Os cães ladram e a Caravana de Dão não para!

Com mais de Dão 115 anos na correria do groove, Dão e A Caravana Black seguem produzindo uma música inteligente e cheia de balanço.

Dão & sua Caravana Black é uma figura em que nosso coração fica meio sem jeito de falar, porque daquilo que nutrimos uma admiração sincera precisamos praticar, tanto a fala quanto o silêncio.

Porém, em se tratando desse artista é preciso que se fale um pouco mais. Pois a crítica musical do nosso país deveria se envergonhar de manter tanto silêncio sobre este cantor e compositor que há muitos anos vem produzindo um trabalho inovador. Ao invés de querer controlar o que é o bom e o mal gosto, deveria seguir pesquisando melhor os grandes artistas. Afinal, de tudo o que foi e está sendo feito na música black no Brasil nos últimos 10 anos, ele é com certeza um dos mestres contemporâneos, sinônimo de qualidade, irreverência, experimentação e novidade pop.

Poderíamos perder nossas forças com uma postura reativa de controle e tentar estabelecer uma régua com pretensões universais. Mas não, estimamos muito a liberdade e o nosso tempo, por isso só nos debruçamos sobre nossas alegrias e com certeza toda a obra de Dão é alegria e beleza garantidas. Das coisas feias, apenas viramos o rosto.

De sua estreia até o momento atual a caravana black não parou, seguindo firme com suas convicções artísticas, construindo um público fiel ao longo desses anos, dando rolês em pelo menos três continentes diferentes. Agora modificada para um power trio, Dão e a sua caravana black buscam novos caminhos. Essa caravana possui uma longa história na música baiana e brasileira desde que estreou profissionalmente no mercado da música. Mas vamos começar pelo começo.

Eu procurava me aprofundar no samba rock, apaixonado que estava depois de ouvir uma caixa inteira do Jorge Ben. Busquei seu primeiro disco Samba Esquema Novo e ganhei de brinde aulas maravilhosas sobre a música negra brasileira. Sim, Dão Anderson, o homem, trabalhava numa loja de discos no Rio Vermelho, e chegando por lá pra buscar o disco encomendado, o encontrei. Logo após as apresentações, a empatia se criou e numa segunda visita já fui presenteado com uma cópia em CD-R (raríssima naquela altura) do álbum Tim Maia Racional Vol. 1. Também recebi como indicação o recém-relançado disco do mestre supremo Di Melo.

Algumas cervejas depois no largo da Mariquita, a revelação que me conquistaria para o resto da vida: “vou tocar na sexta feira, apareça por lá”. E eu apareci, num bar que era praticamente um corredor onde ao final cabiam a bateria e a percussão, junto com o baixo, a guitarra e na frente o capitão dessa caravana black: Dão, o artista. Ainda lembro da forte impressão que aquela apresentação modesta me deixou. Eu, jovem neófito nos caminhos da black music brasileira, fui esmagado por uma versão matadora de Não Vou Ficar do Tim Maia, tocada pelo guitarrista de então, como uma música do Black Sabbath, pesadão no riff onde se marca o refrão, tudo isso sem perder o groove.

E foi somente na passagem dos anos que pude compreender que as aulas e a apresentação estavam profundamente ligadas. Eram como que as duas faces que se unificavam no homem artista. Sempre generoso, de sorriso largo, astuto e crítico de uma leveza terrível. Gastador, pesquisador inveterado da nossa música, resistente artista que segue desde antes de 2001 (quando eu o conheci) batalhando no mercado pouco justo da música. Porém, possui o terrível defeito de torcer para o Vice, mas perdoamos esse deslize, afinal ninguém é perfeito.

Em seu trabalho musical Dão destaca-se por conseguir incorporar tradições ancestrais, símbolos da luta antirracista, mesclando elementos musicais da nossa música negra a partir de uma perspectiva ampla que abraça praticamente todas as expressões da Diáspora (ou pelo menos as mais evidentes), capaz de unir o samba reggae e o funk, o reggae e o soul. Tudo isso com uma naturalidade e uma versatilidade impressionantes. Cantor e compositor de mão cheia e portador zeloso do molho de chaves que abrem todas essas portas com o carinho de quem sabe poder pousar com tranquilidade em quaisquer dessas casas. Poeticamente o negão habita groovando sempre nos mais diversos ritmos. Não é exagero algum dizermos que faz algum tempo que Dão produz uma das obras musicais mais relevantes no nosso país.

Com mais de 15 anos de carreira, um EP e dois discos cheios, seu trabalho é uma coleção maravilhosa de músicas fortes, de poesia engajada, arranjos dançantes tudo na chave do groove. Já no seu EP de estreia, Ligue o Som e Curta o Brilho (2005) ficava muito claro a qualidade e originalidade do poeta que o abria com o clássico groove de Saravaquelé. Uma linda composição em homenagem à nossa matriarca Clementina de Jesus. O baixo seguro, de molejo límpido de Almir Azevedo aparecia e abrilhantava Saudade Daquela Batucada, música suave que reflete o quanto a falta de poesia na quebrada é rapidamente substituída pela falta de ritmo das armas.

Enquanto Márcio Pereira (um dos melhores guitarristas que acompanharam o poeta ao longo de sua carreira) brocava um riff rocker no grande sucesso Chega De Tanta Tristeza. Música muito, mas muito forte, que infelizmente não apareceu mais em nenhum dos registros lançados após o EP, mas que eu particularmente curti bastante em muitos shows onde a regra até hoje é “ligue o som e curta o brilho”.

No seu primeiro disco cheio, Para Embelzar a Noite (2009) o artista cumpre o prometido, abrindo os caminhos num swingue latino misturado ao quilombola soul que é característico do músico. Violão, percussão afiada e teclados bem colocados, o acréscimo de metais suaves, e o clima romântico esta no ar: “Porque você não vem, para embelezar a noite?”

Em seguida o mega groove de uma música daquelas que quando toca, os movimentos corporais são involuntários: Quilombola Soul. E esses movimentos corporais involuntários encontram na poesia o complemento essencial que fortalece a nossa luta com força, beleza e alegria: “De longe mesmo você sente a força de negão / orgulho black permeado no meu coração / trago na alma reggae rock jazz samba soul / fortalecendo a luta black Quilombola soul.”

Um hino, papo reto, poesia em reverência a mãe África. Uma banda afiada, um entrosamento que transborda em nossos ouvidos fazendo o corpo dançar, a mente pensar, no melhor que a tradição nos ofertou e que Dão recebe, jogando pra frente. É de lá que veio e é pra lá que vamos, todos juntos dançando.

O disco inteiro é uma seleção digna dos canarinhos de 1970 no México, composto de modo a não fazer a peteca cair em hora nenhuma. Não Vai Dizer Que Vai Ficar De Fora Desse Samba ainda hoje quando tocada (passados seis anos de seu lançamento), transforma qualquer lugar no cenário de Soultrain. Precisa dizer mais alguma coisa? A regravação do clássico do bloco afro Muzenza, Brilho de Beleza, é um sinal do quanto o artista dialoga brilhantemente com nossa tradição atualizando esses elementos em roupagens novas. A música que no disco ganhou uma versão dub, é um dos maiores sucessos do bloco e já recebeu outras versões de nomes como Gal Costa e Margareth Menezes. Mas foi Dão quem a melhor gravou, pois nessa versão a leva espiritualmente de volta a sua terra natal: Jamaica.

Desacelera-se um pouco para uma breve momento sobre paixão, Um Simples Dizer, cheio de groove e evocando a melhor tradição nordestina dos sanfoneiros, xote funk simplesmente genial. Esses são apenas alguns exemplos do que você está perdendo se não conhece esse trabalho, atualmente fora de catálogo e já um item de colecionador.

Em seu último disco, o maravilhoso Nobre Balanço (2013) todas as qualidades explanadas acima se reafirmam, novas composições que repetem o que vem se construindo como o seu caminho primordial e estilo próprio: Quilombola Soul. Uma alma que resiste com a doçura a todas as agruras da vida, enfrentando as dificuldades com o suingue, a leveza, a inteligência que é a marca característica do nosso povo na diáspora. Dão é um fruto vistoso de toda a tradição negra, menino do IAPI, estudante de escola pública, que vive a vida como um dos grandes exemplares individuados do que somos capazes enquanto povo. Um povo que precisa ser criado, que não está pronto, mas que tem neste artista todas as características para a vitória.

Engajado sem ser chato, poético sem ser hermético, dançante sem alienação e sem comandos. O cantor e compositor abre mão de todo e qualquer clichê. Brasileiro sem se prender a regionalismos, mesmo cantando Batida do Ilê Aiyê a qualidade é a possibilidade de comunicação com o mundo. Tapete do Elevador Lacerda e Sambizanga, são outras das tantas paisagens subjetivas transformadas em som que o artista nos oferece generosamente. Ritmando, ele cria um território próprio ligando às diferenças, sem perder a tensão essencial. Seus pés podem estar na ladeira do Taboão ou nas praias de Luanda com a mesma tranquilidade.

A todos para quem eu mostrei esse discaço a reação era: “pooorrrrrraaa, quem é esse cara?” E isso me deixava obviamente puto. Pois no melhor dos meus mundos possíveis, os postes de luz soariam diuturnamente suas músicas. Brazuca Blackman até ás 8:00hs para esclarecer um pouquinho aquela turma indo pro trabalho. Café do Bom alcançariam nossos ouvidos assim que a saudade d@ amad@ nos assombrasse, e tudo ficaria muito mais suave. “Café do bom / banho de mar / fita de reggae / por do sol / porto da Barra”.

Na Sua, rapidamente tomaria as ruas assim que aquela gata linda passasse na rua arrancando olhares e suspiros dos admiradores e casaria perfeitamente com aquela autoconfiança e rebolando no caminhar que as musas tem. O balanço-homenagem Casa de Yemanjá ficaria no repeat em toda a orla da cidade para que tenhamos a proteção da rainha do mar. Finalzinho de tarde, aquela brisa batendo no rosto enquanto caminhamos com o coração partido, em direção a sei lá onde, talvez voltando pra casa, talvez indo tomar uma pra esquecer, seria abençoada com a deliciosa Toda Saída.

Mas essas são apenas as minhas opiniões, afetos e apreciações sobre o melhor dos mundos possíveis. Só existe um fato inexorável sobre tudo dito acima: você que aprecia boa música tem que correr atrás de conhecer o trabalho deste cabra. Pois os que o conhecem, acompanham todos os seus lançamentos e shows – que diga-se de passagem são verdadeiros cultos de confraternização, onde todos dançam muito se rendendo e balançando a toda essa maestria.

Ficamos no aguardo dos próximos lançamentos do artista que atualmente segue se apresentando nos mais diversos palcos da city e que estará no dia 07 de Novembro no palco do Teatro Vila Velha, aqui em Salvador.

Depois não diga que eu não lhe avisei!

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