Três nomes genuínos no rap, pipocam de norte a sul do país: Pacha Ana, Brrioni e Teagacê. É preciso que o público esteja ligado nessas produções e abram perspectivas e ouvidos!
Ver um artista como Kamau dizer que se considera um peão colocando tijolo por tijolo para construir sua obra, como acabamos de ver no maravilhoso canal O Fino da Zica, é uma verdadeira inspiração que coaduna com tudo que acreditamos. Não gostamos de nos ver como Don Quixote De La Mancha lutando contra moinhos de vento. Apesar de muitas vezes estar nesse caminho, assumindo essa batalha inglória. Escrever sobre música no Brasil hoje, produzindo conteúdo original – bom ou ruim – mas mais especificamente sobre rap, é um desafio hercúleo.
O mainstream, os números, a falta de tempo, a ignorância de um mundo que hoje está cada vez mais voltado às próprias timelines, como espelhos de uma subjetividade controlada, é um desafio. Gostamos de fazer matérias reunindo lançamentos, ou artistas sob a perspectiva de um tema comum, por um motivo simples: é uma forma de reunir.
Artistas, cada um no seu corre sendo noticiados individualmente, nos parece, apenas afasta o que deveria estar junto quando falamos em visibilizar quem ainda não possui um público consolidado, que no Brasil é talvez 80% da cena. Entendemos que o público de certos atores e atrizes da cena, poderiam fortalecer suas predileções, ao consumir e divulgar outros correlatos, pois somente assim, seria possível pensar num mercado que absorvesse com dignidade os que não estão sob os holofotes de modo individualizado.
Reunimos assim, aqui nessa matéria, três artistas de três lugares distintos do país, com estilos e trampos diferentes, para dar o gostinho àqueles que se permitirem, do que estão perdendo ao serem fãs de artistas e não da cultura. Flagra!
Uma rapper que vem de uma cena inóspita para o rap, mas que talvez por isso mesmo, carregue através de um aprofundamento na cultura hip hop e por extensão em sua própria ancestralidade uma força ética e política muito grande. Pacha Ana consegue em sua obra plasmar esteticamente a luta feminina e negra, a resistência periférica fruto do hip hop, em ritmo e poesia com uma qualidade muito própria e singular.
Estamos sempre em busca dessas expressões e desses artistas que não estão recebendo a devida atenção do público, porque entendemos que é isso que oxigena a cultura. O sistema do mainstream tal como está dado no Brasil, é danoso e nocivo pois estrangula outros cenários e outras expressões que fujam do padrão eleito naquele momento.
Neste single retirado do seu brilhante disco de estreia: Omo Oyá (2018) lançado no ano passado, a rapper mato grossense nos mostra mais uma vez, a força de seu trabalho com a arte. Rimando com um flow firme em cima do boom bap produzido pelo BlackBoxBeat, a mana toca num ponto nevrálgico para uma ética negra hoje. O auto cuidado, que deve ser fruto do reconhecimento de si mesma como sujeito histórico fruto de uma sociedade racista.
O videoclipe dirigido por Matheus Ferreira da 13films com uma bonita fotografia da Ariana Santana e roteiro da dupla aí junto a Pacha Ana, vai nos dando a ver esse processo de construção de uma consciência de si. Do entendimento dos processos sociais e históricos que atravessam nossos corpos negros em uma trama complexa de elementos capazes de nos levar ao auto-ódio.
Assim como todo o disco da Pacha Ana, esse videoclipe é uma pequena peça de uma obra grandiosa, e como tal guarda em si uma série de camadas que valeriam um artigo por si só, recomendamos, que vão assistam e pensem, sintam e observem uma artista que precisa ser mais escutada e vista!
Sobre visibilidade de mulheres negras na cena do rap nacional, a jovem Brrioni de apenas 17 anos diretamente da Zona Sul de São Paulo, com essa sua estréia em videoclipe já poderia cancelar qualquer discussão. Tá tudo aqui, numa mistura forte pra caralho de referências políticas, com aquele frescor e iconoclastia própria de uma rapper jovem preta e que se entende como na famosa frase do Emicida: Deus é uma mulher preta.
Como tal ela chega com um single muito pesado, emanando uma certeza que nos pega de primeira, e uma qualidade nas ideias, no flow, no beat, no visual que é irresistível. Se entender divina tá muito além de qualquer elemento lacrativo, é uma constituição politica e ética quem tem empoderado muitas mulheres negras em nosso país. Para além do mercado, há ao ouvir essa jovem a certeza que apesar de todos os retrocessos, existe um processo subterrâneo atravessando milhares, talvez milhões de mulheres negras nesse país.
A violência dos versos da Brrioni são didáticos para entendermos processos de apagamento de mulheres negras não apenas no rap. Com uma caneta super ácida, ela corrói desde o racismo que busca a visibilização de mulheres brancas em todas as áreas, em especial nas artes, até o machismo presente no vocabulário comum, e que ela subverte pra mostrar nossas hipocrisías e preconceitos. O beat trap pesado é do Vinex e o clipe onde ela aparece mega afrontosa é da Underground Filmes.
Esperar que os cuzão pegue a visão desse peso achamos difícil mas precisamos aprender com os excelentes apontamentos que essa mina faz aqui, e com certeza precisamos dar maior visibilidade a tamanha estréia! Pode deixar maninha, que vou mostrar para todas as minhas estudantes!
Diretamente do Rio Grande do Norte, Teagacê tem produzido como uma usina fora de controle e que na medida em que aumenta a produção sobe o controle de qualidade de suas produções. Extremamente talentoso, o rapper teve seu talento reconhecido por uma das figuras chaves do rap nacional, o grande DJ Caíque. Produtor e DJ que encarna em seu trabalho toda a ética e a política que a cultura hip hop preza.
Responsável pelo grandioso projeto Coligações Expressivas, atualmente com Volume 5 em andamento , o artista chegou numa produção super bonita onde o Teagacê aplicou sua lírica e flow pelos quais tem se tornado conhecido no Brasil. O rapper potiguar é daqueles seres que cultivam a linguagem buscando esmerar cada vez mais as imagens poéticas que produz.
Em Reis (prod. DJ Caíque), uma das coisas que mais nos tocaram nessa poética que o Teagacê nos apresenta, é um misto de melancolia (muito por conta do beat), a firmeza de um homem consciente do seu lugar e sobretudo essa luta constante que esse Mc tem travado por se fazer ver. Estamos diante quase que de um grito suave, um desespero direcionado e calmo, uma angústia sendo transmutada em música. Com um trampo cada vez mais sólido Teagacê lançou no ano passado dezenas e mais dezenas de singles e lançou o excelente Okê Arô (2018), ou seja não é falta de trabalho, e como já ressaltamos não é falta de qualidade que justifica você não sacar esse mano.
Aqui estamos diante de um perfeito exemplo de quem está na batalha há anos em sua cidade, ajudando a construir a cena hip hop local como muitos, que tem realmente algo a dizer e muita qualidade de emissão, mas que o mercado, invisibiliza. Como diz o jargão atual, os públicos locais e nacionais, precisam ampliar seus horizontes de percepção, pois apenas assim o mercado poderá entender a necessidade de dignizar esses artistas.
Da mesma sorte, os artistas precisam valorizar as mídias que trabalham pra cultura, não aquelas que lhes chupam quando eles possuem números para ofertar, imaginamos que deve dar aquela coceirinha gostosa quando grandes portais os procuram, mas não é preciso esquecer a cultura hip hop e seus veículos. Ainda nessa linha, o público do rap, que se arvora muito de serem críticos precisam descobrir os canais de youtube que valem realmente a pena, assim como os sites da cultura!