Só existe um Deus, ele veio a nós há 51 anos e presenteou a humanidade com Sua Palavra e o mundo explodiu em intensa sonoridade! Hendrix está no meio de nós, sempre!
Considero-me ateu, um cético aborrecido, mau humorado, por vezes pessimista. Não acredito em nenhum tipo de verdade absoluta, sou completamente desprovido de qualquer vestígio de religiosidade. Tudo em minha vida é profano. Sou flexível, esforço-me para ser um bom ouvinte, tento entender o ponto de vista de meus interlocutores, por mais que descorde deles, faço esse exercício diariamente, por mais que acabe fracassando. Abomino qualquer postura dogmática, procuro combater esse tipo de postura, assumo esse ethos.
Não creio em um messias, não espero que alguém venha sanar meus problemas e me levar para o lugar das bem aventuranças. Não acredito em uma palavra divina, que irá revelar toda verdade da existência, não acredito na existência de uma obra sagrada onde Deus se materializa, não acredito em uma existência pós morte reservada para os bons e outra para os maus, não acredito em vida após a morte de nenhum tipo e me angustio profundamente por isso, não gosto das religiões monoteístas, me desagrada tudo que se apresenta como único e elimina todas as outras possibilidades. Desejo sempre estar rodeado pela diversidade em todas as esferas, música, artes plásticas, filosofia, amizades, amores …
Contraditoriamente, tudo isso desaparece, esqueço tudo isso, perco todos esses princípios amparados no ceticismo e ateísmo e torno-me a contradição em pessoa, e de cético me torno o mais dogmático dos seres, o mais religioso, fundamentalista, o crente mais fervoroso e amoroso, o seguidor mais humilde e passivo. Viro um pregador ardoroso, disposto a converter todos os pagãos, fazê-los conhecer a palavra, serem por ela consumidos e entrarem, assim como eu, em transe e vislumbrarem a verdade, a realidade do mundo que é a mais sublime sonoridade.
Ainda adolescente Deus, o único Deus surgiu para mim, materializado em distorções furiosas, em melodias trovejantes, em gritos e gestos que concentram em si a força de mil megatons. Um Deus vivo, sempre vivo, cuja palavra foi materializada em sua obra sagrada, apresentada a nós pobres mortais há 50 anos atrás. No mundo de nós mortais a palavra divina recebeu o título mundano: Are You Experienced?. Deus tocou dois homens comuns e lhes concedeu a honra de serem instrumentos de Sua Verdade. Deus encarnado adotou o nome Jimi Hendrix, seus apóstolos, convertidos instantaneamente ao entrarem em contato com Seu som, juntaram-se a Ele para espalhar Sua palavra a todos os seres do mundo. São Mitch Michell, louvadas sejam suas baquetas, São Noel Redding, louvado sejam as quatro cordas do maravilhoso baixo que empunhastes, por contribuírem para que a Palavra chegassem a todos. Louvados sejam por ajudarem a obra do Senhor, amém.
A verdade é uma só irmãos, “Hendrix is God!”, que os hereges que pixaram essa frase nos muros da sagrada Londres tentando cultuar falsos deuses tenham encontrado o verdadeiro Deus em seus tímpanos e corações. Pois jamais esqueçam irmãos, em um palco da sagrada Londres Deus em toda sua imensidão desbancou aquele falso deus e o colocou em seu lugar, naquele degrau abaixo onde todos os outros postulantes à Vaga estão.
Hendrix, o verdadeiro Deus, negro, em sua forma selvagem e maravilhosa, animado pelo blues contaminado pela eletricidade dos raios, veio para mudar o mundo através do som, viveu como um simples mortal e na sua trajetória mundana alcançou a divindade e mostrou aos seres humanos a sua grandiosidade. Enquanto esteve entre nós Deus se revelou, e cada ato de revelação foi único em toda sua glória.
Comemoramos em 2017 o jubileu do Velho Testamento, o Are You Experienced?. Que mundo tínhamos antes disso? Um mundo ainda alienado acerca das potencialidades da guitarra, um mundo que sentia, que intuitivamente vislumbrava haver algo além daquilo que chamavam realidade, algo a ser conhecido, mas que não se mostrava. Era preciso que Deus viesse, pegasse em nossas mãos e nos levasse à contemplação da Verdade.
Eis que surge Are You Experienced? e pela primeira vez vimos e ouvimos o que está por trás de tudo, a energia criadora em estado bruto, as erupções que geram o tesão, as revoluções, as paixões, os terremotos, tsunamis, o caos que se alterna com o cosmos, uma ininterrupta experiência de prazer e criação! Oh Senhor, como é linda sua Verdade!
O pessimismo acaba quando O encontramos. Diante da Palavra, de Seu som, só há júbilo, uma vontade incontrolável de nos movimentarmos, de acreditar que a vida é uma felicidade sem fim, basta dar o play na Palavra e deixar Deus invadir nossos corações!
Antes de falar de Are You Experienced? precisamos entender os passos dados por Hendrix rumo à sua concretização. Então vamos até sua chegada em Londres na manhã do dia 24 de setembro de 1966, data marcante para a realização desse álbum e consequentemente para a história da música do século XX. Isso porque em seu país natal, Hendrix não lograra alcançar as condições necessárias para a gestação e futuro lançamento do que viria a ser seu primeiro álbum.
Antes de ir para Londres Hendrix estava à deriva em Nova York, tocando em pequenos clubes e bares do Village. Sua originalidade como guitarrista aparecia em pequenos momentos de suas apresentações contidas, pois deviam soar como o público queria. Mal do qual padecem os músicos sedentos por expressarem suas ideias musicais, porém se veem cerceados pelas necessidades matérias que não podem esperar que alcancem o sucesso para daí poderem ser livres artisticamente.
Contudo, estar nessa situação permitiu que a guinada na carreira de Hendrix ocorresse. Linda Keith vinha sacando o guitarrista a várias noites e conseguiu perceber que havia algo incomum em Hendrix. Aproximou-se dele, teceu críticas sobre seu som, incentivou-o a buscar voos mais altos, inclusive sugerindo que passasse a cantar e não se ater apenas em tocar sua guitarra. Santifica seja Linda Keith por sua sensibilidade musical!!
Linda o apresentou a Chas Chandler, ex baixista dos Animals, que começava uma carreira de empresário musical. Em Londres, sob orientação de Chas Chandler, O guitarrista foi bem auxiliado e pôde encontrar os músicos perfeitos para ajuda-lo a construir sua sonoridade. Chas encarregou-se de fazer o nome de Hendrix ficar conhecido na cena londrina. Levou-o ao London´s Regent Street Polytechnic College onde o Cream se apresentaria no dia 01 de outubro de 1966. Neste show Hendrix subiu ao palco para uma jam com a banda mais quente de Londres no momento e a partir de então a frase “Clapton is God”, pixada nos muros de Londres, perdera completamente o sentido. Um falso Deus fora desmascarado naquele instante diante de uma plateia exigente e bem grande.
Hendrix, há poucos meses em Londres, já gozava de fama entre músicos e fans, despertava respeito, inveja e admiração. As gravadoras começavam a crescer o olhos sobre essa nova e brilhante joia, que mostrava todo seu potencial comercial. Seu primeiro registro, um compacto que trazia Hey Joe e Stone Free, lançado pela Polydor/ Londres foio lançado em 16 de dezembro de 1966 apresentava ao mundo o som carregado de peso, grande e estrondoso do The Jimi Hendrix Experienced. O sucesso foi instantâneo. Foram agendados shows na França e na Alemanha, antes, havia percorrido toda Grã Bretanha e feito sua estreia na TV inglesa, cuja apresentação foi ilustrada com pinceladas sonoras que indicava os sinais da vinda de Purple Haze. A estrada rumo ao Are You Experienced? estava sendo pavimentada em velocidade incrível.
Em janeiro de 1967, Hendrix concedeu entrevista para o jovem estudante Steve Baker. Pela primeira vez Hendrix falava sobre suas composições, sobre a construção de seu primeiro álbum e mostrara a alguém e fora do seu círculo pessoal a respeito das faixas que o comporiam. Nessa entrevista Hendrix fala sobre a inspiração no blues, a influência dos grandes nomes do gênero, em particular Elmore James, Muddy Waters e Robert Johnson, em sua música. Nesse sentido, a saída de Seattle rumo ao sul foi marcante para Hendrix, pois foi no Sul dos EUA que teve contato com o blues que lhe daria os elementos usados na formação de sua estética sonora.
Nesse momento Hendrix possuía um grande número de músicas inacabadas, segundo o guitarrista faltava um estímulo que levasse à concretização delas e isso parecia estar começando a rolar, pois havia adquirido confiança, elemento que faltava para leva-lo a finalizá-las.
Na entrevista com Steve Barker Hendrix diz que seu álbum de estreia será todo ele formado por músicas originais, porém sinaliza para a intenção de acrescentar “Like A Rolling Stones” do Dylan no set list, porém, só ouviríamos a versão de Hendrix dessa música em sua apresentação no Filmore East Pop Music Festival meses antes do lançamento do Are You Experienced?.
O álbum levou a sonoridade lisérgica a outro nível acrescentando elementos sonoros mais intensos, riffs sujos, envenenados por efeitos de reverberação densa, imprimindo densidade e peso à sonoridade do álbum como um todo. Ao mesmo tempo alcança tonalidades leves, gerando contraste entre as músicas, dando a esta mistura sabores diversificados.
Mesmo nas baladas, percebemos certa agressividade, mais contida em relação às faixas de sonoridade selvagem, contudo um elemento sempre presente. Caso nos demos ao trabalho de ouvir atentamente, separando partes de músicas como I Don´t Live Today veremos elementos de muitas vertentes musicais que influenciaram Hendrix. Há riffs extremamente pesados, sinalizando para o que anos depois viria a ser o metal, até dedilhados leves, criando uma atmosfera intimista, psicodélica, bem aconchegante, quebrada pelos barulhos distorcidos e caóticos de quem busca mostrar ao mundo sons ainda desconhecidos por nós.
The Winds Cry Mary, lança-nos em uma pegada soul, mas vislumbrada apenas de passagem já que há o toque hendixiano nos fazendo considerar se tratar algo que lembra o soul, mas que não é soul. Third Stone From The Sun e Are You Experienced? são mergulhos de cabeça na lisergia, contudo amparada por bases de blues concebidas por Hendrix para serem uma base de sustentação de peso extremo, gerando um diferencial para a enxurrada de bandas psicodélicas que inundou os anos 60.
Hendrix claramente dera inúmeros passos em direção a um novo território, pioneiro, desbravador de novas tensões sonoras, criador de sonoridades através de experimentos com a guitarra que o levou a desenvolver novas técnicas, novos recursos que aumentaram significativamente o alcance sonoro da guitarra. Foram inúmeros experimentos com distorções, ecos, tons, timbres e efeitos, responsáveis por redefinir o papel da guitarra e consequentemente o que seria o rock a partir de então.
*Para entender melhor a contribuição técnica de Hendrix para o rock e o estudo da guitarra sugiro a leitura desse artigo.