Grandes singles do rap baiano #04

Grandes singles do rap baiano #04Contestação, rebelião e revolução, são características fortes nos últimos singles lançados no rap baiano, confiram essa seleção.

Esses grandes singles do rap baiano que separei mostram como é uma bobagem essa discussão sobre raps antigos serem melhores que os novos, ou vice-versa. Pensar que hoje não existe rap de “verdade”, só identificando como verdadeiro o rap de denúncia politica, é má-fé ou desinformação.

E por isso nosso tempo hoje no rap é tão fantástico, temos insistido nisso, a variedade de propostas e temáticas só engrandece e abre discussões importantíssimas que só fazem com que a cultura hip-hop ganhe. E o melhor de tudo, uma proposta não engole ou mata o espaço da outra. Somos filhos do passado, e a necessidade de beber da tradição não deve ser um empecilho para o crescimento.

Na real quem produz mesmo está aqui, fazendo acontecer, resistindo e colocando suas ideias pra fora em forma de arte. Para desmentir os preguiçosos selecionamos dessa vez uma sequência do que se pode chamar a fina flor do rap político, de contestação, que é produzido na Bahia.

Ministério Clanmor – Cidade Baixa Chora

Fundado em 2011 o Ministério Clanmor é formado por Rosivaldo Freitas, Preto Lucas, Pai Albano e Dj Sergião Kaiçara no comando das pick ups. Confesso que ainda não tinha tido a oportunidade de conhecer o trampo dos manos. Apesar deles já terem um disco lançado, Princípio de Dores (2015). Até que na 1º Mostra de Hip Hop do Pau Miúdo, pude ver algumas canções ao vivo, o que já me empolgou. Mas foi o single Cidade Baixa Chora (2016) que me mostrou a potência do trabalho dos caras.

E a minha impressão não poderia ser melhor. Agressiva e consciente, a música do Ministério Clanmor não decepciona aqueles que buscam expandir sua consciência política e social. Nessa faixa os manos mostram algumas das formas pelas quais muitos dos nossos jovens são levados para cova, enquanto as quebradas ficam a derramar lágrimas. Esse é o tema da música e infelizmente não poderia ser mais adequado.

Rosivaldo Freitas, morador do bairro da Massaranduba, a representa e defende, denunciando as mazelas que como em outras tantas favelas da nossa city, nos assolam cotidianamente. Fazendo com que siga-se lavando com lágrimas de mães, parentes e amigos, o sangue das perdas com as quais não se acostumam. A falta da presença do estado em forma de projetos e equipamentos de educação e lazer, que propiciem outros caminhos para nossas crianças e jovens é denunciada como um dos principais fatores para o genocídio em curso.

Para completar o peso mandado nessa faixa, Cidade Baixa Chora conta também com a participação do grupo Nois por Nois e Diego 157, ficando os backing vocals a cargo de Pai Albano. Participações que fortalecem esse grito de revolta que tenta nos alertar para quais devem ser nossas prioridades. A luta por uma educação de qualidade que traga perspectivas de futuro e progresso para quem só tem como realidade mais fácil as biqueiras pra trampar.

Apologic Mc’s – Cajazeiras El Dourado

Uma das perspectivas mais bonitas do hip-hop é a autovalorização de nossas quebradas, criação de um sentimento de pertença. Sentimento e consciência importantes para que se lute pela melhora da favela onde se habita. Onde muitos são nascidos e criados e que com a auto identificação consciente busca-se a melhoria ao invés da fuga fruto da ascensão social. E é nessa perspectiva que os manos do Apologic Mc’s chegam nesse single.

O primeiro bairro planejado da cidade de Salvador e o maior da América latina, Cajazeiras fica distante do centro da cidade e é nesse ponto que inteligentemente os Mc’s Nid IceBeergy e Jhoy Maker, assim como o Dj Ira, invertem a perspectiva. Sem esquecer os problemas que o bairro enfrenta, a afirmação vem justamente de não tomar o centro como ponto de referência, mas sim a margem onde se está.

O bairro de Cajazeiras é celeiro de muitos artistas importantes da cidade de Salvador. Como todas as periferias, Cajazeiras segue sendo desvalorizada, apesar de ser um bairro onde se pode encontrar todos os serviços e equipamentos sociais. E essa consciência é importantíssima não só para este bairro em particular, mas para todos os moradores periféricos. A valorização de si passa necessariamente pela aceitação e pelo reconhecimento de onde se está, o que não significa alienar-se dos problemas que se mantém historicamente.

Talvez a própria abertura de novos horizontes dependa dessa pertença e da necessidade de expandir-se sem necessariamente precisar estar em outro lugar para tanto. É essa a lição que o Apologic Mc’s vem pregando nesse single que é mais uma produção musical de qualidade desse grupo que muitos ainda vão ouvir falar e muito.

Contenção 33 – Ruas Sujas Part. 2

Fundado em 2013 o grupo Contenção 33 é formado por Dark, Torre, High, Houdini, Febre e pelo Dj Baga. Os caras fazem um rap pesadão, num misto de gangsta e underground, mostrando a realidade nua e crua, que representa sua quebrada (o bairro da Liberdade), mas que poderia ser fruto de qualquer quebrada brasileira. Nesse single os manos chegam como de costume, muito forte e abordando todas as sujeiras que infestam as nossas ruas, uma verdadeira rajada ininterrupta de ideias e observações ácidas e pertinentes feita por High, Torre e Dark. Com uma percepção muito apurada, os rappers conseguem captar como as ruas sujas não resultam primeiramente dos moradores. Uma sujeira que sim, se encarna nos corpos negros dos favelados, mas que advém de fora, das elites.

Criando assim um relato que não isenta os envolvidos, mas que consegue deixar claro o maquinário, a máquina abstrata que compõe o projeto que secularmente nos é imposto pelo estado racista e genocida. Conseguir perceber que a guerra de facções, o tráfico de drogas e os corpos que tombam são fruto da guerra às drogas, uma concepção daqueles que sempre souberam o quanto seria lucrativo e eficiente, a morte e a guerra plantada dentro dos guetos ao redor do mundo. Corrupção política, falta de oportunidades que restringem e cerceiam os modos de ser dos pretos favelados, transformando-os em alvos em potencial, em corpos numa espécie de jogos vorazes praticado todos os dias. 

Uma pedrada musical que só demonstra a qualidade e a clareza das ideias desses manos que com pouco tempo vem conquistando uma verdadeira legião de fãs que se identificam e veem se educando com o verdadeiro espirito do hip-hop.

 Raphael Mc & Cintia Savoli – Noite Vira Dia

O extermínio de 14 jovens na favela da Vila Moisés foi mais um triste acontecimento, infelizmente recorrente, mas que tem servido para que o movimento em defesa da vida da população negra ganhe uma força maior. E a cultura hip-hop tem abraçado essa causa e transformado mais essa chacina num ponto de partida para a constante rebelião contra o genocídio corrente e contra os artilheiros do governador Rui Costa.

Raphael Mc e Cintia Savoli, se uniram para produzir mais uma poesia de resistência contra tudo isso que encontra seu marco na Vila Moises, mas que acomete cotidianamente todas as quebradas. Transformando os corpos tombados em verdadeiros símbolos que não serão esquecidos e servirão daqui pra frente para que a luta contra esse estado racista não cesse.

O ódio que provém da casa grande na forma de ordem, para a invasão e extermínio dentro das senzalas precisa cessar imediatamente. É uma luta que precisa se encarnar com mais força, até que o conjunto da sociedade perceba a necessidade de acabar com a polícia militar. Famílias que sofrem a proporção de dezenas de perda a cada mês, jovens se revoltando pela brutalidade com que são tratados – quando não mortos – pelos porcos quando esses os abordam.

Jovens jogados na perversidade de um jogo que os fazem não perceber a noite virar dia, atrás de um lucro efêmero e que na real ceifa todas as potencialidades que esses mesmos jovens trazem em suas essências. Um sistema complexo que primeiro retira todas as possibilidades de crescimento, dando depois apenas o crime como perspectiva de rápida ascensão para em seguida mandar a Rotamo para uma “limpeza” – para o abate.

Cintia Savoli segue num rap militante com uma qualidade poucas vezes vista no Brasil e esse encontro com Raphael Mc, que também traz rimas muito fortes carregadas de verdade e sentimento, com uma dicção afiada, num flow seguro e certeiro. Só fortalece a luta, a música e a cultura hip-hop.

Parceria forte!

 Malaô – Amanhecer (part. Diana Sanches)

O grupo Malaô Mc’s soltou mais um single de muita qualidade e dessa vez com a participação luxuosa da Mc Diana Sanchez. A rapper abre a música com um refrão lindo, onde a leveza de sua voz se contrapõe às rimas e ao mesmo tempo abre a perspectiva do que se quer passar na música. Os manos Yago Malaô e Dezesseis Beats, não perdoam na avaliação das condições que muitas vezes impedem a muitos de conseguir amanhecer, que retira-lhes de uma vez por todas a possibilidade de ver o sol raiar.

O rádio que não sintoniza a beleza da voz, na possibilidade de um canto límpido e esperançoso, nos trazendo muitas vezes informações errôneas e músicas alienantes. A necessidade de colocar as palavras e as ideias de progresso em algum lugar, numa track, num caderno, na efemeridade alegre de uma batalha de freestyle é também um ato de fé, onde os poetas dobram seus joelhos diante da arte.

Criação de um sentido para uma vida que busca a tranquilidade e a paz, a alegria percebida no canto dos passarinhos, tendo com despertador os galos da vizinhança. Bonitos contrapontos à realidade das favelas que muitas vezes impossibilitam uma noite tranquila de sono, sendo recheadas de tiros ou de “operações” que impedem o verdadeiro amanhecer, fazendo com que o ciclo natural da vida não seja respeitado. É nessa linha que os manos e a mina encaminham sua poesia, cantando para um novo despertar, um novo raiar da vida.

 N.A. (Natural Art) part. Mobb –  Cidade Sem Rumo

Underground total, essa track nos propõem aquele característico jorro de imagens em flows alucinados. Mas nesse caso ancorados em uma clara visão dos problemas sociais e políticos. Como nos problemas de locomoção que os trabalhadores e pessoas pobres enfrentam em seus deslocamentos diários, contribuindo para uma péssima qualidade de vida. Caos urbano produzido pelos nossos políticos e gestores que produzem um maquinário infernal para todos que vivem em grandes metrópoles. Direto de Camaçari N.A. e Mobb mostram-nos como a região metropolitana tem muito a contribuir para o rap baiano e nacional.

Violência policial, que precisa ser esquivada de prima e na primeira oportunidade que se conseguir buscar o revide diante desses monstros. Escapando das desovas pela capacidade de valorizar os professores e consequentemente o conhecimento, para também não se tornar um Hanibal sem farda. Vida louca feita desses delírios poéticos que os manos nos proporcionam, fazendo-nos perceber o quanto a esquizofrenia nos é infligida por um sistema capitalista que mercantiliza a tudo e a todos. Clareza que vem da observação das maquiagens que compõem nossa realidade, indo em direção ao âmago do social através da poesia.

Um excelente trabalho que nos leva a desejar que mais produções do N.A. (Natural Art) cheguem logo e com a mesma qualidade, conseguindo junto aos outros manos, fazer com que o rap de Camaçari siga crescendo e mostrando sua cara, nessa pegada underground original que parece ser sua maior marca.

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Confira aqui os volumes anteriores de Grandes Singles do Rap Baiano:

https://oganpazan.com.br/grandes-singles-do-rap-baiano/

https://oganpazan.com.br/grandes-singles-do-rap-baiano-2/

https://oganpazan.com.br/grandes-singles-do-rap-baiano-3/

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