A Feira do Cinema Novo.
Redimensionar o documentário Hip Hop com Dendê é sobretudo observar a passagem do tempo e seus desdobramentos. Em 2005, o ano de lançamento do filme, o grupo Afrogueto também ganhava o prêmio Hutuz, inclusive são deles as duas músicas de grupo local presentes no filme. Os eventos filmados, contam com um legítimo exemplar de apresentação na rua, onde o MC Afro Jhow é flagrado primeiro mandando um free na orelha de um mano, e depois num palco improvisado numa escadaria. Existem cenas de break sendo feito na rua, o DJ Bandido fala da importância fundadora dos DJs para a cultura hip hop e ao mesmo tempo salienta que o primeiro elemento a ganhar força em Salvador foi o break. Tudo isso, se configura numa aula fundamental às novas gerações.
Ora, se hoje muita coisa mudou no cenário baiano, algumas coisas tem se perdido e duas delas são exatamente a participação de DJ’s e breakers, BBoys e BGirls na cena, em termos mercadológicos. É importante perceber como naquele momento, onde a cultura e a arte eram mais militantes e composta fundamentalmente por esses elementos, vem hoje seguindo uma tendência nacional, onde esses dois elementos estão cada vez mais distantes do que está em voga para o mercado e o consumo.
Outro ponto fundamental é a importância que naquela altura tinham, os zines e as rádios comunitárias para a constituição do quinto elemento: o conhecimento. Tendo como aparelho de transmissão da cultura as mídias alternativas, hoje Salvador conta com dois sites que cobrem a cena do hip hop local, nós do Oganpazan e o Rap 071, onde inclusive possui uma excelente entrevista com as diretoras. Naquela altura, o Bocada Forte era o site que abria espaço para correspondentes locais (Sereno Loquaz e Rangell Santana) e se fazia também com jornais impressos, zines ou através da oralidade (ferramenta principal de comunicação).
Alguns atores do cenário nacional àquela altura não tinham como objetivo inserisse nos meios de comunicação tradicionais, pois temiam que adequar seu discurso político às exigências do mercado consumidor, fosse algo danoso. Acreditando na transmissão de seus ideais político-ideológicos de modo mais direto para a população promovendo acesso a cultura pelas vias independentes. Hoje, o cenário parece apontar para uma despolitização e para a produção de um rap sem vínculo com a cultura hip hop, ainda que não aja pleno acesso dos artistas locais a veículos de massa, como rádio e tv.
Em 2005 como bem flagrado pelas diretoras, o discurso essencialmente politizado do movimento tornava-se ferramenta para outros discursos de movimentos sociais, como é o caso do Movimento Negro Unificado, que percebe através da cultura do hip-hop um aparelho difusor de idéias para a luta dos negros, principalmente por tratar-se de uma música produzida majoritariamente por negros. Hoje, apesar de uma pluralidade maior em termos discursivos, muitas das ideias de base se mantém, porém no underground.
Desafios de ontem e de hoje
É necessário ressaltar que a fala do DJ Bandido sobre a importância do Dj enquanto precursor do movimento hip-hop, hoje precisa ser redimensionada. Na medida em que foi perdendo espaço para o Mc, que adquiriu importância devido a letra (música falada), um outro ator entrou em cena: o beatmaker. Esse, não discoteca, porém produz música também, e hoje percebemos a grande maioria dos MC’S se apresentarem via pen drive, mesmo que exista um DJ no palco. O rap deixa de importar-se mais com a sonoridade eletrônica produzida pelo Dj, focando-se mais nas letras produzidas pelos MC’s.
Outro fator que não pode ser esquecido é a completa ausência de mulheres nesse filme. Desde o primeiro momento, as mulheres estiveram presentes na formulação desse movimento que desde o seu início foi um reflexo da sociedade machista em que surgiu e se desenvolveu. Hoje, há uma retomada da importância das mulheres na construção da cultura hip hop com dendê e mundial. Vale aqui indicar, o excelente trabalho que tem sido feito via instagram pela ex-MC Aline Negríndia, que tem produzido lives em seu perfil nessa rede, convidando mulheres fundamentais para a história do Hip Hop com Dendê.
Portanto, é fundamental acessar esse registro para repensarmos o hip-hop de modo geral e o hip hop com dendê de modo particular. Hoje, só aparentemente as coisas mudaram, permanecem velhos problemas e vícios sejam da estrutura da música, seja do mercado musical. Discutir a visibilidade de uma população (e das minorias) que ficam silenciadas nas zonas periféricas dos centros urbanos, que através da música, da arte e da dança busca retratar sua realidade urbanóide e excluída pelo sistema político. Que se mantém de pé hoje, ainda com suas contradições, com mudanças e permanências do que foi muito bem retratado no filme em questão. Com a explosão da Internet e comparando com o tempo retratado pelo filme, talvez tenhamos a impressão de que houveram melhorias, porém os likes, views oportunizam inserção até a página 2.
Em tempos onde o mercado se apropria, exclui e ilude a cultura hip hop como recentemente apontamos em texto (aqui), é necessário redimensionar o passado, através de processo crítico e informativo. Nesse sentido, o Hip-Hop com Dendê (2005) é peça fundamental, apesar de curta, pois nos aponta a força e as contradições, precariedades e criatividade daqueles já longínquos anos. Nos mostra, quem tava lá e permance, quem se afastou e quem segue na luta, nos da a conhecer a história e sua dialética, registra e projeta.
-Hip-Hop Com Dendê, Um documentário redimensionado!
Por Alan Felix & Danilo Cruz